A poucas semanas das eleições intercalares – para as duas casas do Congresso Federal (Casa de Representantes e Senado), para as duas câmaras e governadores de cada Estado, assim como referendos estaduais e diversos cargos estaduais e locais – os EUA atravessam uma fase de crescente polarização política. As questões quentes são múltiplas e sucedem-se rapidamente. Nos passados dias o foco tem-se virado para a confirmação de Brett Kavanaugh como juíz do Supremo Tribunal.
A luta pela hegemonia no Supremo Tribunal
Historicamente as nomeações presidenciais para cargos judiciais eram uma formalidade, sendo confirmadas em larga medida com apoio de membros de ambos os partidos. A título de exemplo, em 1986, por nomeação de Ronald Reagan, o juiz conservador do Supremo Tribunal Antonin Scalia foi confirmado por 98-0 (o Senado tem 100 lugares, dois por cada estado). Scalia foi um dos votos determinantes, em 2000, na controversa decisão política (!) do Supremo de suspender a recontagem de votos na Flórida, oferecendo assim a presidência a George W. Bush.
Esse momento foi a confirmação da estratégia dos Republicanos (Reps.) de exercer poder político através do sistema judicial, e desde então têm investido substancialmente na nomeação de juízes conservadores nos vários níveis do sistema, assim como no combate a juízes liberais. Esta luta teve a sua expressão mais evidente no palco nacional quando Scalia faleceu, em Fevereiro de 2016, e a maioria Republicana no Senado bloqueou a confirmação do nomeado de Obama, Merrick Garland, com o pretexto de Obama estar a nove meses do final de mandato. A estratégia funcionou, pois Trump ganhou a eleição presidencial e viu o seu nomeado, Neil Gorsuch, confirmado pelo Senado.
Em Junho deste ano, a retirada do juiz Anthony Kennedy abriu à direita a possibilidade de nomear novo membro para o Supremo, garantindo um Supremo de maioria conservadora num futuro de médio prazo (o cargo é vitalício). Em contraste com o anterior posicionamento, face à proximidade de eleições intercalares onde existe perspectiva de mudança de maioria no Congresso, os Reps. têm procurado acelerar o processo de confirmação.
Assumida como uma nomeação que não levantaria grandes obstáculos à actual maioria do Partido Republicano (Reps.) no Senado, as dificuldades amontoam-se em torno da confirmação de Brett Kavanaugh, devido a alegações de abuso sexual por parte deste, fazendo recordar o processo marcante de confirmação do Juiz Clarence Thomas, em 1991. A então desvalorização do testemunho de Anita Hill, que acusou Thomas de assédio sexual, a forma como a perspectiva da vítima foi descaracterizada no Senado e na praça pública, promoveu um aumento de mulheres candidatas e eleitas para o Senado em 1992, que ficou recordado como o Ano da Mulher. A «onda feminina» ameaça ser maior este ano. As mulheres têm demonstrado grande mobilização, impulsionada pela campanha de Hillary Clinton, intensificada após a eleição do misógino Donald Trump e fortalecida com o movimento #Metoo. O processo de eleições primárias deste ano já foi marcado por novo recorde no número de mulheres candidatas e vencedoras, em particular nas primárias do Partido Democrata (Dems.). A polémica em torno da nomeação do Juíz Kavanaugh, independentemente de como termine, dada a natureza das alegações e a forma como o Reps. se têm conduzido, irá ter certamente um impacto na afluência e inclinação do voto de muitas mulheres nas eleições de Novembro. Esta tendência em si poderá contribuir para uma possível retomada da maioria dos Dems. no Congresso.
Caos e paranóia na Casa Branca
Mas esta é apenas uma de entre as várias controvérsias que envolvem Trump e sua Administração. O último livro do jornalista Bob Woodward, Medo: Trump na Casa Branca, é mais um entre vários livros recentes documentando o caos na Casa Branca, à conta do ego e incompetência de Trump, e como o círculo em torno de Trump procura gerir o Presidente. Woodward descreve, por exemplo, como o ex-conselheiro económico Gary Cohn, ao ver uma carta, ainda por assinar, em cima da secretária presidencial na Sala Oval, carta que poria fim a um importante acordo comercial entre os EUA e a Coreia do Sul, achando ele que a decisão seria contrárias aos interesses nacionais, decidiu simplesmente tirar a carta, cuja falta não foi notada.
