Espezinhando e queimando o retrato em cartão do magnata das tecnologias da informação (TI) Narayana Murthy, onde aparecia o seu apelo a uma «semana de trabalho de 70 horas», trabalhadores indianos da área da tecnologia protestaram no passado dia 9 em Bangalore, capital do estado de Karnataka, no Sul do país.
Enquanto as chamas queimavam o retrato do co-fundador da Infosys, a que a revista Times chamou «o pai do sector pujante das TI na Índia», os trabalhadores das TI e dos serviços que lhes estão associados (ITes) gritavam: «Sr. Narayan Murthy, já não somos escravos!»
Na mobilização organizada pelo KITU (Karnataka State IT/ITes Employees Union), a Polícia tinha tentado tirar o cartaz das mãos dos dirigentes sindicais, para impedir que o retrato do magnata fosse queimado, mas os cerca de 700 trabalhadores presentes no Parque da Liberdade uniram-se e obrigaram os agentes a recuar, indica o Peoples Dispatch.
A queima do retrato foi a «conclusão dramática» de um protesto pacífico, em que os trabalhadores – homens e mulheres de várias gerações – se mostraram revoltados com as actuais condições a que são sujeitos e exigiram equilíbrio entre a vida profissional e pessoal como um direito, que a legislação laboral seja aplicada ao sector, que os horários de trabalho sejam regulamentados e que o «direito a desligar» seja codificado.
Ciclo vicioso: aumento do horário de trabalho e despedimentos em massa
Os principais patrões da indústria de TI, como Narayan Murthy, «estão a fazer lóbi pelas 14 horas de trabalho diárias», denunciou Sahil, um trabalhador na casa dos 20 anos que migrou de Madhya Pradesh. Apesar de, no papel, o seu horário de trabalho ser de nove horas por dia, trabalha quase 12, «porque, mesmo depois de chegar a casa», os chefes ligam e atribuem-lhe mais trabalho.
Não são pagas horas extraordinárias. No entanto, ninguém se atreve a recusar o trabalho não remunerado, porque todos estão «em modo de sobrevivência», temendo que o seu trabalho possa ser o próximo a ser dispensado, no contexto de despedimentos em massa que se mantêm no sector, «apesar dos lucros recorde após a Covid», disse.
«Tenho dois filhos. Não me posso dar ao luxo de perder o meu emprego», disse Prathap, um engenheiro de suporte técnico de meia-idade numa empresa que despediu recentemente 60 dos seus cerca de 200 trabalhadores.
Temendo pelo seu próprio emprego, recorreu ao sindicato, que, formado apenas em 2017, já reintegrou com sucesso centenas de trabalhadores despedidos, com vitórias em vários processos, incluindo contra alguns gigantes da indústria.
São muitas vezes os trabalhadores mais antigos, que criaram raízes na cidade com famílias com crianças em idade escolar, que são vítimas de despedimentos, acrescenta Mahesh, de 52 anos.
Depois de trabalhar no escritório durante 12 horas, das 8h30 às 20h30, Mahesh tem frequentemente de levar o trabalho pendente para casa, «porque nos atribuem um mês de trabalho para, digamos, 15 dias. Sabem que os prazos atribuídos não são realistas. Mas fazem-no para nos manter em constante medo de ter um mau desempenho e perder os nossos empregos. Por isso, esforçamo-nos para trabalhar cada vez mais para lhes agradar», explicou.
«Oito horas de trabalho é um mito»
«Oito a nove horas de trabalho tornaram-se realmente um mito. Todos nós trabalhamos mais do que isso», disse o secretário-geral do KITU, Suhas Adiga, no seu discurso de abertura da manifestação.
As cláusulas gerais nos contratos mencionam geralmente oito a nove horas de trabalho, mas as «cláusulas primordiais na parte inferior declaram que estão sujeitas a alterações por decisão da administração», explicou Mahesh.
Tais práticas contratuais são proibidas pela Lei do Emprego Industrial, que determina que os trabalhadores devem declarar claramente os termos e condições de trabalho no contrato, que não podem ser alterados unilateralmente.
