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«A Russian Journal»

A Agência Magnum tinha sido fundada havia pouco tempo e Capa ponderou, por momentos, se deveria encontrar-se em Paris com Henri Cartier-Bresson. Steinbeck contra-atacou: E se fôssemos ver como vivem os russos? 

Créditos / Robert Capa, ICP

No bar do Hotel Bedford de Nova Iorque, Jonh Steinbeck reflectia sobre o que fazer após ter ultimado mais um texto para o Herald Tribune quando o amigo Robert Capa entrou e, arqueando as nigérrimas sobrancelhas, se veio sentar com um ar desconsolado. 

Naquele mês de Maio de 1947 também ele estava entediado depois de jogar uma partida de póquer longamente adiada, e, sem batalha próxima para fotografar, aceitou de bom grado o cocktail esverdeado que o barman fez deslizar na sua frente.

O escritor e repórter, dando mais luz aos seus olhos claros, fitou o fotojornalista após ter levado cuidadosamente aos lábios a taça de forma a não molhar o fino bigode, e disse: O que ainda há no mundo com interesse para homens honestos e de espírito aberto fazerem? 

A Agência Magnum tinha sido fundada havia pouco tempo e Capa ponderou, por momentos, se deveria encontrar-se em Paris com Henri Cartier-Bresson para afinarem os passos seguintes, que passariam por convidarem Ernest Hass, Werner Bischop, René Burri, Inge Morath e um irmão de Capa, para se associarem ao projecto. Steinbeck, atento à eventual desmobilização do amigo, contra-atacou: E se fôssemos ver como vivem os russos?

Capa, mordeu o isco: húngaro de Budapeste, com origens familiares judaicas, e de lá fugido em 1930, devido à marcação feita pela polícia às suas simpatias marxistas, tinha chegado aos EUA anos depois de escapar de Berlim e do nazismo, não podia deixar de seguir com atenção os desenvolvimentos no Leste europeu. Além de que já tinha fotografado Leon Trotsky, em 1931, durante um congresso em Copenhague.

Como se conta no livro A Russian Journal que Steinbeck fizera publicar em 1948, ele e Capa atravessavam uma fase cinzenta: 

«Andávamos deprimidos não tanto com as notícias como com a forma como eram dadas. Porque as notícias já não são notícias, pelo menos aquelas que atraem mais atenção. Um homem sentado a uma secretária em Nova Iorque ou Washington lê os telegramas das agências e reformula-os de acordo com o seu próprio quadro mental e dá-lhes um título.  

Aquilo que muitas vezes lemos como notícia não é mais do que a opinião de um entre meia dúzia de especialistas sobre o que essa notícia significa. 

Todos os dias, os jornais publicavam milhares de palavras sobre a Rússia. O que Estaline estava a fazer dela, os planos do estado-maior russo, a disposição das tropas no terreno, as experiências com armas atómicas e mísseis teleguiados, tudo isto escrito por pessoas que nunca lá tinham estado e cujas fontes não eram isentas de crítica».

Terá sido também por isso que lhes ocorreu que havia coisas na Rússia sobre as quais ainda ninguém tinha escrito e fotografado, e que eram aquelas que, segundo as suas sensibilidades, mais interessavam:

«Aquilo que muitas vezes lemos como notícia não é mais do que a opinião de um entre meia dúzia de especialistas sobre o que essa notícia significa.»

«O que é que as pessoas vestem? O que é que comem ao jantar? Convivem? Que alimentos existem? Como fazem amor, como morrem? Conversam sobre quê? Dançam, cantam e divertem-se? Os filhos vão à escola? Pareceu-nos que era capaz de ser uma boa ideia descobrir estas coisas, fotografá-las e escrever sobre elas. A política russa é tão importante como a nossa, mas certamente lá, tal como cá, existe o outro grande lado. Os russos têm certamente vida privada e sobre isso não sabíamos nada, porque ninguém escreveu nada sobre ela, e ninguém a fotografou». 

A predisposição heterodoxa de Steinbeck, numa América muito obcecada com a União Soviética, não augurava boa receptividade por parte de quem teria de viabilizar tão longa foto-reportagem. Para mais, tinha fama de maltratar o capitalismo e de mostrar uma «excessiva» simpatia pelos camponeses e trabalhadores, vítimas de más condições de vida, o que tinha provocado um largo conjunto de críticas, especialmente na sua Califórnia. Bom, talvez esse rasto literário e jornalístico fosse vantajoso aquando da obtenção de visto no consulado soviético.

