A publicação do Decreto-Lei n.º 77/2024, de 23 de outubro, que entre outras matérias restaura competências que a ERSAR tinha perdido em 2020, representa um retrocesso com implicações no relacionamento entre esta entidade e as câmaras municipais, afronta a autonomia local e insere-se num caminho que privilegia, nos setores das águas, do saneamento e dos resíduos, a matéria tarifária, em detrimento das questões da eficiência hídrica.
Conforme refere a entidade reguladora no seu portal: «A ERSAR passa assim a dispor novamente de poderes para fixar tarifas relativamente a todos os sistemas de titularidade estatal (em alta) e para regulamentar, avaliar e auditar a fixação e aplicação de tarifas nos sistemas de titularidade municipal (em baixa). Retoma a possibilidade de emitir regulamentos tarifários e de fiscalizar o seu cumprimento, podendo, nas situações e termos previstos na lei, emitir instruções vinculativas nos casos que não se conformem com a legislação em vigor». Sublinhem-se aqui dois aspetos: a recuperação da competência para elaborar regulamentos que terão caráter obrigatório, em vez de serem apenas recomendações como definia a versão anterior da lei e que as entidades gestoras podiam ou não adotar, mantendo ampla margem de decisão sobre estas matérias, e o facto de serem emitidas instruções vinculativas, que na prática representarão por parte da ERSAR uma definição das tarifas à distância, não tendo as entidades gestoras margem para decisão diferente, sob pena de serem submetidas a sanções. É nestes dois aspetos que se verifica a violação da autonomia local que tem consagração constitucional.
Focada nas questões da defesa da autonomia local e dos impactos sociais, a ANMP tem contestado esta alteração referindo (conforme noticiou a comunicação social) no parecer que emitiu sobre o assunto que esta questão deve ser vista numa «Numa lógica de serviço público e não numa lógica puramente económico-financeira, sob pena de conduzir à elevação das tarifas para níveis socialmente incomportáveis, sobretudo e em particular, nas regiões do país economicamente mais desfavorecidas, mais dispersas e menos densamente povoadas».
Registando-se o facto de esta iniciativa legislativa ser da responsabilidade exclusiva do governo PSD/CDS que legisla por decreto, enquanto em 2020, por ocasião da discussão da proposta de Orçamento do Estado, estivemos perante uma iniciativa da Assembleia da República, não estamos perante um ato isolado, ou ligado a preocupações com matérias de regulação. Estamos perante mais um passo tendo em vista a captura de competências dos municípios em matéria de gestão destes setores, a criação de condições para que a perspetiva de negócio prevaleça na gestão, a abertura do caminho para a privatização dos serviços.
«Estamos perante mais um passo tendo em vista a captura de competências dos municípios em matéria de gestão destes setores, a criação de condições para que a perspetiva de negócio prevaleça na gestão, a abertura do caminho para a privatização dos serviços.»
É o desenho para o setor das águas que está definido no PENSAARP 2030, foi a orientação que foi seguida nos resíduos com a privatização da EGF, passando os privados a gerir os sistemas multimunicipais em alta, com consequências no aumento elevado das tarifas a que se procede ano após ano e com o suporte da ERSAR na validação dos proveitos permitidos.
O setor dos resíduos atravessa uma grave crise, com incidências a várias níveis, aproximação do nível de esgotamento das infraestruturas, diminuição da qualidade do serviço prestado em alta, aumento das tarifas, impacto do aumento da TGR com dificuldades dos municípios em repercutirem os custos nos utilizadores e com decisões erradas em matéria de definição de valores de contrapartida para os recicláveis onde, em vez do cumprimento da responsabilidade alargada do produtor, se assiste a um alargamento da responsabilidade dos municípios e a um estreitamento da responsabilidade dos produtores.
Não se nega os importantes desafios que os setores das águas, do saneamento e dos resíduos enfrentam e que exigem uma maior centralidade nas prioridades definidas pelos diversos intervenientes no setor, onde se torna necessário proceder ainda a elevados investimentos, onde é indispensável melhorar a sua organização e gestão, onde a melhoria da eficiência na gestão dos recursos é crucial, onde a questão da sustentabilidade económica, financeira e ambiental deve ser salvaguardada, mas que não passa primordialmente pela questão tarifária. As tarifas enquanto instrumentos de gestão devem ser definidas num quadro de eficiência na gestão dos recursos, e num quadro de respeito pela diversidade da realidade económica e social, devendo também ser considerada a criação de um Fundo de Equilíbrio Tarifário com financiamento do orçamento do estado, para introduzir justiça social nos sistemas.
É errado o caminho que está a ser seguido por este governo, que acentua as políticas de desvalorização dos serviços públicos do governo anterior. A defesa da gestão pública destes setores é o caminho, salvaguardando ao mesmo tempo a manutenção da sua competência na esfera municipal e a defesa da autonomia local na definição das políticas públicas nestas áreas.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui