|Saara Ocidental

Protestos nas Canárias com o Saara ali tão perto

Em Tenerife e Las Palmas protestou-se contra o reconhecimento por Madrid da soberania de Marrocos sobre o Saara Ocidental, contestado até na coligação, encabeçada pelo PSOE, que governa as Canárias.

Milhares de manifestantes protestaram em Tenerife e Las Palmas (na foto), nas ilhas Canárias, região autónoma espanhola ao largo da costa africana, a 26 de Março de 2022, contra o reconhecimento pelo governo de Madrid da soberania de Marrocos sobre o Saara Ocidental, contra todas as resoluções da ONU
CréditosI. Durán / La Provincia

Centenas de manifestantes concentraram-se no sábado em frente às representações do Estado espanhol nas duas capitais canárias, Las Palmas e Tenerife, para mostrar o seu repúdio à alteração de posição do governo central sobre a autonomia do Saara Ocidental, informa a Cadena Ser.

Recentemente, o governo de Pedro Sánchez alterou radicalmente a posição histórica de Espanha sobre a questão saarauí, trocando a exigência de um referendo de autodeterminação, determinado por todas as resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) desde os finais dos anos setenta, pelo apoio a uma autonomia do território sob a soberania marroquina, como defende a potência ocupante.

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A «traição» de Sánchez não altera a vontade de luta do povo saarauí

A Frente Polisário qualificou como «traição» o apoio do governo espanhol ao plano de autonomia marroquino. Brahim Ghali sublinhou que a natureza jurídica do conflito e a vontade de luta do povo se mantêm.

Créditos / @NestorRego

Em declarações à TV argelina, este domingo, o presidente saarauí e secretário-geral da Frente Polisário, Brahim Ghali, afirmou que a «estranha e surpreendente posição» expressa pelo governo espanhol «não altera a natureza jurídica do conflito do Saara Ocidental, nem atribui soberania ao Estado de ocupação marroquino sobre o território».

Ghali disse ainda que a decisão do governo liderado por Sánchez, que qualificou como «imoral e vergonhosa», «não afecta minimamente a vontade do povo saarauí de prosseguir a sua justa e legítima luta» pela soberania sobre «todo o território nacional».

À luz do direito internacional, o Saara Ocidental não é marroquino, acrescentou, frisando que a decisão sobre a soberania cabe exclusivamente ao povo saarauí.

O chefe de Estado louvou ainda a «solidariedade dos povos de Espanha» com a «justa causa» saarauí e disse esperar «uma acção urgente», para «corrigir este novo erro» e para que o «Estado espanhol assuma as suas responsabilidades», que «não desaparecem com o tempo».

«Traição ao compromisso da sociedade espanhola»

Na sexta-feira passada, o governo espanhol, sintonizado com as teses de Rabat, indicou que o plano de autonomia de Marrocos para o Saara Ocidental, apresentado em 2007, é «a base mais séria, realista e credível» para a resolução do conflito.

A decisão foi muito criticada em Espanha, onde existe um amplo movimento de solidariedade com o Saara Ocidental. Mais de uma dezena de partidos solicitaram a presença do primeiro-ministro espanhol no Parlamento, exigindo-lhe explicações sobre uma «marcha atrás» também criticada por parceiros da coligação governamental.

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A paz no Saara Ocidental é possível se «for aplicada a legitimidade internacional»

A possibilidade da paz no Saara Ocidental depende da aplicação da legitimidade internacional, permitindo o exercício do direito à autodeterminação, afirmou o presidente saarauí, Brahim Ghali.

Brahim Ghali, presidente da RASD (imagem de arquivo)
Créditos / sudhorizons.dz

«É absolutamente impossível esperar a paz e a estabilidade na região a menos que a legitimidade internacional, plasmada na Carta das Nações Unidas, e na Acta de Fundação da União Africana [UA], seja implementada», afirmou Ghali este domingo, na abertura do IX Congresso da União Geral dos Trabalhadores Saarauís.

«Isso permitiria ao povo saarauí exercer o seu direito inalienável à autodeterminação e à independência», acrescentou, citado pela Sahara Press Service (SPS).

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«No Saara Ocidental há uma guerra a sério»

Entrevistado pela RT, o delegado da Frente Polisário em Espanha afirma que Marrocos nega a existência da guerra em função dos seus interesses. Também fala do apoio dos EUA e da inoperância da Minurso.

Soldados da Frente Polisário no Saara Ocidental, em Setembro de 2016
CréditosZohra Bensemra / RT

Há pouco mais de um mês, no Saara Ocidental, as forças militares marroquinas dissolveram uma manifestação de cidadãos saarauís que bloqueavam a chamada «passagem de El Guerguerat», o que levou a Frente Polisário (movimento de libertação nacional do Saara Ocidental) a acusar o Reino de Marrocos de violar o cessar-fogo em vigor desde 1991 e a declarar a guerra a Marrocos, que ocupa ilegalmente o território saarauí há 45 anos.

Voltava assim a intensificar-se um conflito que permanecia há alguns anos em estado latente, marcado pela ocupação, o saque permanente dos recursos saarauís – levado a cabo num território rico em minerais e pesca –, a brutal repressão sobre o povo saarauí, num contexto de cumplicidade internacional e inoperância da Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental (Minurso), que foi incapaz de concretizar o referendo de autodeterminação que as resoluções da ONU defendem como via para se chegar a bom porto.

A Frente Polisário, pela voz do seu líder, Brahim Ghali, denunciou que a operação militar marroquina em El Guerguerat «minou seriamente não só o cessar-fogo e os acordos militares relacionados, mas também qualquer possibilidade de alcançar uma solução pacífica e duradoura para a questão da descolonização do Saara Ocidental».

Uma guerra silenciada

Abdullah al-Arabi, delegado da Frente Polisário em Espanha, encara o episódio de El Guerguerat como «o detonante que fez com que agora haja no Saara Ocidental uma guerra pura e dura», refere a RT.

Para al-Arabi, «ficou claro que o cessar-fogo foi quebrado» e que a Minurso «já não tem qualquer papel no terreno, uma vez que o seu objectivo era realizar um referendo de autodeterminação e 29 anos depois não foi capaz de o fazer».