O escritor, tido como criador de obras imaginativas, com requintada percepção das condições sociais das classes trabalhadoras e marcadas por um fino humor, tinha já um relevante estatuto nas letras americanas, mais tarde confirmado com o Nobel, embora tudo isso não o tenha isentado de ser alvo de acurada atenção e perseguição policial e política, como se poderá confirmar nas centenas de notas e relatórios disponíveis nos arquivos do FBI.

O escritor-repórter e o fotojornalista resolveram tentar fazer juntos um trabalho de reportagem simples, apoiado por fotografias, mantendo-se «longe da política e do Kremlin, dos militares, dos planos militares. Queríamos chegar ao povo russo se pudéssemos. É preciso reconhecer que não sabíamos se poderíamos ou não, e quando falávamos no assunto aos nossos amigos era certo e sabido que eles nos diziam que não podíamos».

«A predisposição heterodoxa de Steinbeck, numa América muito obcecada com a União Soviética, não augurava boa receptividade por parte de quem teria de viabilizar tão longa foto-reportagem. Para mais, tinha fama de maltratar o capitalismo e de mostrar uma "excessiva" simpatia pelos camponeses e trabalhadores, vítimas de más condições de vida, o que tinha provocado um largo conjunto de críticas, especialmente na sua Califórnia.»

Steinbeck era, politicamente, um liberal, e sabia bem em que américa vivia, além de que estaria consciente das dificuldades expectáveis que encontrariam na União Soviética, e, por isso, prepararam-se com uma abordagem pragmática: «se pudéssemos fazer a reportagem seria bom, seria uma boa história. E se não pudéssemos teríamos na mesma uma história, a história de não termos podido fazê-la». 

Contactaram George Cornish, do Herald Tribune, falando-lhe do projecto, e, primeiro importante passo, ele concordou que era uma boa ideia, oferecendo-se para os ajudar em tudo o que pudesse. 

Foi então que tomaram importantes decisões prévias: «não iríamos de pé atrás e tentaríamos não ser críticos nem favoráveis. Tentaríamos fazer uma reportagem honesta, registar aquilo que víamos e ouvíamos sem fazermos comentários, sem tirarmos conclusões sobre coisas de que tínhamos um conhecimento insuficiente e sem nos irritarmos com as demoras da burocracia. Sabíamos que ia haver coisas de que não gostaríamos, muitas coisas que iam deixar-nos desconfortáveis. É o que acontece sempre num país estrangeiro. Mas decidimos que, se criticássemos alguma coisa, seria depois de a termos testemunhado, não antes. Os nossos vistos seguiram para Moscovo, tendo o de Steinbeck sido despachado num prazo razoável.»

Contudo, quanto a Capa, a autorização não foi imediata.

«Fui ao consulado da Rússia em Nova Iorque e o cônsul-geral disse-me: "Concordamos que se trata de uma boa ideia, mas porque é que há-de levar um fotógrafo? Temos muitos fotógrafos na União Soviética", ao que Steinbeck respondeu: "Mas não têm nenhum Capa. Para se fazer isto tem de ser como um todo, um trabalho em colaboração"

As dúvidas de Moscovo acabaram por se resolver, até porque os promitentes viajantes desvalorizaram as cautelas administrativas soviéticas que sabiam ser expectáveis num país que não era fotografado havia muito tempo, e sujeito à grande pressão característica da guerra fria nascente. Era compreensível haver medidas cautelares. Aliás, coisas parecidas viam-se também nas américas, dizem-nos Steinbeck e Capa. 

Pior foi a grande quantidade de desincentivos que a dupla recebeu nos EUA, como se constata nas seguintes passagens do relato: 

«Quando se soube que íamos à União Soviética fomos bombardeados com conselhos, advertências e avisos, quase todos, diga-se de passagem, vindos de pessoas que nunca lá tinham estado. Uma idosa disse-nos em tons apavorados: "Para quê? Vocês vão desaparecer, mal atravessem a fronteira desaparecem". E nós respondemos, em nome da informação fidedigna: "Conhece alguém que tenha desaparecido?" "Não", disse ela, "pessoalmente não conheço ninguém, mas já desapareceu muita gente". E nós dissemos: "Até pode ser verdade, não sabemos, mas pode dar-nos o nome de alguém que tenha desaparecido? Conhece alguém que conheça alguém que tenha desaparecido?" E ela replicou: "Desapareceram milhares de pessoas!".

