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Surate: o custo de uma indústria têxtil de milhares de milhões de dólares

Disha D. e Diva Malik entram na próspera indústria têxtil de Surate, na Índia, para expor as precárias condições de trabalho e de vida dos trabalhadores migrantes em que assenta.

Créditos / theleaflet.in

Os dois repórteres indianos de The Leaflet (advogados, assistentes sociais, sindicalistas) conheceram Narendra (nome alterado, para proteger a identidade do trabalhador) quando se dirigia para o seu quarto de 3x4 metros, onde mal esticava as pernas e tinha de baixar a cabeça para não tocar nas roupas penduradas. Ali, havia um fogão, duas panelas, um saco de plástico com arroz e seis tomates.

Em Julho deste ano, uma lançadeira de um tear saiu disparada e atingiu Narendra na vista esquerda. Um dispositivo de madeira em forma de fuso que leva os fios para a frente e para trás no processo de tecelagem, a lançadeira é parte integrante de uma máquina de tear tradicional.

Qualquer trabalhador que opera a máquina sabe quão comum é a lançadeira voar de forma brusca para longe. Por vezes, passa ao lado de um trabalhador; outras, acerta-lhe num braço, e, nalguns casos «azarados», acerta-lhe num olho a 120 ou 130 quilómetros por hora — como aconteceu a Narendra.

A família de Narendra, com cinco pessoas (em Ganjam, no estado de Odisha), dependia bastante das 20 mil a 25 mil rupias (224 a 280 euros) que ele ganhava no sector têxtil. Hoje, lembra-se de, há 20 anos, como era costume, ter comprado meio bilhete (para menores) e de ter feito 1500 quilómetros até ao estado de Gujarate, onde a maioria dos homens do seu distrito vem trabalhar.

Os «melhores salários» que migrantes como ele aqui ganham têm o custo do trabalho contínuo, de estar de pé durante 12 horas todos os dias e sem férias pagas ou baixa. Num ambiente de trabalho a 110-120 decibéis, os trabalhadores passaram de um tempo em que operavam três máquinas para trabalharem agora em 15 a 20 máquinas ao mesmo tempo.

Depois de 20 anos no mesmo trabalho, é preciso gritar um pouco para que ele ouça – e, em relação a isso, ele limita-se a rir: «Diz-me um trabalhador têxtil que tenha boa audição.»

O salário à peça por metro de tecido produzido diminuiu ao longo do tempo. Actualmente, os salários situam-se entre 1,8 e três rupias (cerca de dois e três cêntimos) por metro, sendo que a produção média de uma máquina num turno de 12 horas se situa entre os 20 e os 45 metros.

Como os salários se baseiam na produção, os trabalhadores continuam a aceitar mais trabalho, ignorando a segurança ou a saúde para ganhar um salário digno. Curiosamente, o salário à peça também depende da qualidade do tecido, algo que o trabalhador não controla.

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Há alguns meses, quando foi atingido por uma peça que voou de uma das máquinas, a meio do seu turno da manhã, o patrão levou-o de imediato para o hospital. Mais tarde, foi transferido para um hospital privado especializado e caro, para «melhores serviços», porque num hospital público teriam de chamar a Polícia e apresentar um caso médico-legal.

Infelizmente, após o tratamento, Narendra perdeu quase toda a visão num olho e ficou com o outro parcialmente afectado.

Mesmo depois de trabalhar aqui durante décadas, muitas vezes durante anos na mesma unidade, Narendra, tal como a maioria dos trabalhadores, não tem qualquer prova de emprego. Foi só na sequência da intervenção do sindicato que foi aberto um processo, no qual o patrão informou a Polícia sobre a misteriosa perda das imagens da câmara de vigilância e alegou que o acidente se ficou a dever à negligência do próprio trabalhador.

O caso foi oficialmente registado no Tribunal do Trabalho. Entretanto, mesmo antes da primeira audiência, as partes chegaram a acordo através de um mecanismo de resolução (Lok Adalat), numa sessão celebrada a 14 de Setembro último, com o trabalhador a receber 200 mil rupias (2244 euros).

Os trabalhadores como Narendra aceitam qualquer montante, pois receber a indemnização adequada é um sonho distante, devido à falta de conhecimentos e de recursos para levar os casos por diante no local que escolherem. Agora, está muito contente por voltar a casa, enquanto o seu filho, que abandonou o nono ano depois da notícia do acidente, acaba de entrar pela primeira vez no mercado de trabalho, adquirindo competências como fabricante de bobinas.

«Em comparação com a última vez em que falámos, agora sou um trabalhador qualificado, irmã... O meu pai não devia estar tão preocupado, mas não sei quando posso voltar para casa. (Espero que) os meus irmãos pelo menos continuem os estudos.»

Nem todos os acidentes têm a mesma sorte. Quando Althaf (outro nome falso, para proteger a identidade do trabalhador), originário do estado de Uttar Pradesh, cortou um dedo numa máquina, o seu patrão pagou-lhe mil rupias e assumiu o custo do tratamento médico numa clínica local, com o seu dedo desmembrado debaixo da máquina durante três dias – até ele regressar e ir lá tirá-lo.

«Kya kare production rukna nahi chahiye!» (O que fazer, a produção não deve parar!). Althaf preferiu regressar à sua aldeia natal a ter problemas legais em Surate. «Mujhe ye police mamle me nahi padhna, ye log sab bade log hai.» (Não me quero envolver nestes assuntos policiais, estas pessoas são influentes).

