O ex-presidente Lula da Silva foi ontem libertado da prisão em Curitiba, estado do Paraná, cerca das 17h40 locais (20h40 em Lisboa).
A decisão foi tomada pelo juiz Danilo Pereira, da 12.ª Vara Criminal Federal de Curitiba, que aceitou em poucas horas o pedido de libertação formulado hoje pela defesa do antigo Presidente do Brasil e autorizou a sua saída da sede da Polícia Federal de Curitiba, onde esteve preso durante um ano e sete meses.
A libertação de Lula da Silva ocorre vinte e quatro horas depois de, na quinta-feira, ter terminado no Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro um debate que concluiu pelo restabelecimento do preceito constitucional de presunção de inocência – que fora suspenso em 2016 por uma decisão, agora revertida, do mesmo órgão – dos réus que, como é o caso de Lula, recorrem da sua pena para tribunais superiores.
Como consequência, o cumprimento de pena dos inculpados deve fazer-se apenas após a sua condenação definitiva, ficando impedida a prisão de condenados em segunda instância, isto é, antes do fim do processo.
O ex-presidente brasileiro estava encarcerado há 580 dias, desde 7 de Abril de 2018, e o processo da sua prisão foi visto como uma manobra para impedir a sua recandidatura à Presidência da República, quando nas sondagens se encontrava como favorito, beneficiando a candidatura do actual presidente, Jair Bolsonaro.
Um processo nada imparcial
Em Janeiro de 2018 Lula da Silva foi julgado em segunda instância e condenado por unanimidade no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF4), com sede em Porto Alegre, depois de ter sido condenado, em Julho de 2017, pelo juiz Sérgio Moro, no âmbito da operação Lava Jato, pela alegada prática dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. A defesa solicitou a nulidade do processo, argumentando que, na sentença de primeira instância, não fora feita «prova de culpa, mas sim a da inocência».
Em Março de 2018 o Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeitou o pedido do ex-presidente para evitar a prisão, após a sua condenação em segunda instância. Na altura, as sondagens mostravam o histórico dirigente metalúrgico como o candidato favorito dos eleitores brasileiros, estando à frente das intenções de voto com 33,4%, mais do dobro da percentagem atribuída ao candidato que figura em segundo lugar.
Em 7 de Abril de 2018, no meio de enormes manifestações de apoio popular, Lula da Silva anunciou ir entregar-se para cumprir a pena a que fora condenado. Falando para uma multidão a partir do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo (São Paulo), onde iniciara a sua carreira sindical e política nos anos 70, ainda sob a ditadura militar, lançou uma frase de desafio que ficou para a história: «Vou cumprir o mandato, e vocês vão ter que se transformar em Lulas e vão andar por este país fazendo o que precisa ser feito. Eles têm que saber que a morte de um combatente não pára a revolução».
Começava a luta pela sua libertação, que teve expressão maior no movimento «Lula Livre», que também se fez ouvir em Portugal.
Mesmo após a prisão o fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) continuava a liderar as sondagens para as eleições presidenciais de Outubro. Em 15 de Abril permanecia à frente das intenções de voto arrecadando 31% dos eleitores, a larga distância do candidato de extrema-direita, Jair Bolsonaro (15%) e da ex-ministra do ambiente, Marina da Silva (10%), com o presidente em exercício, Michel Temer, a ficar-se pelos 2%, largamente condenado pelas políticas anti-sociais do seu governo.
A arbitrariedade do grupo que, no poder judicial, como viria a provar-se, manipulou o processo de Lula para evitar a sua candidatura e mesmo impedir que a sua voz se fizesse ouvir nos meios de comunicação, mantendo-o em isolamento. A juíza Carolina Lebbos, da 12.ª Vara de Execução Penal de Curitiba (suplente do juiz que decidiu a libertação de Lula) ficou tristemente conhecida por dar uma recusa colectiva a diversos pedidos de entrevistas ou mesmo de simples visita ao ex-presidente, incluindo o argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prémio Nobel da Paz em 1980, e o prestigiado intelectual católico Leonardo Boff, bem como indeferiu uma diligência oficial da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados para fiscalizar as condições em que Lula da Silva se encontrava preso.
A arbitrariedade tornou-se mais clara em Julho, quando o juiz Rogério Favreto aceitou um pedido de habeas corpus e ordenou a libertação imediata do ex-presidente do Brasil. A Polícia Federal, em vez de cumprir a ordem judicial, notificou o juiz Sérgio Moro, responsável pela Lava Jato e pela condenação em primeira instância de Lula, que travou o processo. O juiz Favreto manteve a decisão mas a mesma foi travada por um outro protagonista do julgamento do ex-presidente brasileiro, o relator do caso no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) João Pedro Gebran Neto, também ele a cumprir período de férias. A libertação acabaria por ser finalmente impedida pelo presidente do tribunal, Thompson Flores.
Em Agosto o PT ainda formalizou a candidatura de Lula da Silva, mas a 1 de Setembro de 2018 o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) rejeitou a candidatura do ex-presidente, contrariando a decisão do Comité de Direitos Humanos da ONU – que defendia a garantia dos direitos políticos de Lula, inclusive enquanto candidato, até que se esgotassem todos os recursos legais nos tribunais9.