E, um homem com sobrancelhas de pessoa informada e olhar penetrante, o mesmo homem, aliás, que dois anos antes tinha divulgado no Stork Club todos os planos para a invasão da Normandia, disse-nos: "Bem, isso é sinal de que têm excelentes relações com o Kremlin, caso contrário, não os deixavam entrar. Eles devem tê-los comprado". Nós dissemos: "Não, tanto quanto sabemos não nos compraram. O nosso único propósito é fazer um bom trabalho de reportagem". 

Ele levantou os olhos franzidos e fitou-nos. E acredita naquilo em que acredita, e o homem que há dois anos conhecia as intenções de Eisenhower conhece agora as de Estaline. 

Robert Capa e John Steinbeck Créditos

Um idoso acenou-nos com a cabeça e disse: "Vão torturá-los, é isso que lhes vão fazer; levam-nos para uma prisão escura e torturam-nos. Torcem-lhes os braços e fazem-nos passar fome até que estejam dispostos a dizer tudo o que eles querem ouvir". Nós perguntámos: "Porquê? Para quê? O que é que iam ganhar com isso?". "Fazem isso a toda a gente", disse ele. "Ainda há dias li um livro…"

Um homem de negócios de considerável importância disse-nos: "Com que então vão a Moscovo? Levem umas bombas e lancem-nas em cima dos filhos da puta dos vermelhos."»

Exemplos de ignorância e desinformação eram, já então, vulgares em largas camadas de uma população fustigada com o discurso anti-soviético difundido das mais variadas formas, semeando a mensagem anticomunista na terra fértil da iliteracia política e cultural. O mais grave, contudo, é que a equipa se viu a braços com uma marcação cerrada do FBI, em particular no caso de Steinbeck, situação que, vinda dos fins da década de trinta, se manteve durante vários anos. 

Consultando arquivos do FBI agora abertos encontram-se centenas de cartas, relatórios, denúncias, com um traço comum: as actividades literárias do inspired ferment commie autor de As Vinhas da Ira.

Em 1938, John Steinbeck escreveu uma declaração de apoio à Espanha republicana como parte do volume Writers Take Sides, publicado pela Liga dos Escritores Americanos. Juntando-se a uma série de autores proeminentes que assumiram uma posição antifascista através de uma colecção de 418 «cartas sobre a guerra na Espanha» (apenas um colaborador apoiou Franco), a breve declaração de Steinbeck foi, segundo Charles Williams1, notável pela ênfase dada ao paralelismo com o fascismo existente nos Estados Unidos: «Acabei de voltar de uma pequena viagem nos campos agrícolas da Califórnia», assim começa sua carta. «Temos os nossos próprios grupos fascistas por cá. Ainda não bombardearam cidades, mas, em Salinas, no ano passado, foi lançado gás lacrimogéneo pelas janelas de uma casa onde trabalhadores estavam reunidos com dirigentes sindicais. Isto está bem perto do fascismo, não está?»

Foi pena, na sequência da sua ida ao Vietname, viagem realizada entre Dezembro de 1966 e Maio de 1967, já com sessenta e quatro anos, ter escrito as empolgadas Cartas a Alicia, onde se mostrou apoiante da intervenção americana. Aliás, tê-lo-á feito a destempo, porque, por esse tempo, muita gente militava já contra aquela mortífera guerra.   

Voltando ao tema deste artigo, sublinhar que, pouco tempo depois da designação Cortina de Ferro ter sido lançada num discurso de Winston Churchill (5 de Março de 1946)2, realizado nos EUA, John Steinbeck e Robert Capa aventuraram-se na União Soviética para fazer a notável reportagem para o New York Herald Tribune

«Exemplos de ignorância e desinformação eram, já então, vulgares em largas camadas de uma população fustigada com o discurso anti-soviético difundido das mais variadas formas, semeando a mensagem anticomunista na terra fértil da iliteracia política e cultural.»

Os insignes viajantes foram não só a Moscovo e Estalinegrado (agora Volgogrado), mas também à Ucrânia e à Geórgia, fazendo um percurso exigente, intenso, arrebatador, através da URSS, retratando as paisagens, modos de vida e as idiossincrasias de uma cultura política seminal que emergia dos escombros de uma Segunda Guerra Mundial onde o exército vermelho foi determinante para derrotar o nazismo.

