Trabalho desde 1997 na freguesia mais pobre do concelho do Porto. Campanhã sempre foi conhecida por ser um território com índices de exclusão social preocupantes. Quem não se lembra de ouvir falar no Bairro S. João de Deus, no Bairro do Cerco ou dos barracos das traseiras do bloco 13 do Lagarteiro? O principal estigma inferiorizante que desqualifica e retira prestígio simbólico a estes contextos residenciais foi e continua a ser a venda e o consumo de droga.
Eu estou de acordo com todos aqueles que pensam, dizem e escrevem publicamente que ver seringas no chão, sangue nas paredes dos muros e tendas de campismo improvisadas para agasalhar ressacados à porta de nossa casa pode causar medo, intranquilidade, preocupação e insegurança na comunidade. Ninguém gosta de viver perto de ameaças, assaltos, violência exposta, crime e sobressalto permanente. Também quero concordar neste texto com todos aqueles que consideram que este e os anteriores governos têm falhado no desenho, concepção e operacionalização de políticas públicas na área da prevenção, tratamento e reinserção social dos toxicodependentes. Falta de sensibilidade social, incapacidade de decisão, insuficiência de financiamento e ausência de estratégias de articulação caracterizam este falhanço que é bem visível e infelizmente não é só no Porto. Pensar que o esforço de descriminalizar os consumos de drogas ilícitas no ano 2000 era suficiente e que as aberturas de salas de chuto fariam o resto é errado, releva desconhecimento, falta de ligação à realidade e ignorância empírica.
Dito isto, é importante perguntar agora o seguinte. Se este problema existe, se tem esta dimensão e se está a causar impacto tão nocivo na vida de todos, o que devemos fazer? Ler, estudar, investigar, produzir conhecimento científico sobre este fenómeno. Se eu fosse político, com muito ou pouco poder, a primeira coisa que eu faria era sentar-me à mesa com os técnicos, com a universidade, com os organismos do Estado, com as instituições que trabalham no terreno. Destas reuniões de trabalho surgiriam, com toda a certeza, soluções humanistas, adequadas, emancipadoras para estes consumidores desestruturados. Parece que a questão teórica e conceptual não tem importância, mas faz toda a diferença, sobretudo para definir a intervenção mais adequada e a metodologia mais eficaz.
O apetrechamento intelectual é fundamental para nos ajudar a perceber que a culpa muitas vezes não é dos sujeitos e que a responsabilização individual é uma visão curta e retrógrada. É preciso enxergar para além da aparência. Mais importante do que dizer aos nossos utentes que os consumos matam e geram comportamento desviante que pode ser punido por lei, será necessário perceber o seu percurso de socialização, as suas histórias de vida, que oportunidades tiveram para terem acesso aos recursos escolares, culturais, económicos e simbólicos.
Os toxicodependentes não são todos iguais. O seu lugar na estrutura social também não. Os que dispõem dos diferentes capitais não vivem no lixo, no fundo do poço, na miséria física e emocional. Os que consomem na via pública são pessoas doentes que precisam de ser tratadas e não detidas. Precisam de médico e não de polícias. Precisam de equipamentos de tratamento, não de cadeias; precisam de reconstruir laços familiares, não de isolamento coercivo; precisam de alojamento digno e adequado, não precisam de ser escorraçados com aparato policial. Mandar estes consumidores para a prisão só agravaria o problema.
O ambiente prisional, que conheço bem, é um caldo cultural de ódio, vingança e ressentimento. De todos os processos de ressocialização que acompanhei até aos dias de hoje não tenho memória de o espaço prisional ser, em nenhum dos meus reclusos, influência positiva, quer ao nível emocional ou físico. As percentagens de reincidência no crime falam por si. Tenho consciência, sim, das dificuldades e dos problemas cada vez mais agravados por falta de recursos, nomeadamente para conter despesas de tratamento. O acesso a cuidados de saúde em contexto prisional é muito mais dificultado e precário. Nas prisões portuguesas há muito Estado penal e muita falta de Estado social.
«Os toxicodependentes não são todos iguais. O seu lugar na estrutura social também não.»
Eu sei que esta tentativa de resolver o problema, criminalizando o consumo de drogas na via pública, parece ser mais rápida e agradar à maioria dos que são vítimas deste flagelo. Pura mentira. Esta solução integra-se na velha tradição de higienização do espaço público que as políticas de direita insistem com regularidade impor na cidade do Porto. Nada disto me espanta ou surpreende. Lembro-me da expulsão dos residentes da zona histórica, dos moradores do Bairro de S. João de Deus, do Bairro do Aleixo e agora os toxicodependentes da zona da Pasteleira e bairro Pinheiro Torres
A criminalização dos pobres e a desqualificação moral dos toxicodependentes é recorrente e inspira infelizmente muitas decisões políticas. O guião ideológico é simples, «a culpa é vossa, vocês deixaram de ser funcionais ao capitalismo, não produzem, não são explorados, não dão lucro. Vocês são inadaptados, adoptam comportamentos desajustados que geram medo e insegurança na comunidade. O vosso comportamento é sempre motivo, pretexto e justificação para justificar tudo o que possa repor a lei e a ordem pública». A opção política da luta contra a insegurança, em vez de se privilegiar a luta contra a pobreza. Não percebem que quando se combate a pobreza também se combate o sentimento de insegurança. Também não dão conta que muitas vezes, com o argumento de garantir a segurança, repor a ordem e fazer cumprir a lei, se violam de forma descarada direitos fundamentais. Sempre que os direitos humanos são desrespeitados, o retrocesso civilizacional é a nódoa que nos deve envergonhar a todos. A sociedade deve ter regras e normas de conduta que permitam aos cidadãos desenvolver o seu potencial e realizar os seus sonhos. As leis devem garantir na diferença e no pluralismo a concretização de direitos que assegurem o bem-estar, a qualidade de vida e a dignidade de todos.
«Não percebem que quando se combate a pobreza também se combate o sentimento de insegurança. Também não dão conta que muitas vezes, com o argumento de garantir a segurança, repor a ordem e fazer cumprir a lei, se violam de forma descarada direitos fundamentais.»
Michel Foucault ajuda-nos a perceber que a evolução dos mecanismos de gradual falência do Estado social gerou esta evidência, o processo de controle social dos pobres deixou de se realizar por políticas sociais e foi adjudicado ao sistema penal num processo crescente de criminalização da pobreza. Depois da repressão falta apenas convencer a opinião pública que os toxicodependentes são a causa dos nossos principais problemas. Temos de nos livrar deles. Eles são no vocabulário do capitalismo contemporâneo os «indesejáveis», por isso, vamos varrer o lixo para debaixo do tapete e gritar bem alto que o governo não nos empresta a vassoura, por isso tem razão o meu amigo, Rui Coimbra, «Criminalizar o consumo de droga na rua é uma luta para criminalizar a pobreza».
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