O representante em Espanha da Frente Polisário também critica o silêncio de Marrocos sobre o conflito e sua natureza bélica: «Marrocos está a tentar negar a existência da guerra», diz al-Arabi, que desafía a Minurso – ainda no terreno – a «dizê-lo também». Al-Arabi denuncia que este organismo «está a esconder a realidade», em vez de «assumir o seu papel e elaborar um relatório para comunicar a situação real à ONU e à comunidade internacional em geral».

Por seu lado, Marrocos «não quer que se fale da guerra porque ainda tenta conseguir apoios que garantam a sua soberania sobre um território que está a ocupar pela força e de forma ilegal», disse à RT. Já a Frente Polisário tem feito um esforço no sentido informar sobre os confrontos militares com Marrocos, sobretudo através da agência de notícias oficial da República Árabe Saarauí Democrática (RASD), a Sahara Press Service (SPS).

A importância da passagem de El Guerguerat

O representante da Frente Polisário lembra que esta passagem não é uma simples passagem fronteiriça cuja utilização tivesse sido bloqueada, por capricho, por civis saarauís há cerca de dois meses. Trata-se de uma estrada construída por Marrocos numa zona designada, segundo um acordo supervisionado pela ONU, como «zona de contenção» do conflito.

Quando tal acordo foi firmado, em 1997, a estrada não existia, da mesma forma que o texto não contemplava a abertura de nenhuma passagem fronteiriça. Foi a própria Minurso que denunciou a actividade marroquina na zona, em 2001, advertindo que a construção de uma estrada ali poderia ser uma «violação do acordo de cessar-fogo».

Em 2016, Marrocos insistiu na construção da passagem de El Guerguerat e decidiu asfaltar a estrada – algo que a «Frente Polisário tentou impedir, mas a ONU interveio». «Pediu-nos que nos retirásse-mos para evitar uma escalada de tensão na zona, e nós acedemos com a condição de a ONU enviar uma comissão técnica para analisar a situação, coisa que nunca fez», explica al-Arabi.

Entretanto, Marrocos aproveitou para acabar de asfaltar a estrada, que passou a ser, de facto, uma «passagem fronteiriça» [com a Mauritânia], nunca foi apoiada pela comunidade internacional, mas cujo papel na guerra iniciada em 13 de Novembro último não costuma ser explicado.

A agravante do apoio dos EUA a Marrocos

Recentemente, Donald Trump reconheceu a alegada soberania de Marrocos sobre o território do Saara Ocidental. Se os negócios dos EUA, da UE e de outros países e blocos com o Reino marroquino eram às claras, este passo ninguém tinha dado. Em troca, Rabat reestabeleceu por completo, também às claras, as suas relações diplomáticas com Israel.

Para Abdullah al-Arabi, a declaração de Trump «faz parte de uma campanha orquestrada por Marrocos há muitos anos, sobretudo nos últimos sete ou oito, que consiste em tentar impor o reconhecimento da sua soberania sobre o território saarauí».

«Marrocos – disse al-Arabi à RT – não tem qualquer interesse na realização do referendo de autodeterminação, nem em alcançar uma solução política: o que quer é impor o facto consumado e, para isso, precisa do reconhecimento de alguma potência».


Ainda assim, admite que este apoio os surpreendeu. Nenhum país se tinha demarcado da resolução oficial da ONU que define o Saara Ocidental como território não autónomo e que tem um processo de descolonização por resolver.

«Não imaginávamos que os EUA pudessem pronunciar-se contra algo tão básico, tão claro e tão nítido como essa questão, que figura na agenda da ONU desde 1960, 15 anos antes da ocupação ilegal do território», disse o representante saarauí, referindo-se à invasão militar que Marrocos levou a cabo em 1975, conhecida como «Marcha Verde».

A decisão da Casa Branca «é totalmente errada e não está de acordo com o direito internacional», e contribui ainda para «elevar a tensão na região do Norte de África» e «afastar a perspectiva de qualquer solução», afirmou o delegado da Frente Polisário.

«Um presente envenenado»

Se Marrocos celebra o apoio de Washington como triunfo diplomático sem precedentes, a Frente Polisário faz uma leitura política diferente. Al-Arabi explica que as relações diplomáticas entre Marrocos e Israel sempre existiram; aquilo que a decisão do presidente norte-americano fez foi obrigar a torná-las públicas.

«Obrigaram a torná-las públicas em troca deste presente, que é um presente envenenado, porque a nível interno não vai ser fácil gerir a questão; a nível da opinião pública árabe tão-pouco; e, a nível dos apoios à causa palestiniana em Marrocos, vai dar muitas dores de cabeça», entende o delegado da Polisário.

«Marrocos apostou na busca de um impacto mediático de grande calibre», disse al-Arabi à RT, sublinhando que as consequências deste movimento internacional «vão ser desastrosas tanto para Marrocos como para a região do Norte de África e os interesses económicos da Europa, fundamentalmente de França e Espanha».

No que respeita a este último país, al-Arabi considera «preocupante e decepcionante a atitude de todos os seus governos ao longo dos últimos 45 anos, em especial nos últimos sete ou oito», sobre a questão da independência do Saara Ocidental.

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Falando no campo de refugiados de Dakhla, o secretário-geral da Frente Polisário e presidente da República Árabe Saarauí Democrática (RASD) pediu às Nações Unidas e à UA que acelerem o cumprimento dos requisitos do plano de paz UA-ONU de 1991, na medida em que se trata do único acordo assinado pelas duas partes em conflito e apoiado pelo Conselho de Segurança da ONU.

Brahim Ghali acusou Marrocos de, «com o beneplácito de França, actuar com impunidade e prosseguir com as suas práticas coloniais e tentativas de impor a política de factos consumados pela força no Saara Ocidental ocupado», refere a fonte.

Conferência solidária celebrada nas Canárias foi um «êxito»

Abdullah al-Arabi, delegado da Frente Polisário em Espanha, considerou um «êxito» a 45.ª edição da EUCOCO – Conferência Europeia de Apoio e Solidariedade com o Povo Saarauí, que decorreu em Las Palmas nos dias 10 e 11 de Dezembro.