Quem, o quê e como – O jogo dos números

Surate contribui com 12% da produção total de tecidos da Índia e 28% da produção total de fibras sintéticas do país. Milhares de unidades, grandes e pequenas, registadas e não registadas, estão agora ali estabelecidas, até nos arredores da cidade.

Em 2018, o volume de negócios anual da indústria de teares mecânicos de Surate foram uns impressionantes 50 mil crore de rupias (mais de 5,6 mil milhões de euros). Na sua esmagadora maioria, os trabalhadores deste sector são homens solteiros migrantes do estado de Odisha (ou Orissa), sobretudo do distrito de Ganjam.

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Na verdade, quase um terço dos trabalhadores migrantes de Surada e Jagannathprasad, no distrito de Ganjam, trabalham em Surate. Estima-se que pelo menos 700 mil migrantes de Odisha façam funcionar os teares eléctricos aqui. Não há dados disponíveis sobre os trabalhadores dos estados de Bihar, Uttar Pradesh e Maharashtra, que também fazem parte da mão-de-obra do têxtil.

Neste contexto, o Pravasi Shramik Suraksha Manch (PSSM) é provavelmente o único sindicato exclusivamente integrado por migrantes que trabalham nos teares em Surate, entre as centenas de sindicatos do distrito. Registado formalmente em 2020, o PSSM foi criado pelo Aajeevika Bureau, uma organização de defesa dos direitos dos trabalhadores com uma presença de longa data nos corredores migratórios precários do Oeste da Índia.

Nos últimos dois anos, só em Surate foram registados mais de 800 processos pelo sindicato e foram apresentados 60 processos no tribunal do trabalho sobre questões de despedimentos, pagamento de salários, gratificações, acidentes e mortes.

Em virtude da falta geral de provas de trabalho e da necessidade de uma justiça rápida, os acordos extrajudiciais, através de mediação, são o caminho para a justiça preferido.

«Nos meus 25 anos de trabalho na Ved Road, Sayan e Navagam, posso garantir que não existe uma única unidade que forneça a todos os trabalhadores um cartão de identificação, registe as horas extraordinárias e comunique os acidentes. Estas coisas tornaram-se a norma no sector», diz um destacado membro do sindicato sob anonimato.

«Quando o meu antigo patrão descobriu que fazíamos parte deste sindicato, fez circular a nossa fotografia em grupos patronais para nos impedir de trabalhar em qualquer lugar, por isso agora estou cauteloso», disse.

Segurança no local de trabalho

As possibilidades de acidentes em cada etapa de trabalho são múltiplas, desde situações de esmagamento a ser-se sugado e enrolado pela máquina, passando pelos «voos» da lançadeira, casos de electrocussão e os riscos de incêndio.

«Nos últimos dois meses, houve pelo menos dez incidentes em que a lançadeira saiu disparada das máquinas, uma vez também me arranhou o braço», diz um trabalhador da zona de Limbayat.

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Só entre Maio e Agosto de 2024, oito trabalhadores morreram electrocutados quando operavam teares, devido a cablagem defeituosa, isolamento inadequado, falta de instalações MCB/ELCB (disjuntores), sem que o problema tenha recebido a atenção devida.

Mesmo com as medidas de segurança tomadas para minimizar os riscos, os trabalhadores advertem que as antigas máquinas de tear são um factor de risco. Os membros do comité executivo do PSSM informam: «O aumento dos casos de morte, especialmente durante as monções, levou-nos a enviar uma carta reivindicativa ao magistrado distrital, em Surate, em Maio deste ano. Posteriormente, dois trabalhadores morreram devido a choque elétrico.»

«Só em Agosto, registámos cinco acidentes. Mas o gabinete da Direcção de Segurança e Saúde Industrial [DISH] informou-nos que isso não é da sua competência, uma vez que as unidades não estão registadas como fábricas», prossegue o sindicato.

«Coloca-se então a questão de saber quem é o responsável e onde devemos ir. É uma questão que nos preocupa seriamente», afirma o PSSM, que ainda não recebeu uma resposta do gabinete do magistrado distrital sobre as acções ou orientações que foram dadas aos departamentos.

Trabalhando em Surate há mais de uma década, o Aajeevika Bureau dirigiu também uma iniciativa de segurança única com os donos dos teares em 2021. Com uma contribuição parcial da organização e maior dos proprietários, foi adoptada uma lista de medidas de segurança num estabelecimento denominado «Local de Trabalho Modelo».

Até à data, foram cridos 36 locais de trabalho modelo no distrito, abrangendo questões como a limpeza geral e instalações básicas, sensores de luz, cablagem, isolamento ou disjuntores MCB/ELCB – locais onde os trabalhadores não reportaram quaisquer casos de ferimentos ou de electrocussão.

Partindo destas unidades como «modelo», estão a ser feitos esforços junto de outras nas proximidades para que adoptem medidas de segurança básicas e, muitas vezes, económicas.

Mesmo num contexto marcado pela diluição dos poderes da inspecção na nova legislação laboral, ninguém conhece tão bem a situação como os trabalhadores. Assim, o sindicato continua a fazer pressão junto das autoridades competentes e a denunciar violações flagrantes das regulamentações laborais relativas ao pagamento formal dos salários ou aos cartões de identificação para os trabalhadores.

O antigo presidente do PSSM observa: «Já somos velhos e esta luta pode demorar cinco, dez ou até 20 anos, mas vamos manter as nossas reivindicações por um trabalho digno para os trabalhadores dos teares e esperamos que isso obrigue alguém a ouvir-nos.»

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