|violência contra as mulheres

Processo dos violadores de Gisèle Pelicot, violência masculina e cultura da violação

Como classe de sexo, os homens têm que deixar de violentar as mulheres. Dentro e fora de casa, é preciso deixar de cultivar a violência e a exploração como uma forma de estar no mundo. É de facto, urgente o amor.

Gisèle Pelicot, acompanhada dos seus advogados, prepara-se para fazer uma declaração à imprensa, no dia em que foi anunciada a sentença que condenou a vinte anos de prisão Dominique Pelicot, seu marido, por ter drogado, violado e convidado dezenas de homens a violá-la na casa do casal, em Mazan. Cinquenta outros homens foram condenados no processo. Avignon, França, 19 de Dezembro de 2024.
Gisèle Pelicot prepara-se para fazer uma declaração à imprensa, no dia em que Dominique Pelicot, seu marido, foi condenado por a ter drogado, violado e convidado dezenas de homens a violá-la. Avignon, França, 19 de Dezembro de 2024.CréditosGUILLAUME HORCAJUELO / EPA

Quero uma trégua de 24 horas, durante a qual não haja nenhuma violação. 
Andrea Dworkin

«Ao abrir as portas deste processo, no passado dia 2 de setembro, quis que a sociedade pudesse apropriar-se dos debates que aqui tiveram lugar. Nunca lamentei esta decisão.» Foi assim que Gisèle Pelicot se despediu da multidão que a esperava à porta do tribunal, no dia em que terminou o processo dos seus violadores.

Gisèle é uma heroína do nosso tempo, uma mulher de quem a historia se lembrará, que quiseram reduzir a nada e que se tornou tudo. Uma mulher que quiseram reduzir a um corpo inerte, drogado, passivo, um corpo a que os homens tudo podiam fazer para obter prazeres sexuais. Procuraram transformá-la num objecto, numa coisa de que se dispõe. Mas Gisèle sobreviveu, recusou a desumanização imposta pelos seus violadores, recusou o anonimato, insistiu para que os vídeos das suas violações fossem vistos por todos, recorrendo até da decisão do juiz que quis proibir a presença do público e dos jornalistas na sala de audiência quando os vídeos fossem projectados.

Foi um processo relativamente curto, se tivermos em consideração o número de agressores. Fora dos tribunais que julgam crimes de guerra, são raros os processos com tantos acusados. Mas foi sobretudo o processo da cobardia, como lhe chamou Gisèle que, através da projecção dos vídeos realizados pelo ex-marido, deu a ver ao mundo claramente, cruamente, o que é uma violação e quem são os violadores. Vídeos com nomes de tal modo pornográficos, de tal modo nauseabundos, que o juiz deixou de os ler no decorrer do processo. Vídeos insuportáveis, em que ouvimos Gisèle a ressonar, a vemos ser penetrada em todos os orifícios, em que vemos os homens pegar-lhe como se fosse uma boneca, para a por mais a jeito, para a reposicionar, em que os vemos segurar-lhe a cabeça, abrir-lhe a boca para que o outro lhe consiga ali enfiar o pénis, em que a ouvimos sufocar, engasgar-se, em que os vemos gozar, sorrir, cúmplices do crime cometido, frente às câmaras que todos sabiam ligadas, na certeza da impunidade masculina que atravessa e molda as nossas sociedades. Aquela mulher que ali estava não era um ser humano, mas um objecto, um conjunto de buracos, um recipiente. Quem viria em seu socorro?

«Fora dos tribunais que julgam crimes de guerra, são raros os processos com tantos acusados. Mas foi sobretudo o processo da cobardia, como lhe chamou Gisèle que, através da projecção dos vídeos realizados pelo ex-marido, deu a ver ao mundo claramente, cruamente, o que é uma violação e quem são os violadores»