Em declarações à agência SPS, al-Arabi destacou a participação no evento tanto em termos quantitativos como qualitativos, «com mais de 200 delegados de 23 países e intervenções de primeiro nível».

Abdullah al-Arabi, representante da Frente Polisário em Espanha / eldiarioalerta.com

Em seu entender, estes elementos mostram que «a causa saarauí continua a gozar de boa saúde no que à solidariedade e êxitos políticos e jurídicos se refere».

O facto de a conferência solidária se ter celebrado em «circunstâncias excepcionais» e cumprido «as expectativas» foi destacado pelo dirigente, que sublinhou igualmente a dimensão simbólica e política de se ter realizado nas Canárias, a menos de 100 quilómetros dos territórios ocupados.

Abullah al-Arabi instou o movimento solidário a «continuar a defender a luta do povo saarauí porque é a luta pela paz, a justiça, o direito internacional e os direitos humanos».

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Abdullah al-Arabi, delegado da Frente Polisário em Espanha, denunciou este sábado que a aposta de Espanha na autonomia do Saara Ocidental é uma de muitas traições sofridas pelo povo saarauí nos últimos 46 anos, e sublinhou que, acima de tudo, «trai o compromisso e a solidariedade da sociedade espanhola», refere o Sahara Press Service (SPS).

«Espanha está a tentar impor a escolha de uma das partes como única solução para o conflito do Saara Ocidental», disse al-Arabi, frisando que se trata de uma mudança de posição relativamente às Nações Unidas e também «a um consenso que existiu na política externa espanhola nos últimos 46 anos».

O governo espanhol está a «pagar uma portagem para tentar recuperar as suas relações com Marrocos», acusou o delegado da Frente Polisário, explicando que não se opõe a esse bom relacionamento, mas que tal não pode acontecer à custa do «sacrifício do povo saarauí».

ONU pede respeito pela legalidade internacional

A Organização das Nações Unidas indicou este domingo que, para se alcançar uma saída pacífica para o conflito na antiga colónia espanhola, é necessário apoiar o processo político traçado pelo organismo.

Stéphane Dujarric, porta-voz da ONU, convidou todas as partes a apoiar os esforços do enviado pessoal para o Saara Ocidental, Staffan de Mistura, que visam retomar o processo de negociação directa entre as partes em conflito.

Dujarric, refere a TeleSur, reiterou a importância de manter o pleno compromisso das partes com o processo político liderado pela ONU, em linha com a resolução aprovada pelo Conselho de Segurança em Outubro último, que prevê o direito de autodeterminação do povo do Saara Ocidental.

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Em Las Palmas, segundo a Cadena Ser, foi lido e aprovado um manifesto que reivindica a via pacífica das urnas como única alternativa à guerra. Octavio Melíán, presidente da Associação Canária de Solidariedade com o Povo Saarauí, organizadora do protesto, assegurou que o apoio nas Canárias ao povo saarauí permanece vivo e é também fruto «dos vínculos tradicionais que unem as ilhas ao Saara Ocidental», uma antiga colónia espanhola de onde «mais de 15 mil canários foram desalojados quando o estado abandonou o território em 1975».

Para Melián, por esse motivo e por o arquipélago ter servido de refúgio para muitos saarauís em fuga da repressão exercida por Marrocos em quase cinco décadas de ocupação, o apoio à Frente Polisário, que luta pela independência do Saara Ocidental, é cada vez maior entre nas Ilhas Canárias.

Em Santa Cruz de Tenerife, o delegado da Frente Polisário nas Canárias, Hamdi Mansour, depois de agradecer a comparência, de representantes dos partidos Podemos, Esquerda Unida e Coligação Canárias, afirmou que um Governo progressista «não pode desvincular-se da sua responsabilidade histórica nesta situação», relata o canariasahora.

Segundo a mesma fonte, muitas famílias saarauís residentes na região juntaram-se ao protesto por um Saara livre, entre elas Naja, Chamanda, Ismail, três mulheres que trouxeram com elas os seus filhos e intervieram recriminando o Governo de Espanha por «ter vendido pela segunda vez o seu povo».

A decisão do primeiro-ministro Pedro Sánchez «não representa o povo espanhol, e muito menos o povo saarauí», declarou o presidente da Associação Saara-Canárias Concórdia, Salem Murtaj, que salientou o duplo critério utilizado por Sánchez na política internacional, nomeadamente aceitando a invasão de Marrocos no Saara enquanto apoia a Ucrânia contra a invasão russa: «na Ucrânia apoias a legislação internacional e no Saara apoias a ditadura marroquina», afirmou, sublinhando que o primeiro-ministro nem sequer contou com o apoio «dos seus sócios de Governo».

Muitas famílias saarauís, residentes nas Ilhas Canárias, participaram nas manifestações em defesa dos direitos do povo saarauí, ocorridas em Las Palmas e Santa Cruz de Tenerife (na foto), a 26 de Março de 2022 CréditosAndrea Domínguez Torres / canariasahora

Causa saarauí tem amplo apoio na região

As forças políticas nas Canárias expressaram, neste sábado, em torno da questão do Saara Ocidental, um amplo consenso de apoio a uma solução negociada, que respeite o Direito Internacional e acate as decisões da ONU, incluindo a coligação governativa liderada pelo Partido Socialista das Canárias (PSC), escreve o canariasahora.

O presidente do governo regional, questionado sobre a imigração clandestina para as ilhas a partir de Marrocos, qualificou de «positiva» a «normalização» com aquele país, que tem nas mãos o controlo desse fluxo migratório, mas defendeu que una solução do conflito «que seja duradoura, justa e aceite por todas as partes», referindo-se à Frente Polisário e ao Reino de Marrocos.

Os parceiros dos socialistas no governo regional foram mais críticos para Pedro Sánchez. A Associação Socialista de Gomera declarou não compartilhar a «mudança radical e de última hora» do governo central. Podemos qualificou de «indecência histórica» a posição do primeiro-ministro espanhol, que acusou de se «pôr de joelhos» e de ceder à «chantagem» do Governo de Marrocos.