No entanto, a indústria das TI do estado de Karnataka ficou isenta desta medida, em virtude da acção do governo estadual. «Foi em 1995, quando trabalhava em TI», que a argumentação para esta isenção foi feita pela primeira vez, com base no facto de ser uma indústria incipiente, cujo patronato exigia maior capacidade de manobra, disse Vasantharaj, membro do conselho consultivo do KITU, aos manifestantes.
Doenças cardíacas, AVC, falência de órgãos
«Trabalhar 55 ou mais horas por semana está associado a um risco estimado 35% maior de acidente vascular cerebral e a um risco 17% maior de morrer de doença cardíaca isquémica, em comparação com trabalhar 35-40 horas», alertaram a Organização Mundial da Saúde e a Organização Internacional do Trabalho. Longas jornadas de trabalho causam centenas de milhares de mortes por ano em todo o mundo, de acordo com um estudo conjunto publicado em 2021.
Indiferente a estes perigos para a força de trabalho, Murthy pediu uma semana de trabalho de 70 horas no final de 2023. Sogro do ex-primeiro-ministro britânico Rishi Sunak, reformado com um património líquido próximo dos cinco mil milhões de dólares, Murthy continuou a citar como modelo a colaboração entre o Estado e os líderes empresariais na Alemanha Ocidental do pós-guerra, que «garantiu» que todos «trabalhassem horas extraordinárias».
O governo estadual liderado pelo Congresso Indiano, que frequentemente criticou as políticas anti-laborais do governo central de extrema-direita liderado pelo BJP, estava, no entanto, interessado em agradar a Murthy. Em meados do ano passado, propôs uma emenda para alargar o horário de trabalho oficial dos trabalhadores das TI, actualmente limitado a dez horas (incluindo horas extraordinárias), para 14 horas por dia – o que perfaz as 70 horas que Murthy tinha solicitado.
O governo foi obrigado a recuar, devido aos protestos e às campanhas contínuas do sindicato. No entanto, o perigo não passou, com novos apelos para mais horas de trabalho por parte das empresas indianas.
90 horas numa semana de sete dias
Em Janeiro deste ano, S. N. Subrahmanyan, presidente da Larsen & Toubro Limited (L&T), ultrapassou Murthy, pedindo 90 horas de trabalho numa semana de sete dias. «Lamento não poder fazê-lo trabalhar aos domingos», terá dito numa reunião interna. «O que faz sentado em casa? Durante quanto tempo consegue olhar fixamente para a sua mulher? Vá para o escritório e comece a trabalhar», acrescentou, citado pelo Peoples Dispatch.
«Narayan Murthy e S. N. Subrahmanyam têm a ousadia de nos dizer que não estamos a trabalhar o suficiente, que somos responsáveis pelo subdesenvolvimento do país», protestou a vice-presidente do KITU, Rashmi, empregada como analista de desenvolvimento de aplicações na Accenture.
«Estão a dizer-nos descaradamente que passar tempo com a nossa família e entes queridos é um desperdício… Em vez disso, devemos trabalhar [até] aos sábados e domingos para engordar as suas carteiras e morrer», denunciou.
A reivindicação do sindicato pelo «direito ao equilíbrio entre a vida pessoal e profissional… está intimamente ligada ao nosso direito à vida», enfatizou Rashmi. «Há uma grande crise de saúde no nosso sector. Mais de 70% de nós sofre de exaustão, ansiedade e insónia. Estas coisas estão a afectar a nossa saúde física», alertou.
«Os trabalhadores não são impotentes face aos bilionários»
Bancos, transportes, cuidados de saúde, etc., todos dependem da «indústria de processos contínuos» das TI, que nunca pára, disse V. J. K. Nair, sindicalista veterano e presidente do KITU.
Embora «os teus patrões sejam… milionários e bilionários», que «fazem os governos do dia dançar ao som das suas músicas», os trabalhadores da área da tecnologia não são impotentes, lembrou T. K. S. Kutty, também um veterano do movimento sindical de Karnataka, que tem defendido os casos do KITU no tribunal do trabalho como advogado.
Organizados e unidos na acção, os trabalhadores da área da tecnologia só precisam de «desligar o portátil e dormir» para obrigar as grandes empresas e os governos a «ajoelharem-se». «Vocês podem fazê-los sucumbir», afirmou, sob os aplausos dos manifestantes.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui