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Agricultura biológica em Portugal: mais apoios para os grandes!

Desta aplicação excêntrica dos regulamentos da PAC decorrem duas consequências: uma polarização ainda maior dos apoios da PAC nas grandes explorações do Alentejo e Ribatejo; um enorme desperdício de fundos.

Créditos / vidarural.pt

De forma cada vez mais clara começam a esboçar-se os limites da produção intensiva que domina a paisagem agrícola dos países desenvolvidos desde a Segunda Guerra Mundial e que moldou a Política Agrícola Comum (PAC). Infelizmente, o debate sobres os caminhos alternativos tem ficado em muitos casos refém de uma falsa dicotomia entre produção convencional versus biológica. Esta visão redutora omite a questão decisiva relacionada com o domínio progressivo das relações capitalistas no setor agrícola português, confirmado pelo desaparecimento de centenas de milhares de pequenas explorações, pela intensificação da produção e por uma crescente subordinação do setor aos grandes grupos monopolistas a montante (adubos, sementes, fitossanitários entre outros) e a jusante (indústria agroalimentar e grande distribuição). Ao mesmo tempo, ao limitar a discussão entre produção biológica e convencional, o grande capital agrário ganha sempre, pela forma como conseguiu alinhar os apoios públicos à produção biológica com os seus interesses.

«[a] falsa dicotomia entre produção convencional versus biológica [...] omite a questão decisiva relacionada com o domínio progressivo das relações capitalistas no setor agrícola português, confirmado pelo desaparecimento de centenas de milhares de pequenas explorações, pela intensificação da produção e por uma crescente subordinação do setor aos grandes grupos monopolistas»

Independentemente dos seus méritos, a produção biológica é hoje considerada como um modelo de produção alternativo ao convencional com potencial para tornar mais sustentável a nossa agricultura. Com regras que condicionam, entre outros fatores, a utilização dos solos e o uso de aditivos de síntese, a produção biológica devidamente certificada beneficia de ajudas para compensar custos ligados à gestão e às perdas de produtividades. O Plano Estratégico da Política Agrícola Comum (PEPAC) prevê um apoio de 391 milhões de euros (6,1% do orçamento global) para apoiar a conversão e manutenção da produção biológica em Portugal entre 2023 e 2027. Contudo, pela forma como as regras foram subvertidas ao longo das últimas décadas, fica claro que iremos mais uma vez brincar ao «faz de conta» em matéria de produção biológica. Para se entender o fenómeno, é necessário recuar alguns anos, nomeadamente ao dia em que o Governo decidiu rotular como produção biológica dezenas de milhares de hectares de prados e pastagens permanentes, sem exigir que seja produzida um grama de carne «Bio». Com esta medida, o Governo lá foi cumprindo as metas de Bruxelas ao mesmo tempo que a sua clientela rejubilava com mais uma renda fundiária.

[Figura 1: Evolução das principais componentes da Superfície Agrícola Utilizada (SAU) em produção biológica (Fonte: Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural).]

Como é visível no gráfico, o principal contributo para o aumento da superfície cultivada em modo biológico está associado ao aumento dos prados e pastagens permanentes, sem que isto signifique, como dissemos e sublinhamos, a produção de carne biológica. Com as novas regras da PAC para o período 2023-2027, a Comissão Europeia pretende que 25% da área agrícola esteja em produção biológica até 2030. Portugal fixou a meta em 19% até 2027. Mas o expediente mantém-se. Vale a pena citar Eduardo Diniz, diretor-geral do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) do Ministério da Agricultura e Alimentação, numa entrevista ao jornal Público: «Mesmo que a carne dos animais que utilizaram aquelas pastagens não seja vendida como biológica, o modo de produção já tem vantagens do ponto de vista ambiental, na forma como se usam os recursos naturais. E, dado que a SAU só tem 20% de culturas permanentes, sem as pastagens não seria possível aproximarmo-nos das metas europeias de 25% de área em regime biológico até 2030.» Com esta interpretação criativa do modo de produção biológico «em regime parcial», o Governo passa com distinção o exame de Bruxelas e os produtores de bovinos em regime extensivo, sem qualquer custo e mantendo as mesmas práticas de sempre, passam a receber mais um bónus sem qualquer justificação económica ou ambiental.

Desta aplicação excêntrica dos regulamentos da PAC decorrem duas consequências. A primeira é uma polarização ainda maior dos apoios da PAC nas grandes explorações do Alentejo e Ribatejo, conforme pode ser visto na Figura 2.

[Figura 2: Ajudas pagas à produção biológica por exploração (Fonte: Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), 2018-2020).]

A segunda consequência aponta para um enorme desperdício de fundos. Em 2020, de acordo com os dados do Ministério da Agricultura, existiam em Portugal 196 502 hectares a receber apoios à produção biológica. Os prados e pastagens representam cerca de 60% de toda esta área apoiada (conversão e manutenção). No mesmo ano, o efetivo pecuário em Modo de Produção Biológica registava apenas um total 192 989 animais entre pequenos e grandes ruminantes. Considerando o limite de duas cabeças normais (CN) por hectare previsto como limite máximo para o modo de produção biológico, isto leva-nos a estimar que existem neste momento em Portugal cerca de 152 mil hectares a receber apoios para produção biológica sem que haja qualquer produção de carne biológica! Nas nossas contas, serão 14,7 milhões de euros distribuídos anualmente por explorações que ficam com uma renda fundiária líquida, sem qualquer encargo, uma vez que não sairá dali qualquer produção biológica. São milhões que poderiam e deveriam ser colocados ao serviço de uma verdadeira política de produção nacional orientada para a valorização da pequena e média agricultura familiar sustentável e em claro benefício dos territórios vulneráveis onde o abandono da agricultura propiciou os incêndios que hoje lavram livremente pela nossa floresta.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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