Do partido Nova Canárias vieram as críticas mais duras. O beneplácito do governo de Madrid à proposta de Marrocos para que a autonomia do Saara Ocidental se faça sob a tutela e soberania daquele país foi considerado por Nova Canárias como uma atitude «própria de um Estado sem princípios». O partido é um dos grandes defensores dos direitos do povo saarauí no arquipélago, tendo uma das suas militantes, Inês Miranda, sido expulsa há alguns meses pelo governo marroquino, junto a outros activistas da causa saarauí.

Na oposição, o Partido Nacionalista Canário, falou de «punhalada» a decisão de Madrid, a Comunidade Canárias pediu explicações ao Governo e até o Partido Popular (PP) local lamentou a mudança de rumo «sem consenso» e unilateral».

Deputados de diversas forças políticas estão a solicitar a comparência do primeiro-ministro espanhol no parlamento canário, para debater as suas posições favoráveis a Marrocos, tanto mais preocupantes quanto face à la «decisão unilateral e ilegal do reino alauita de ampliar a sua fronteira marítima, ocupando águas territoriais do arquipélago e do Sáhara».

Recorde-se que o arquipélago das ilhas Canárias fica a pouco mais de 100 quilómetros da costa africana, próximo a Marrocos e ao Saara Ocidental.

Um subsolo rico, um vizinho poderoso e um povo que não se rende

O subsolo do Saara Ocidental é muito rico em recursos naturais, com grandes jazidas de fosfatos, petróleo, gás natural e zircónio. É um grande exportador de areia para cimento, com milhares de toneladas a chegarem todos os anos às Canárias. As suas águas são ricas em pesqueiros.

Todas estas riquezas, cuja importância acresce no actual contexto de guerra económica, são exploradas não pelo povo saarauí mas por Marrocos, potência ocupante desde 1975.

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Rapina colonial: da pesca no Saara ao ouro da Venezuela

Da pesca subtraída aos sarauis ao petróleo e ao ouro expropriados aos venezuelanos, passando pela fruta colhida em terras palestinianas roubadas por Israel, se nutre a economia europeia chancelada por Trump.

Parlamento Europeu e Tribunal de Justiça Europeu. Foto de arquivo.
Créditos / jornal O Tornado

O Parlamento Europeu não vê qualquer inconveniente em que a União Europeia tenha um acordo comercial com Marrocos que inclua os direitos de pesca nas costas do Saara Ocidental, território violentamente ocupado e aguardando que as Nações Unidas procedam a um processo de descolonização.

Quer isto dizer que a maioria dos membros do único órgão da União Europeia eleito directamente pelos cidadãos não se limita apenas a aceitar como parceiro preferencial de negócios um Estado que viola grosseiramente o direito internacional; ainda admite que se tire proveito da situação, roubando riquezas alheias sem que os legítimos proprietários possam defender-se – porque lhes foram retirados os mais elementares direitos humanos e nacionais.

Esta história tem ainda elementos de um cinismo cruel, envolvendo outros órgãos da União Europeia. O Tribunal Europeu de Justiça recomendou, por exemplo, que o acordo seja aplicado com o «consentimento da população» do Saara Ocidental; e o Conselho Europeu, a estrutura onde estão representados os governos dos Estados membros, determina que a delapidação da riqueza pesqueira do território seja feita em benefício da população saaraui.

Ora como obter o «consentimento» de uma população a quem tem sido vedado, em mais de 30 anos, pronunciar-se, ao menos em referendo, sobre se quer ser independente ou continuar sob a violenta arbitrariedade marroquina? Como irá a União Europeia assegurar o «consentimento» dos saarauis, um dos povos mais desprotegidos e esquecidos do planeta?

E que garantias tem o Conselho Europeu de que a população usufrua de benefícios da pesca feita por embarcações estrangeiras, sendo certo que, se por absurdo, estes fossem disponibilizados, teriam de passar pelos filtros dos ocupantes marroquinos?

Longa cumplicidade colonial

O episódio registado agora no Parlamento Europeu é apenas mais um na longa saga de cumplicidade colonial das instituições europeias com a ocupação marroquina.

Marrocos e a União Europeia têm relações económicas preferenciais e o acordo comercial é de longa data, como velho é o assalto europeu às riquezas pesqueiras do povo saaraui, obviamente sem o consentimento deste e também sem que lhe seja permitido usufruir de qualquer benefício.

«a União Europeia é, nesta matéria, como um livro aberto onde se lê uma tendência muito especial para incluir Estados ocupantes entre os parceiros preferenciais de negócios»

Acontece que, na própria linguagem dos parlamentares responsáveis por estas medidas, o acordo comercial com Marrocos, já existente, foi agora «liberalizado» e formalmente estendido às águas territoriais do Sara Ocidental. Isto é, o que já acontecia na realidade foi agora explicitado, com o aval do Tribunal Europeu de Justiça e do Conselho dos governos, sempre muito escrupulosos, ainda que só por palavras, com o respeito pelos direitos dos povos e dos seres humanos.

Dedo para a parceria com ocupantes

Aliás a União Europeia é, nesta matéria, como um livro aberto onde se lê uma tendência muito especial para incluir Estados ocupantes entre os parceiros preferenciais de negócios.

Israel tem acordos comerciais e económicos preferenciais com a União Europeia; em muitos casos é como mais um membro da irmandade, não constituindo problema de relevo o facto de, tal como Marrocos, bloquear os direitos elementares de um povo, o palestiniano.

A União Europeia convive muito bem com a importação de produtos israelitas fabricados em territórios usurpados a palestinianos há muito tempo ou mesmo mais recentemente, pois conhece-se a existência de laços económicos comprometedores – porque estão teoricamente vedados – com colonatos sionistas na Cisjordânia, estruturas que violam o direito internacional.

Também em relação a Israel haverá quem diga oficialmente, na União Europeia, que está acautelada a vontade dos palestinianos, tirando até benefícios da situação. De facto, as «ajudas» europeias ou quaisquer «compensações» com negócios processam-se sob o controlo de Israel – que tem sempre a última palavra sobre o seu destino final. Quando não é jogado nas manobras chantagistas que são o dia-a-dia da ocupação sionista, mesmo quando mitigada sob o rótulo de autonomia.

Quanto à questão essencial – o reconhecimento dos direitos nacionais e humanos dos palestinianos – a União Europeia continua a garantir que está permanentemente no seu horizonte de preocupações, como se verifica pelos conteúdos do discurso oficial, aquele que o mainstream difunde até à exaustão, para logro dos crédulos e, sobretudo, das principais vítimas, os palestinianos.

Negócios e direitos humanos têm tempos paralelos

Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa; e se Bruxelas continua a batalhar, através de palavras desgastadas, pelos direitos fundamentais dos ocupados, que isso não obste à fluidez dos negócios com os ocupantes. Negócio é negócio e tem os seus timings próprios e de oportunidade, que não devem ser prejudicados pelos timings políticos e diplomáticos, por norma muito mais longos, quiçá até infinitos. E a economia não pode esperar, tem de crescer, sobretudo nos tempos anémicos em que se arrasta.

«Os princípios democráticos e humanistas estão lá, nunca são nem foram esquecidos; mas que não entorpeçam os negócios, porque senão nem direitos, nem lucros»

A pesca sonegada ao povo saraui – e quem diz pesca pode acrescentar urânio e fosfatos – alimenta os cidadãos europeus e a economia europeia, do mesmo modo que a fruta, os produtos tecnológicos, produtos de beleza e o próprio festival da Eurovisão israelitas.

Pois que aprendamos com a maioria do Parlamento Europeia e a autocracia da Comissão e do Conselho, garantidas sempre pela produtiva aliança entre as direitas e a social-democracia, para que os negócios não sejam prejudicados pelos direitos dos povos e dos seres humanos, que correm na sua faixa própria e diferenciada, num tempo paralelo.

Os princípios democráticos e humanistas estão lá, nunca são nem foram esquecidos; mas que não entorpeçam os negócios, porque senão nem direitos, nem lucros. Se a democracia, entretanto, for enviesada, distorcida ou até mesmo posta entre parêntesis, paciência, será um dano colateral desde que o discurso oficial e as eleições, como um calendário religioso, continuem a cumprir-se para que tudo continue na mesma e se respeitem os rituais neoliberais.

A lição da Venezuela

Por isso mesmo é que a União Europeia não poderia permitir a continuação na Venezuela da situação política e económica sufragada eleitoralmente muitas vezes nas duas últimas décadas.

A União Europeia não pode tolerar, por exemplo, que os negócios prometidos pela existência das maiores reservas mundiais de petróleo – e são 300 mil milhões de barris – não tenham de submeter-se ao «mercado livre e soberano» e sejam mantidos ao serviço prioritário dos venezuelanos.

Torna-se obrigatória, por consequência, a realização de eleições que garantam os resultados que sirvam o «mercado» e não os que aconteceram há oito meses, que mais uma vez afirmaram a soberania da Venezuela.

«eleições que garantam os resultados certos e adequados para que prolifere o “mercado livre” [são] as únicas eleições que valem»

E enquanto se aguarda que as eleições produzam o que devem produzir, devem os venezuelanos ser educados pela fome até aprenderem a comportar-se, nem que seja tendo como mestres os psicopatas Bolton e Abrams, os fascistas Leopoldo López e Juan Guaidó. Tempos houve, por exemplo durante os governos do «social-democrata» Carlos Andrés Perez, em que os opositores eram lançados de aviões para as águas do oceano. Reinava então a «democracia» que ora se pretende restabelecer, enviando Maduro para o campo de concentração norte-americano da Guantánamo.

Para que isso volte a ser possível, as receitas da exportação do petróleo venezuelano foram agora entregues aos meios financeiros dos Estados Unidos, que sabem por natureza o que corresponde verdadeiramente aos interesses do «mercado livre».


E «expropria-se internacionalmente» o ouro venezuelano entregue por Caracas ao Banco de Inglaterra e que servia ao governo da Venezuela para comprar medicamentos, alimentos e outros produtos de primeira necessidade, de modo a ultrapassar as consequências das sanções assassinas decretadas em Washington, seja por democratas, seja por republicanos.

Roubar o ouro até nem foi difícil. O secretário norte-americano do Tesouro, Steven Mnuchin de seu nome – que antes foi figura de topo do Goldman Sachs, o «banco que governa o mundo» – inteirou-se do ouro venezuelano depositado no Bando de Inglaterra: 31 toneladas, no valor aproximado de 900 milhões de euros. Desse total, 14 toneladas estavam cativas há cerca de quatro meses, quando o Reino Unido se recusou a devolvê-las a Caracas, alegando «problemas logísticos»; e 17 toneladas transitaram recentemente do Deutsche Bank, onde serviram de garantia a uma dívida do Estado venezuelano já totalmente resgatada.

«Presume-se […] que o governo de Portugal e o Banco de Portugal são também responsáveis por este assalto aos bens do povo venezuelano. O que é próprio de uma verdadeira democracia que pretende «restabelecer a democracia» em terra alheia»

Revela o próprio Mnuchin que entrou em contacto com os governos e os bancos centrais dos países da União Europeia, com os quais acordou retirar ao governo venezuelano qualquer legitimidade sobre essa fortuna em lingotes.

E assim aconteceu. Fácil, simples, rápido, expedito. Presume-se, pois, fazendo fé na revelação do senhor Mnuchin, que o governo de Portugal e o Banco de Portugal são também responsáveis por este assalto aos bens do povo venezuelano. O que é próprio de uma verdadeira democracia que pretende «restabelecer a democracia» em terra alheia.

Da pesca subtraída aos sarauis, ao petróleo e ao ouro expropriados aos venezuelanos, passando pela fruta colhida em terras palestinianas roubadas por Israel se nutre pois a economia europeia, politicamente gerida pela sociedade neoliberal socialistas & direitas, limitada. Sempre com o aval democrático e agora, pelo sim pelo não, sob a chancela de Donald Trump.

Um aval democrático obtido em eleições que garantam os resultados certos e adequados para que prolifere o «mercado livre». As únicas eleições que valem.

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O território do Saara Ocidental esteve sob o domínio espanhol até 1976 (Saara Espanhol), sendo já então cobiçado por Marrocos e pela Mauritânia. A partir de 1968 desenvolvem-se movimentos independentistas, seguindo a tendência da maioria dos povos e nações africanos. Nesse ano foi criado o Movimento de Libertação de Saguia el-Hamra e Rio do Ouro.