Os violadores de Gisèle eram homens vulgares, socialmente integrados, com companheiras, filhos e filhas, com profissões diversas, enfermeiro anestesista, camionista, ladrilhador, jornalista, operário, alguns conhecidos da justiça, outros não. Homens vulgares, como os que nos rodeiam. Também nisso este processo fez história: ao arrasar com o protótipo do violador em série, mostrou que há quem viole uma só vez e que violar uma só vez, é ser um violador. Se o humor negro resolvesse alguma coisa, era caso para dizer que este processo nos deu a ver que «eles andam entre nós». A maioria destes homens negou no entanto serem violadores. Afirmaram não ter tido intenção de violar Gisèle e muitos foram os que tentaram a auto-vitimização: tinham caído na esparrela de um grande manipulador, tinham-se encontrado ali, a penetrar uma mulher adormecida, por inadvertência. Mas se este foi um dos argumentos centrais da defesa, o processo dos violadores de Mazan é o exemplo acabado do que é a cultura da violação:

Dominique Davis, 45 anos, camionista, disse que não tinha curtido, por isso não era uma violação.

Redouane Azougagh, 40 anos, desempregado, disse que a tinha penetrado devagarinho e que não a tinha magoado, por isso não era uma violação.

Andy Rodriguez, 37 anos, desempregado, disse que o marido tinha autorizado, por isso não era uma violação.

Redouane El Fahiri, 55 anos, enfermeiro anestesista, disse que Gisèle era cúmplice do complot em que ele tinha caído, por isso não era um violador.

Hugues Malago, 39 anos, ladrilhador, disse que não podia saber que ela tinha sido drogada, porque não sabia como ela dormia habitualmente, por isso não era um violador.

Christian Lescole, 56 anos, bombeiro, disse que o que se via nos vídeos era o corpo dele mas não o cérebro, por isso não era um violador.

Abdelali Dallal, 47 anos, cozinheiro, disse que nos vídeos se via um sósia, por isso se alguém era culpado, não era ele.

Ahmed Tbarik, 54 anos, canalizador, disse que se tivesse que violar alguém, não havia de ter sido uma mulher de 57 anos, mas uma mulher bonita.

Patrick Aron, 60 anos, sem profissão, disse que tinha penetrado Gisèle a contra-gosto, para agradar ao marido, porque era homosexual e era numa relação com ele que estava interessado.

Nizar Hamida, 41 anos, cabeleireiro de formação, disse que não era um violador e perguntou ao tribunal porque é que havia de ter ido violar uma mulher de 66 anos.

Lionel Rodriguez, 44 anos, vendedor, disse que procurava fora o que não tinha em casa.

Nicolas François, 42 anos, jornalista, disse que o que procurava era uma relação homossexual.

Philippe Leleu, 62 anos, jardineiro, disse que não sabia que «enfiar um dedo» era violar.

Guillaume de Palma, advogado de diversos acusados, disse que «há violação e violação».

Louis Bonnet, presidente da câmara de Mazan, disse que podia ter sido pior, que ao menos não tinha morrido ninguém.

Paul Govrogui, 31 anos (22 anos no momento das violações), operário que espera vir a tornar-se padre, disse que a comunicação social lhe sujou o nome.

Romain Vandevelde, 63 anos, reformado, seropositivo, afirmou ter ido a casa de Gisèle seis vezes porque precisava de criar laços sociais e esperava que mais tarde pudessem sair, ir ao teatro, jantar fora…

Christian Bruschi, advogado de um dos agressores, disse aos jornalistas e ao público reunido à porta do Tribunal (maioritariamente mulheres), imediatamente após a leitura das sentenças – «Tenho um recado do meu cliente para estas histéricas, estas línguas de trapos: Merda!»

Obrigada, Gisèle, por nos teres permitido ver e ouvir com clareza tudo isto.