Os casos relatados neste e noutros livros evidenciam um clima de desconfiança e sicofantismo, que foi depois exacerbado quando o jornal New York Times excepcionalmente publicou um artigo de opinião de um anónimo declarando-se parte de uma resistência interna a um Presidente «amoral» e «errático», referindo até que terá sido discutido o recurso à 25.ª Emenda à Constituição, ao abrigo da qual o Vice-Presidente e uma maioria do Gabinete poderia remover o Presidente por incapacidade de exercer o cargo. O autor anónimo faz até questão de distinguir esta resistência interna da resistência popular de esquerda e da resistência do chamado Estado Profundo.
No sábado, uma reportagem do New York Times indicou que o Procurador-geral adjunto, Rod J. Rosenstein, na primavera de 2017, no rescaldo do caos lançado pelo despedimento do director do FBI, terá discutido com membros do FBI e do Departamento de Justiça a possibilidade de gravar secretamente as suas conversas com Trump, e discutido também o recrutamento de membros do Gabinete para invocarem a 25ª Emenda. A notícia terá levado o filho do Presidente, Donald Jr., a acusar Rosenstein de ser o autor anónimo. A posição de Rosenstein no Departamento de Justiça está tremida, assim como a do Procurador-geral Jeff Sessions que tem sido objecto de diversos ataques públicos por Trump.
Tendo sido um dos primeiros apoiantes de Trump na sua corrida à Casa Branca, Sessions recusou-se a supervisionar a investigação sobre a possível interferência da Rússia nas eleições de 2016 e colusão com a campanha de Trump, e a possível obstrução de justiça por parte de Trump. Foi Rosenstein quem nomeou Robert Mueller como Conselheiro Especial à frente da investigação. Esta tem levado a várias condenações de ex-conselheiros e aliados de Trump, incluindo um membro da sua campanha, George Papadopoulos, os lobistas Paul Manafort e Rick Gates, e o advogado pessoal de Trump, Michael Cohen. A cascata de declarações de culpa e colaboração com a investigação tem apertado o cerco a Trump, que só não terá ainda demitido Rosenstein e Sessions, que Trump responsabiliza pela investigação, devido à proximidade das eleições.
Donald Trump toma o palco nas Nações Unidas
Foi com base nesta situação doméstica que Trump foi na terça-feira discursar perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, declarando na abertura que a sua «administração tem alcançado mais que qualquer outra administração na história do nosso país». Este tipo de afirmação hiperbólica, auto-promocional e marcadamente incorrecta é comum nas comícios de Trump, onde ele se sente verdadeiramente à vontade para pontificar de forma improvisada. Nas Nações Unidas, perante representantes dos países do mundo, a declaração foi recebida com risos. Trump comentou que não esperava essa reação e continuou, indicando entre as realizações «históricas» da sua administração o gigantesco corte fiscal (beneficiando os ultra-ricos e grandes empresas) e o reforço da despesa militar nos EUA que atingirá USD$716 mil milhões no próximo ano. E deixou claro para que serve tal reforço: «As nossas forças militares serão em breve mais poderosas do que nunca». Afirmação extraordinária, considerando que os EUA são responsáveis por mais de 35% da despesa militar mundial, gastando mais que a soma da despesa militar da China, Rússia, Arábia Saudita, Índia, França, Reino Unido e Japão.
Trump expandiu as ideias da «América Primeiro» do seu discurso anterior nas Nações Unidas, afirmando «rejeitar a ideologia do globalismo e aceitar a ideologia do patriotismo». A sua crítica ao globalismo inclui «a governância global da burocracia não elegida e não imputável» das Nações Unidas, a Organização Mundial do Comércio, a OPEC, o Plano de Ação Conjunto Global sobre o programa nuclear do Irão, o Tribunal Penal Internacional, etc. Como vem sendo prática, a sua versão de patriotismo e defesa da soberania implica a rejeição de quaisquer instâncias supranacionais e acordos multilaterais, preferindo a negociação bilateral por forma a garantir os interesses dos EUA.
Para o mais distraído, esta defesa da soberania e independência nacional poderia ser confundida com a posição de forças progressistas face ao domínio exercido pelas grandes potências através de estruturas supranacionais. Mas os EUA são uma grande, grande potência. É de uma imperial ironia que o líder de uma grande potência com um largo historial de interferência nos assuntos internos de outros países —pela pressão diplomática, chantagem económica, sabotagem, espionagem e guerra— venha pretender tomar a posição de vítima cuja soberania é ameaçada. Trump gaba-se dos EUA serem o maior doador de ajuda externa, para depois queixar-se de que poucos dão aos EUA. Trump refere o que espera dos países que recebem ajuda financeira dos EUA: «que tenham os interesses [dos EUA] no coração”, «que nos respeitem e sejam nossos amigos». É significativo que, no final do seu discurso, após retórica florida sobre a diversidade mundial, Trump destaca 4 países: Índia, Arábia Saudita, Israel e Polónia.