Depois de manifestações em El Aiun, em 1970, que terminaram com fortes medidas repressivas, foi criada em Maio de 1973 a Frente Popular para a Libertação de Saguia el-Hamra e Rio do Ouro (Frente Polisário), que começou a luta armada contra Espanha.

Desde 1967 que a ONU colocou a Espanha a necessidade de proceder à descolonização do território, mas a disputa do mesmo entre Marrocos, Mauritânia e Espanha bloquearam soluções.

Finalmente o governo espanhol comunicou à ONU a intenção de promover um referendo de autodeterminação em 1975, o qual foi aprovado pela resolução 3458B de 10 de Dezembro de 1975 – que nunca foi cumprida mas permanece em vigor à luz do Direito Internacional

Entretanto, no mesmo ano, em Agosto, sob pressão dos Estados Unidos, o futuro rei de Espanha, Juan Carlos I, estabeleceu um acordo secreto com Marrocos pelo qual reconhecia a anexação do território em troca do reconhecimento pelos americanos do seu estatuto como rei.

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Reportagem

Sahara Ocidental. Esquecidos no deserto

Numa altura em que os saharauis, cansados de esperar pelo direito internacional e as promessas das Nações Unidas, voltam a pegar em armas, recordo a última vez que estive com um povo deixado no meio do deserto a quem roubaram a terra.

Créditos / Jorge Nogueira

São pedras a perder de vista. Lápides irregulares espalham-se sobre a areia por centenas de metros. O cemitério domina o campo de refugiados de Smara. As tendas e as casas de cor da terra estão lá em baixo, ocupam o horizonte, confundem-se com o deserto.

Cada pedra assinala alguém que morreu. A maioria dos habitantes fugiu aos bombardeamentos marroquinos em 1976, mas muitos já nasceram, viveram e terminaram aqui para todo o sempre. São a prova que o conflito do Sahara Ocidental dura há tempo de mais.

O motorista saharaui que nos acompanha, Deimi, aproveita para se prostrar junto ao lugar onde repousa um familiar. A morte é dura em todo o lado, aqui parece mais desesperada.

«Os velhos quando sentem que vão morrer pedem-nos para ser enterrados nos territórios libertados. Ninguém quer morrer aqui», diz-nos Sidahmed Ahmedbaceid (Sidi), o guia.

As pedras contam as histórias das pessoas que morreram no exílio. Uma pedra se for um homem, três pedras (junto à cabeça, barriga e pés) se for uma mulher, como Fnaina Chei Ahmed, que morreu a 1 de Março de 2010.

Quando morrem, os corpos são perfumados, embrulhados num lençol e deitados à terra do deserto. Familiares e amigos oferecem cabras e comida. Toda a gente pode comer em honra do morto. A vida e a morte neste lugar inóspito são assuntos de toda a comunidade. Se voltarem à sua pátria, os saharauis vão levar os mortos consigo. Até lá vai crescendo este cemitério das areias.

«No ano passado todo aquele lado não estava ocupado», garante Sidi.

A primeira vez que estive nos campos de refugiados na fronteira entre a Argélia e o Sahara Ocidental, as pessoas acreditavam que o referendo se realizaria no ano seguinte. Marquei com algumas famílias fazer a reportagem do regresso às localidades de onde fugiram nos territórios ocupados por Marrocos. Tinha a intenção de testemunhar a marcha de mais de 100 mil pessoas a atravessarem o deserto com os seus parcos haveres em busca da terra prometida. Passaram dez anos, a diplomacia e a missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara (Minurso) não resolveram o que a guerra deixou ficar. Esquecidos no meio do deserto continuaram a estar dezenas de milhar de pessoas que há 45 anos esperam que as deixem viver na sua terra.

Ao longo da viagem de quatro horas no Boeing 727, da Air Argel, que nos levou de Sevilha ao Aeroporto Militar de Tindouf, alguns passageiros transformaram-se enquanto o avião percorria os céus. As jovens saharauis que estavam vestidas de uma forma sensual, à ocidental, envergaram a partir do meio da viagem as vestes tradicionais das mulheres do deserto. Parecia que tinham conseguido detectar no ar, a milhares de metros de altitude, uma fronteira cultural entre a Europa e o Norte de África. Na escala no Aeroporto Boumedienne, em Argel, as calças justas, os decotes, e os cabelos à vista deram lugar aos tecidos coloridos da melfa, com as caras semi-tapadas, a que se somaram as luvas e os óculos escuros quando desembarcamos. Ao preceito religioso acrescenta-se a ditadura da moda. As mulheres do Sahara Ocidental têm como ideal de beleza não estarem queimadas pelo Sol.

A cidade militar argelina tem história na vida das tribos do deserto. Tindouf era tradicionalmente um oásis nas rotas das caravanas, lugar de encontro dos nómadas das tribos. Berbéres e tuaregues que não respeitavam as fronteiras traçadas a régua e esquadro pelas potências coloniais europeias. De Smara a Nema, de Ayoun a Nouakchott, as caras parecem as mesmas. As várias tribos, que falam o dialecto hassania, partilham hábitos, caminhos e culturas que as fronteiras não conseguiam impedir. Têm autoridades próprias e formas de política comum. Não é por acaso que quando a França coloniza a Argélia das primeiras medidas que toma para controlar as populações é impedir o acesso livre dos nómadas ao oásis de Tindouf.

Depois de passar os controlos do exército à volta da cidade militar, a estrada avança directamente para Smara, o maior dos campos de refugiados dos saharauis que dista pouco mais de 20 quilómetros. Uma grande mudança: até há pouco tempo todo o trajecto era feito literalmente pela areia do deserto, neste momento, só o longínquo campo de Dakhla, a cerca de 150 quilómetros, ainda não está completamente ligado por estrada.

Mais de 150 mil pessoas obrigadas a viver no deserto

O número de refugiados que vive nos campos de El Aiun, Dakhla, Smara, Rabouni e 27 de Fevereiro é um segredo de Estado. A Polisário fala, informalmente, em 150 mil pessoas, o triplo daquelas que fugiram em 1976 aos ataques aéreos marroquinos com bombas de fósforo e napalm. Os marroquinos garantem que aqui vivem, «raptadas» pelos militares argelinos e pelos milicianos da Frente Polisário, menos de 70 mil pessoas.