E em Portugal, como estamos? O Público publicou recentemente uma reportagem sobre o grupo Telegraph onde 70 mil homens publicam diariamente imagens de mulheres, das suas companheiras, nuas, meias despidas, grávidas, novas, velhas, dos seus seios, dos seus cus, sexos, ancas, costas, de tudo o que numa mulher se pode sexualizar e sobre elas tecem comentários obscenos e degradantes. Sem elas saberem. Sem ela saber (A son insu) era também o nome do grupo onde o ex-marido de Gisèle e os seus violadores se encontraram, para trocar fotografias das suas mulheres, das suas noras, filhas, netas… O que pensam o governo e a justiça portuguesa fazer sobre isto? Ao permitirem que este tipo de espaços virtuais se mantenham, os Estados criam condições para que estes homens estabeleçam contactos, se reúnam, se organizem, devassem a vida das mulheres, fazendo pesar sobre todas nós, as nossas mães, as nossas irmãs, as nossas amigas, o risco de acabarmos ali, transformadas em imagens para consumo, como gado apreciado na feira, que se compra e vende, se abate. Estes espaços virtuais não só autorizam a manutenção de violências masculinas, como as normalizam. O calvário de Gisèle durou dez anos, dez anos durante os quais nenhum homem, dos que foram violar Gisèle e dos outros, que recusaram o convite do marido, alertou a polícia. Nenhum. Nenhum deles achou que era necessário. Tudo aquilo era normal.

«Ao permitirem que este tipo de espaços virtuais se mantenham, os Estados criam condições para que estes homens estabeleçam contactos, se reúnam, se organizem, devassem a vida das mulheres, fazendo pesar sobre todas nós, as nossas mães, as nossas irmãs, as nossas amigas, o risco de acabarmos ali, transformadas em imagens para consumo, como gado apreciado na feira, que se compra e vende, se abate. Estes espaços virtuais não só autorizam a manutenção de violências masculinas, como as normalizam»

No processo dos violadores de Gisèle, os vídeos, as fotografias, eram provas incontornáveis do horror. Mas importa relembrar que não é assim na maioria dos casos. Da mesma forma, Gisèle, na sua muita coragem, encarna o protótipo da vítima respeitável – é uma mulher branca, da classe média, educada, de idade, mãe e avó, apoiada pelos filhos e netos. Nem todas as vítimas se parecem com ela. E ainda assim, Gisèle teve que responder em tribunal a perguntas humilhantes – não teria ela um lado exibicionista? porque é que tinha tomado banho nua na piscina lá de casa? não tinha ela um vibrador? não costumava ela beber? A violência que sobre ela se abateu foi tal que na sua primeira intervenção em tribunal, Gisèle disse sentir-se humilhada. Vai este processo ajudar-nos a compreender melhor as estratégias dos violadores e dos agressores em geral e vamos daqui tirar lições para proteger melhor as vitimas? Vão de uma vez por todas deixar de lhes perguntar o que vestiam? o que beberam? porque é que estavam ali àquela hora? porque é que abriram a porta? porque é que não gritaram? porque é que não apresentaram queixa antes? Vai este processo permitir-nos avançar em direcção à famosa trégua de 24 horas de que nos falava Andrea Dworkin ? Vai este processo permitir-nos perceber que patologizar os violadores é perpetuar a cultura da violação?

Em França, este processo obrigou já o Governo a tomar medidas concretas, de formação dos profissionais de saúde para deteção das situações de submissão química, de reembolso dos testes de despistagem; reabriu o debate sobre as penas (porque é de vinte anos a pena máxima para um violador, tenha violado uma mulher, duas, três, um cento?), reclama-se uma lei de bases contra as violências sexuais e abriu-se um debate sobre o consentimento.

O consentimento… uma palavra que reproduz esta ordem sexual patriarcal em que os homens propõem e as mulheres aceitam, numa lógica muito próxima da colonial, em que a conquista é mais excitante que o desejo partilhado. Também sobre isto é tempo de avançar e ao consentimento preferir uma visão do mundo onde os desejos se encontram, onde seres humanos livres e iguais se desejam mutuamente, por uma hora, por uns dias, por uma vida.

O julgamento dos violadores de Gisèle terminou, mas a luta contra as violências masculinas continua. É urgente que os homens, como classe de sexo, compreendam e assumam que a violência dos homens contra as mulheres é um problema que os homens têm que resolver. E deixemos de dizer, «ah mas nem todos os homens…» porque «todas as mulheres»! Como classe de sexo, os homens têm que deixar de violentar as mulheres. Dentro e fora de casa, é preciso deixar de cultivar a violência e a exploração como uma forma de estar no mundo. É de facto, urgente o amor.

Aida Alves

Professora

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