É possível ilustrar com outros exemplos do discurso como a defesa da soberania de Trump tem um teor nacionalista e retrógrado e não deve ser confundida com uma defesa patriótica da soberania dos povos num clima de efectiva cooperação: a sua posição xenófoba face aos refugiados e migrações ou a suas diatribes contra o socialismo e a Venezuela, que descreve como uma ditadura repressiva (apesar do seu historial de eleições fiscalizadas internacionalmente) e contra a qual anunciou novas acções, presumivelmente como demonstração de respeito pela sua soberania. Mas considerando que o discurso foi realizado nas Nações Unidas, é significativo que Trump mencione a retirada dos EUA do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas («uma grave vergonha para esta instituição»). Não conseguindo instrumentalizar o organismo, que persistentemente critica Israel, os EUA retira-se. Não aprovando o apoio dado aos refugiados Palestinianos, deixa de financiar a Agência para Refugiados Palestinos das Nações Unidas (UNRWA).
Trump não critica as instituições supranacionais porque defende a soberania das nações, critica-as porque não servem os interesses nacionais dos EUA, ou mais precisamente os interesses da classe privilegiada dos EUA. Assim se explica também porque no mesmo discurso em que fala no respeito da soberania dos Estados anuncie as sanções à Venezuela e ao Irão por motivos que qualquer outro país poderia igualmente imputar ao EUA, a saber corrupção, pilhar os recursos da nação para enriquecimento próprio ou espalhar caos no Médio Oriente e além. (Não cabe aqui uma discussão do mérito, ou falta de mérito, da crítica que Trump tece ao Irão; mas de salientar que crítica semelhante se poderia fazer aos EUA.) Aliás, Hassan Rouhani, Presidente do Irão, na mesma sessão da Assembleia Geral das NU teve oportunidade de lançar também críticas a Trump: “É desafortunado que estejamos a testemunhar poderes no mundo que pensam que podem assegurar os seus interesses melhor ou pelo menos a curto prazo usar o sentimento público para angariar apoio público para fomentar nacionalismo extremista e racismo, ou através de tendências xenofóbicos semelhantes à disposição Nazi.”
Assinale-se que, nas críticas de Trump às NU, nada é assinalado sobre o menos democrática dos seus organismos, o Conselho de Segurança (CS), onde existem cinco membros permanentes com direito de veto. No dia seguinte, 4ª feira, Trump presidiu a sessão do CS centrando a sua atenção sobre o Irão, não deixando de voltar a atacar a China, chegando mesmo a implicar que a China está a procurar influenciar as eleições intercalares dos EUA, presumivelmente através das taxas aduaneiras que tem avançado contra os EUA, em resposta às taxas dos EUA. Trump, que na sua última visita à Rússia, teceu dúvidas sobre as evidências do FBI sobre interferência Russa nas eleições de 2016, presta-se agora a insinuar interferência Chinesa, sem providenciar quaisquer evidências.
O espectáculo de Trump foi completado com uma conferência de imprensa de mais de uma hora já num tom em que se sente mais confortável, sem guião e com caretas, que a comunicação social adjectivou como «surreal» e «indescritível», onde houve espaço para falar da situação doméstica e das reuniões nas NU, mas também gabar o seu grande cérebro; apoiar Kavanaugh e insinuar que George Washington também teria um «mau passado»; dizer que os risos na Assembleia Geral no início do seu discurso foram um sinal de respeito, e terminar com uma citação falsa de Elton John1. Este rei vai nu.
- 1. Donald Trump decidiu terminar em beleza a sua conferência de imprensa nas Nações Unidas escolhendo uma citação de um gigante da pop music muito do agrado do establishment anglo-saxónico: Elton John. Segundo a BBC News, a citação terá sido: «Elton John said, "When you hit that last tune and it's good, don't go back"» – sugerindo que um mau encore arruinaria o espectáculo. O pior foi que o pai de Zack Stanton (do PoliticoMAG), um ex-editor do fan magazine de Elton John, acompanhava a conferência de imprensa e escreveu ao filho. Publicamos o tweet de Zack Stanton, sem tradução nem comentários: «Urgent text from my dad, who is watching this Trump presser (and who, for context, used to edit Elton John's fan magazine, and never uses exclamation points): "Elton never said that!!! His concerts are very structured."».
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