Ficava livre a estrada para a ascensão de Jair Bolsonaro. Um dos primeiros passos deste foi nomear Sérgio Moro como Ministro da Justiça do seu governo. Em Junho de 2019 o portal Intercept Brasil divulgou escutas de Sérgio Moro e dos procuradores encarregues do processo contra Lula que revelam uma conduta proibida pela Constituição e vedada pelo Código de Ética, ferindo os princípios de imparcialidade, independência e equidistância entre defesa e acusação.
«Tentaram matar uma ideia. Ideia não se mata.»
Mal saiu, e como tinha prometido, Lula da Silva dirigiu-se à Vigília Lula Livre, um acampamento militante montado na proximidade da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba e que lhe proporcionou apoio moral nos 580 dias que durou o seu encarceramento.
Falando para as centenas de pessoas que o esperavam, a partir de um palco improvisado, agradeceu esse apoio: «vocês não tem noção do significado de eu estar aqui com vocês», declarou, acrescentando «não pensei que, no dia de hoje, poderia estar aqui com homens e mulheres que, durante 580 dias gritaram “bom dia Lula”, “boa tarde Lula”, “boa noite Lula”».
Para Lula, a Vigília foi «o que eu precisava para resistir à safadeza e à canalhice que parte do Estado, da Justiça, do MP, da PF, da Receita, fizeram comigo». «Trabalharam para tentar criminalizar a esquerda, o PT. Não poderia ir embora sem cumprimentar vocês. Cumprimento os companheiros da coordenação que trabalharam incansáveis», afirmou.
Durante 15 minutos o ex-presidente, no seu primeiro discurso após retomar a liberdade, foi cáustico para com Bolsonaro e Moro e prometeu lutar por um Brasil melhor.
«Ontem vi na televisão os dados do IBGE [Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística]: depois que fui preso, depois que eles roubaram [a eleição de Fernando] Haddad, o Brasil não melhorou, o Brasil só piorou», disse Lula da Silva, acrescentando «o povo está passando mais fome, o povo está desempregado, o povo não tem mais carteira assinada [contrato de trabalho]. O povo está trabalhando de Uber, o povo está trabalhando de bicicleta para entregar pizza e esta trabalhando, na verdade, sem o menor respeito».
Lula afirmou ter «vontade de provar que este país pode ser muito melhor na hora que tiver um governante que não minta tanto pelo Twitter como o [Presidente Jair] Bolsonaro mente».
Ao sair do palco, concluiu: «Não prenderam um homem. Tentaram matar uma ideia. Ideia não se mata».
Já dentro da viatura que o transportava, gravou uma breve mensagem em que sublinhou sair «com muita vontade de lutar» pelo «bem do povo brasileiro» e para «construir um país melhor».
Lula da Silva fará, neste sábado, pelas 10h locais (14h em Lisboa) um pronunciamento à nação, em acto marcado para o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo. Um local simbólico que, apesar dos seus 74 anos, promete ser o ponto de partida para uma campanha política que pode mudar o actual panorama do Brasil.
A libertação do ex-presidente foi celebrada por populares em diversas cidades brasileiras e salientada em meios de comunicação do mundo inteiro como sendo um facto político de enorme relevo. O pré-candidato democrata às eleições nos EUA, Bernie Sanders, mostrou-se satisfeito com a libertação e declarou que Lula jamais deveria ter sido preso, segundo o HuffPost. Nas redes sociais a campanha #LulaLivre foi o hashtag mais comentado do mundo, esta sexta-feira.
A revista de negócios Exame, reflectindo um ponto de vista do capital, reconhece que a libertação de Lula é um «sonho da esquerda e pesadelo da direita», e um analista citado pela revista afirma que «passa agora a existir uma oposição mais densa e consistente ao governo Bolsonaro, que vinha praticamente produzindo a própria oposição devido às suas trapalhadas internas».
A presidente do Partido Comunista do Brasil (PC do B), Luciana Santos, fez questão de sublinhar a importância, para a libertação de Lula, da acção jurídica interposta pelo partido, em Junho de 2018, no STF, denunciando a inconstitucionalidade da prisão em segunda instância, a qual «foi vitoriosa porque se baseou na carta magna e garantiu a retomada de garantias fundamentais». A presidente do PC do B acrescentou que «a defesa da Constituição, maior produto do processo de redemocratização do país, de discussões gigantes pelo Brasil afora é um processo muito rico que nós temos que defender. É um marco civilizatório, a presunção da inocência, é vitória do estado democrático de direito e do devido processo legal».
A popularidade de Lula da Silva pode medir-se por um pormenor da reportagem feita sobre a libertação pelo jornal Folha de São Paulo e citado pelo portal Brasil 247. Segundo a mesma, dois polícias federais à paisana juntaram-se aos militantes na Vigília que aguardavam a saída de Lula. Disseram trabalhar na superintendência onde Lula está preso e compraram, nas bancas montadas no local, camisetas com a estampa do ex-presidente. «Pode ser o último dia, aproveitei para comprar. Não é todo mundo que apoia o governo», justificou o escrivão Farley Dias, de 43 anos, que ousou identificar-se perante os jornalistas.
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