Investigações em curso, pela Força Aérea norte-americana, sobre o uso inconstitucional de meios militares, por autoridades civis e com a eventual autorização do governo, para monitorizar e mesmo para intimidar os protestos desencadeados em dezenas de cidades americanas pela morte de George Floyd, revelam que a extensão desse uso foi muito superior ao inicialmente conhecido.
Dados divulgados recentemente pelo New York Times confirmam que drones, aviões-espiões e helicópteros foram usados pelo Departamento de Segurança Interna (DHS), «registando pelo menos 270 horas de vigilância», sobre 15 cidades norte-americanas. As informações foram obtidas pelo jornal junto da unidade federal de Protecção Alfandegária e de Fronteiras (CBP), a quem pertencia a maioria dos meios utilizados.
Tratam-se de drones de combate e vigilância MQ-9 Reaper/Predator B e aviões-espiões tripulados RC-26B Condor, habitualmente usados em missões militares no estrangeiro ou nas fronteiras do país, em operações anti-terrorismo e de combate ao tráfico de droga e tráfico humano. A sua utilização no interior dos EUA está constitucionalmente interdita sem uma autorização especial do Congresso, como aconteceu no passado no caso de algumas catástrofes naturais.
Apesar de alegações oficiais de que as operações não tinham posto em causa o livre direito à manifestação e os aparelhos não estavam equipados com os habituais equipamentos de identificação facial, fontes do CBP especificaram ao NYT que a «esfera óptico-eléctrica de infravermelhos», um equipamento padrão de vigilância, «permite aos operadores», até seis quilómetros de altitude, ver pormenores como «rostos, olhos e cor do cabelo».
Jay Stanley, analista político da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), afirmou que o uso ostensivo de meios aéreos de vigilância, de natureza militar, em manifestações contra a violência policial, poderia ser uma forma de desencorajar as pessoas a manifestarem-se.
Vigilância e intimidação
No dia 1 de Junho, quando se desencadeou a polémica operação de relações públicas de Donald Trump na capital que levou à «limpeza» do parque na praça Lafayette pela Guarda Nacional, a fim de que o presidente pudesse caminhar da Casa Branca até à igreja de São João e aí ser fotografado com a Bíblia na mão, não só houve um aumento dos meios aéreos de vigilância sobre a área como alguns foram usados com propósitos intimidatórios.
Cerca de 5 mil reservistas da Guarda Nacional carregaram violentamente sobre manifestantes pacíficos, causando numerosos feridos, incluindo jornalistas nacionais e estrangeiros. Uma gravação de um telefonema do secretário de Estado da Defesa Mark Esper, antes da operação, revelou que ele exigiu aos comandos que «dominassem rapidamente o campo de batalha» como se estivessem no estrangeiro, relata o Breaking Defense, que acrescentou terem as declarações despertado uma «profunda preocupação», entre os próprios comandos militares e civis ligados à Defesa, pela militarização crescente das forças policiais e pela possibilidade de uso de tropas no activo no teatro doméstico.
Aos dispositivos de vigilância aérea, durante a operação em Washington DC foi, segundo a CNN, acrescentado um avião Cessna Citation equipado com dirtboxes, uma tecnologia capaz de recolher informações de telemóveis, activá-los à distância como retransmissores ou bloquear as comunicações móveis.
Mas a situação mais grave, nesse dia, acabou por ser protagonizada por helicópteros militares UH-60 Black Hawk (usado em teatros de guerra, como no Afeganistão, no Iraque ou nos Balcãs) e UH-72 Lakota, que levaram a cabo aquilo que o The Drive classificou como uma «exibição de força, voando extremamente baixo» e com «a intenção óbvia de dispersar os manifestantes».
A «bizarra» manobra, garante o The Drive, não tem qualquer propósito de recolha de informações, «antes pelo contrário». Trata-se, afirma, de uma táctica usada pelos militares norte-americanos em zonas de combate no estrangeiro para segurar uma posição, a qual é inadequada para áreas residenciais urbanas densamente povoadas, como foi o caso. Um especialista ouvido pelo jornal classificou-a de «muito [sic] ilegal».
O facto de um dos helicópteros que puseram em risco vidas humanas ser uma ambulância aérea militar, identificada com o símbolo da Cruz Vermelha, aumentou a indignação generalizada e espoletou, segundo a CNN, um inquérito da Guarda Nacional «às manobras de baixa altitude» conduzidas pelas seus meios e, em particular, ao uso de «um helicóptero médico de evacuação» durante as mesmas.