De qualquer forma, estamos perante um prodígio de sobrevivência humana, dezenas de milhar de pessoas habitam uma das zonas mais inóspitas do planeta, com temperaturas escaldantes. Aqui só há duas estações: o Inverno e o Verão. E este ano, devido às mudanças climatéricas, quase não choveu. A vida tem de respeitar a dureza do clima. Só é possível trabalhar de manhã ou depois das 18h. O resto do tempo, o sol queima sem piedade quem se aventura.

Mohamed Fadhar Labed estudou três anos em Cuba e agora aprende inglês em Smara, em aulas dadas por três professoras voluntárias de uma organização não governamental (ONG) dos Estados Unidos da América. Por vezes serve de guia às delegações estrangeiras, levando-as pelos arruamentos de terra do campo. Tinha sete anos, em 1976, lembra-se do dia em que teve de fugir com a família da sua aldeia.

«Ficou marcado na minha cabeça, a minha mãe tinha tido uma criança. Em resultado da fuga e dos bombardeamentos a bebé não sobreviveu», contou.

A população da aldeia escondeu-se até que as camionetas e os carros argelinos, conduzidos pela Polisário, empreenderam este grande êxodo para Tindouf.

Vamos para os arredores do acampamento de Smara para casa do tio de Fadhar Labed. Até há dois anos, viviam no centro do acampamento, as chuvas destruíram-lhes a casa. As construções são feitas de tijolos de areia cozida ao sol, que não resistem às águas. Hoje, estão numa zona mais alta. O tio é um homem mais velho, que quando falei com ele, servia o exército há 25 anos. Viu muitos amigos morrerem em combate. Afirma estar cansado do cessar-fogo de 1991. Diz que não teme os marroquinos – «não têm coragem». O povo do deserto está habituado a combater.

«O chá verde e o muito açúcar escorrem de copo em copo como se fosse mel. Diz a tradição que o primeiro chá é amargo como a vida, o segundo forte como o amor e o terceiro suave como a morte.»

Quando pergunto de que tribo é, recusa-se a responder. Diz que isso hoje não tem importância nenhuma, que o Sahara Ocidental é uma nação democrática que ultrapassou as identidades tribais. Tal como o sobrinho, é um rguibet, tribo guerreira com grande influência no Sahara Ocidental, Marrocos, Argélia e Mauritânia. Faz o chá. A cerimónia do chá é tão omnipresente nas reportagens sobre vida dos saharauis como na realidade. As mãos ágeis vão deitando o líquido como se de um exercício de ilusionismo se tratasse. O chá verde e o muito açúcar escorrem de copo em copo como se fosse mel. Diz a tradição que o primeiro chá é amargo como a vida, o segundo forte como o amor e o terceiro suave como a morte.

Tudo aqui é tradição. O pai andou no deserto. O avô andou no deserto. O avô do avô andou no deserto. O velho combatente diz que todos – desde que a memória dos seus existe – viveram a cruzar as dunas de areias com caravanas de camelos. O segredo das estrelas, das sombras e das árvores que permitem os nómadas conhecerem os caminhos do deserto são passados de pai para filho. Apesar de viverem fechados num campo, em alguns meses do ano leva os filhos para as zonas libertadas no interior do deserto para que aprendam a continuar a dura vida dos nómadas.

É por isso que quando vamos visitar uma base militar, a três horas de Rabouni, parece normal que o motorista do nosso jipe se oriente no deserto como se circulasse numa cidade com ruas. Vira com a decisão de quem conhece todas as pedras e caminhos. Cruzamo-nos com uma caravana com cerca de 50 camelos. Vêm de Meharrize, uma «terra libertada» no Sahara Ocidental. A seca obrigou-os a procurar pastagens junto dos acampamentos. Os dois homens que conduzem os animais fizeram a longa viagem alimentando-se sobretudo de leite de camelo. Provavelmente, serão obrigados a vender um ou dois animais para comprar comida para os outros sobreviverem. Voltarão à sua terra assim que chover. Antes de nos irmos embora, o nosso guia oferece uma garrafa de água de litro e meio e um sumo ao homem da caravana. Aqui partilha-se tudo.

Fartos de esperar numa paz podre

No meio do deserto está a base militar onde todos os jovens dos campos recebem formação militar durante um ano. Os jovens de cabelo rapado marcham na parada sob um sol mortal. A instrução militar não será fácil nesta espécie de caldeirão. Assistimos às aulas em que os recrutas montam e desmontam as AK 47 e aprendem a conhecer os diferentes efeitos das granadas ofensivas e defensivas, e a evitarem minas e outros explosivos.

Somos recebidos por três combatentes. No exército saharaui não há divisas nem postos. Cada combatente tem a sua tarefa. Como simples soldado até comandante de batalhão. A conversa é bastante limitada. A perguntas sobre as manobras militares marroquinas junto ao muro e sobre questões políticas, os nossos interlocutores remetem-nos para o Ministério da Defesa. Estranhamente, o diálogo é bastante aberto sobre o cessar-fogo estabelecido em 1991 com Marrocos. Um dos comandantes diz-nos directamente: «estamos fartos de esperar». Acrescentando que, em sua opinião, a guerra lhe parece a melhor solução. «Em dez dias resolvíamos o problema», garante.

Quando contraponho que não basta pensar que se tem razão, que a desproporção de forças no terreno é esmagadora – Marrocos tem mais de 200 mil militares, metade dos quais no Sahara Ocidental, contra 15 a 20 mil combatentes saharauis –, o mesmo comandante afirma que «a diferença de números e de tecnologia sempre foi enorme, mas a diferença ainda maior é na coragem».

Para Bullema Abdel, o combatente responsável pela Saúde na base, «os marroquinos não sabem porque razão estão a combater, nós sabemos que lutamos pela nossa terra».