O leitor poderá encontrar na obra publicada pela Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, com o título Um Diário Russo, ao longo de duzentas e quarenta páginas, um retrato do «grande outro lado», registado com esforçado rigor, crítica contida e humor. Os detractores chamaram-lhe «Vodca Journal», embora, nas diversas ocasiões que os autores tiveram de brindar, o tenham feito com marcante prazer e estoicismo, porque, em geral, na madrugada seguinte tinham de partir para nova jornada.

Deixam-se, mesmo assim, algumas passagens do livro: 

«Eu tinha (Steinbeck) passado uns dias em Moscovo em 1936, e as mudanças desde então eram extraordinárias. Para começar, a cidade estava muito mais limpa do que antes. As ruas, que então eram lamacentas e sujas, eram agora limpas e alcatroadas. E a construção nos onze anos decorridos era enorme. 

(...)

Outra coisa que nos chamou a atenção foi o trabalho que estava a ser feito para melhorar a fisionomia da cidade. Havia andaimes em todos os edifícios. Estavam a pintar as fachadas e a reparar as partes danificadas, porque daí a poucas semanas comemoravam-se oitocentos anos sobre a fundação da cidade... e meses depois celebrava-se o trigésimo aniversário da Revolução de Outubro».

(...)

«Este organismo, a Voks», continuou, «não tem muito poder nem muita influência. Mas faremos tudo o que estiver ao nosso alcance que possam fazer o trabalho que se propõem.» Depois, fez-nos perguntas sobre a América. E disse: «Muitos dos vossos jornais falam de uma guerra com a União Soviética. Os americanos querem uma guerra com a União Soviética?» (Os autores referiam-se a palavras de Karaganov.)

«Pensamos que não», respondemos. «Pensamos que nenhum povo quer a guerra, mas não sabemos». Ele disse: «Parece que a única voz que se levanta na América contra a guerra é a de Henry Wallace. Podem dizer-me se ele tem muitos ou poucos seguidores? Tem um verdadeiro apoio popular? Nós dissemos: «Não sabemos. Mas sabemos que, numa digressão de conferências, Wallace angariou em entradas pagas numa quantia sem precedentes e sabemos que foi a primeira vez que ouvimos falar de pessoas que não puderam entrar num comício político porque não tinham lugar, nem sentados nem de pé». E, depois, perguntámos: «Os russos, ou alguma parte deles, ou alguma parte do governo russo, querem a guerra?» Perante isto ele endireitou-se na cadeira, pousou o lápis e disse: «Posso responder a isso de forma categórica. Nem o povo russo, nem nenhuma parte dele, nem nenhuma parte do governo russo querem a guerra. Posso mesmo ir mais longe – o povo russo faria quase tudo para evitar a guerra. Disso tenho a certeza.» 

«E voltou a pegar no lápis para fazer rabiscos redondos no papel».

«Simpatizamos muito com Karaganov. Era um homem que falava de maneira directa e clara. Mais tarde iríamos ouvir muitos discursos floreados e muitas generalidades. Mas, de Karaganov nunca ouvimos nem uns, nem outras.»

(...)

«Kiev deve ter sido em tempos uma bela cidade. É mais antiga do que Moscovo. É a mãe das cidades russas. Sentada na sua encosta do Dniepre, espraia-se pela planície. Os seus mosteiros, fortalezas e igrejas remontam ao século XI. Foi em tempos idos um dos locais de vilegiatura preferido dos czares, que aqui tinham os seus palácios de verão. Os seus edifícios públicos eram conhecidos em toda a Rússia. Era um centro religioso. E agora é pouco mais do que uma ruína. Aqui os alemães mostraram aquilo de que eram capazes». 

Para terminar uma nota quanto a numerosas ocasiões registadas em que os visitantes testemunharam a alegria espontânea dos povos, a divertirem-se e a trabalharem, particularmente na Geórgia e na Ucrânia, além de os terem visto em várias práticas culturais e religiosas mais antigas.

  • 1. 0026-3079/2014/5304-049$2.50/0 American Studies, 53:4 (2014): 49-71
  • 2. Este nome já tinha sido usado antes por Joseph Goebbels.

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