Uma declaração condenando os acontecimentos do dia 1 de Junho, a militarização crescente das forças policiais e o emprego indevido de forças paramilitares e militares no interior dos EUA foi assinada por mais de 20 dirigentes ou antigos dirigentes da Segurança Interna, unindo democratas e republicanos, e publicada no Just Security: «rejeitamos uma resposta militarizada aos protestos», que «negue aos cidadãos os seus direitos constitucionais»; o uso indiscriminado da etiqueta de “terroristas” para justificar o uso de forças paramilitares e militares é simultaneamente errado e legalmente insuportável».
Nós por cá, nem sempre bem
Portugal não está imune a tentações securitárias que confundam o papel das forças de segurança e das forças armadas, que restrinjam direitos para além do necessário e ponham em acção formas de vigilância excessivas, e a actual situação pandémica pode potencializar todas essas derivas.
Recentemente o juiz conselheiro Bernardo Colaço lembrou que, apesar de a Constituição da República «distinguir a segurança interna e a defesa nacional», se tem assistido, «por parte de sucessivos governos, a uma vontade em manter militarizadas algumas forças policiais (GNR e Policia Marítima) que, por imperativo, deveriam ser de natureza civil». Relativamente aos actos inconstitucionais ocorridos nos EUA, o magistrado fez votos para que, no contexto actual, entre nós «não haja qualquer transmissão desta americanice».
No mês passado o investigador Duarte Caldeira, especialista em Protecção Civil, chamou a atenção para que «a utilização dos fuzileiros como força policial na fiscalização e vigilância das praias», alvitrada por alguns, constituiria «uma grave violação do quadro jurídico-constitucional que regula o que às Forças Armadas incumbe». O investigador valorizou as «importantes missões» desempenhadas por aquelas e o seu meritório empenho no combate à pandemia, mas prescreveu-as «no quadro legal que regula as suas intervenções».
A declaração do estado de sítio e de emergência pela Assembleia da República, a 18 de Março passado, foi acompanhada de especulações e imprecisões também a respeito do papel dos militares, com o Correio da Manhã a escrever, na véspera, «militares prontos a sair à rua e a impor medidas», quando efectivamente se tratava de os militares saírem à rua para apoiar as autoridades civis, como veio a suceder, e não para «impor nada», como previa aquele jornal.
A 27 de Março o Público noticiava que a «Guarda Nacional Republicana vai usar drones para vigiar o cumprimento das medidas impostas pelo estado de emergência», nomeadamente na «cerca sanitária de Ovar» e também «em aldeias mais isoladas dos distritos de Vila Real, Viseu e Guarda». Sublinhava o diário o facto de, para a utilização destes drones, o Ministério da Administração Interna ter solicitado um parecer à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), que dera «o seu aval à captação destas imagens devido à declaração do estado de emergência».
No AbrilAbril, em editorial de 31 de Março, lembrava-se, a propósito, que a declaração de estado de emergência «justificara» atropelos e incumprimentos da lei no que se refere à liberdade de circulação dos cidadãos, com entidades a interditarem e outras a desmentir aquelas, sublinhando não estarem em causa as medidas mas quem tem competência para as impor e a necessidade de as mesmas serem aplicadas respeitando a constituição e as leis.
Em meados de Abril foi de novo a vez do Público abordar a questão da participação das Forças Armadas em missões de segurança interna, na óptica do «documento da secretária-geral de Segurança Interna que estabelece os princípios orientadores da articulação entre as forças e serviços de segurança e as Forças Armadas». Ora, a referência ao protocolo de cooperação referido é, no actual contexto, uma mistificação que ninguém deve alimentar e, por maioria de razão, nenhum órgão de soberania, já que o mesmo foi concebido para responder a ameaças de índole terrorista e não a uma emergência sanitária. Aqui, como em situações similares, as leis que enquadram a Protecção Civil – e, neste caso, a Lei de Saúde Pública – contêm os instrumentos necessários. Daí ser descabida, neste contexto, qualquer referência a esse protocolo.
Nos EUA como em Portugal, a democracia defende-se quando é defendida a Constituição e os direitos constitucionais.
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