O conflito no Sahara Ocidental arrasta-se desde 1975. A potência colonizadora aceitou fazer um referendo sobre o estatuto da província. Em Outubro do mesmo ano, o rei Hassan II de Marrocos organizou a chamada «marcha verde»: 350 mil marroquinos avançaram sobre o Sahara. A Espanha capitulou e aceitou entregar o território a Marrocos e à Mauritânia. Os saharauis, organizados pela Frente Polisário, fundada em 1973, contestaram a anexação. A seu favor tinham a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1972 que afirmava «o direito do povo saharaui à autodeterminação». O Tribunal Internacional de Haia dá, a 16 de Outubro de 1975, parcialmente razão aos argumentos marroquinos das ligações históricas das tribos nómadas com o xerifado marroquino, mas argumenta com o princípio do direito internacional e da inviolabilidade das fronteiras coloniais, para concluir também pelo «direito do povo do Sahara Ocidental à auto-determinação». Depois da ocupação militar marroquina, as populações nómadas são bombardeadas e mais de 50 mil pessoas refugiam-se em campos de refugiados do deserto argelino. No terreno militar os combatentes saharauis, usando tácticas de guerrilha e aproveitando-se da mobilidade dos seus veículos Land Rover, infligem pesadas baixas às tropas marroquinas e mauritanas. Atacam cidades em Marrocos e chegam duas vezes à capital da Mauritânia. Numa dessas operações, o primeiro líder da Polisário, Mustafa Sayed Ouali, cai em combate. Na sequência da guerra, o governo de Nouakchott é derrubado e acorda o fim das hostilidades com a Polisário, entregando os territórios sobre ocupação mauritana. Marrocos anexa estes territórios. As tropas de Rabat constroem a partir de Agosto de 1980 um muro fortificado com mais de 2800 quilómetros, guardado por 80 mil soldados, que isola o chamado triângulo útil do Sahara: as principais cidades, as zonas de exploração das grandes reservas de fosfatos e a costa muito rica em peixe. A guerra de guerrilha torna-se mais difícil.

Do ponto de vista diplomático, a ocupação do Sahara Ocidental não foi aceite por quase nenhum país e a República Árabe Saharaui Democrática é membro da OUA (Organização de Unidade Africana) e foi reconhecida por 70 países. Em 1991, por pressão das Nações Unidas, instaurou-se o cessar-fogo. Marrocos, Polisário e Argélia comprometem-se a iniciar um processo de paz que leve à realização de um referendo, organizado pela ONU, para decidir se o território fica no Reino de Marrocos ou será independente. O corpo eleitoral que podia participar no referendo foi alvo de uma verdadeira batalha. Ficou estabelecido que seria com base nas pessoas que viviam no território, e seus descendentes, recenseados em 1972 pelas autoridades espanholas. Por pressão marroquina, foram incluídas tribos do sahara marroquino. Apesar desse acordo, depois do referendo de Timor Leste, Marrocos voltou atrás e recusou discutir a soberania do território. O novo rei de Marrocos, Mohammed VI, propõe agora um estatuto de autonomia para o território e recusa qualquer hipótese de referendar a autodeterminação.

As imagens que testemunham a luta

Mohamed Mouloud viveu todos estes acontecimentos numa posição particular: com uma máquina fotográfica numa mão e uma kalashnikov na outra. Para provar o que diz, mostra-nos a sua fotografia da época. As fotos do passado são de mulheres vestidas à soldado, jovens de cabelo comprido, mais parecidos com os revolucionários cubanos do que com o aspecto actual dos saharauis.

A história de Mouloud começa cedo. Depois de uma manifestação pela independência, reprimida pelos marroquinos, em Dezembro de 1975, deixou a família toda para trás e fugiu para as zonas controladas pela Polisário. Deram-lhe, a ele e a mais dois, a tarefa muito especial de fazer reportagens da frente de combate. Aprenderam a fotografar sem nenhum curso.

«Tirávamos muitas, alguma havia de sair bem», diz. São deles as fotos iconográficas do primeiro líder da Polisário, Mustafa Sayed Ouali, pouco antes de morrer, que aparecem em muros e pósteres por todo o lado.

«Parece a foto de Che tirada por Korda, era um homem muito carismático», diz Moulouda, lembrando que «fazer mais de dois mil quilómetros no deserto, para atacar duas vezes a capital da Mauritânia não é para qualquer um».

O fotógrafo recorda a forma como as pessoas o escutavam com 28 anos. «Dizia-nos que só seríamos livres quando os marroquinos e os mauritanos fossem livres, quando toda a gente o fosse».

A tentar viver

Mouloud deixou a frente de combate. Tem um filho no Ministério da Informação e outro como repórter do exército. Abriu três lojas no acampamento 27 de Fevereiro. Uma de recordações, outra de comida e bebidas e a terceira de telemóveis.

Quem não vai ao Sahara há dez anos nota agora imensas diferenças. Os campos têm lojas e comércios privados. Todos os rapazes e raparigas exibem telemóveis. Nas ruas, para além dos jipes das ONG e do governo, vêem-se muitos Mercedes. Segundo o nosso guia, Sidi, estes carros custam aqui 2.500 euros.

As famílias que trabalham fora ajudam nessas novas despesas e consumos. Os donos das lojas são muito reservados. Falámos com um que nos disse que abriu o comércio há cinco anos e que «dá para ocupar o tempo». Nada mais. O silêncio é a regra do negócio.

Andando pelos caminhos de Smara pode-se ir a um ciber-café, sem café, comprar águas, cabeça de camelo, roupa, telemóveis, cortar o cabelo – quando o barbeiro não considera que temos areia a mais na cabeça –, e até relógios de parede. Os refugiados fartaram-se de esperar e estão a tentar viver.

Reportagem escrita, com base em várias viagens feitas ao Sahara Ocidental há mais de dez anos.

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Em Novembro de 1975 deu-se a invasão do Saara Ocidental por Marrocos e pela Mauritânia, que passaram a governar de facto o território com a Espanha, enquanto a Frente Polisário, apoiada pela Argélia, proclama a República Árabe Saarauí Democrática e inicia uma guerra de libertação contra os invasores.

A Mauritânia retira-se do território em 1979 mas Marrocos, apoiado no seu poderio militar, ocupa ainda hoje a maior parte do Saara Ocidental. A guerra do povo saarauí prossegue, apesar de isso, em condições militares muito difíceis, e uma faixa do território na fronteira com a Argélia contiunua nas mãos da Frente Polisário.

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