Tinha sempre dado retorno, nunca como o alcançado desta vez. Os apotegmas da Dona Cláudia são mais esclarecedores que os milhares de caracteres e espaços, os milhares de minutos aplicados nos variados media, redes sociais incluídas, que procuram explicar canhestramente o triunfo da direita e extrema direita nas últimas eleições, muito resultantes da sua paciente acção durante anos silenciando tudo o que poderia colidir com esse trabalho de sapa da democracia, mesmo a mais formal, à espreita de uma oportunidade até que por fim um surdo golpe de estado iluminou o túnel onde colocavam as pedras de mais uns previsíveis anos. Os oligarcas que os controlam esperam retirar, a curto e médio prazo, os benefícios dos muitos milhares de euros aplicados. Respiram fundo com as «políticas de futuro» que os seus cães de guarda pistaram e vão continuar a sustentar e que os seus mandatários governantes irão implementar.
Há que libertar Azevedos, Amorins & Companhia de se andar a meter as mãos nos seus alforges para lhes retirar uns trocos que se esvaem em serviços sociais, um luxo que não se deve exigir aos milionários que têm muitos outros luxos para satisfazer. Há que acabar de vez com o Estado social, um empecilho do empreendedorismo, ainda que numa primeira fase se distribuam algumas benesses para abrir as portas do radioso futuro em que tudo o que resta será privatizado ou entregue a parcerias público-privadas.
Percebe-se o frenesim centrado nas aritméticas e geometrias variáveis sequentes aos resultados eleitorais, as suas consequências nas acelerações ou desacelerações das «políticas de futuro». São vagamente enunciadas razões para este fogo soprado pela direita, pelas direitas das mais clássicas às mais extremas. Para a eclosão desse júbilo da direita traduzido em votos há razões económicas, há razões fundadas nas falências sentidas em serviços essenciais da saúde ao ensino, há uma generalizada desconfiança instalada nos serviços públicos, tudo matérias que vicejam nas floreadas notícias adubadas pela comunicação social do estado e privada onde, em esmagadora maioria, pontifica o circo que alberga dos intelectuais orgânicos aos arlequins de direita fartamente financiados que, com as suas artimanhas, potenciam descontentamentos, alimentam populismos.
Pedro Soares dos Santos e Cláudia Azevedo falaram sobre as eleições durante a apresentação dos seus lucros. Enquanto o CEO da Jerónimo Martins, na passada quinta-feira, deixou subentendido uma necessidade de mudança, a CEO da Sonae destacou a vontade de mudar. Na passada quinta-feira, Pedro Soares dos Santos apresentou os lucros da Jerónimo Martins: subiram 28% para 756 milhões de euros em 2023. A empresa já tinha adiantado que o seu volume de negócios disparou 20,6% para 30608 milhões de euros nesse ano, devido ao forte desempenho de vendas e que dessa forma superou pela primeira vez os 30 mil milhões de euros em vendas. Eis senão quando Soares dos Santos, o mesmo que em 2023 ganhou 186 vezes mais do que o salário médio que paga aos seus trabalhadores, durante a apresentação dos lucros, foi questionado sobre as eleições legislativas que se iriam realizar no domingo. Respondeu o CEO que, «neste momento, a fraca qualidade dos nossos políticos obriga-nos a pensar se não devemos mudar enquanto sociedade» e que o problema do país não é a falta de dinheiro mas antes «a falta de qualidade e a falta de gestão das pessoas». Falando no plural, o beneficiário da meritocracia hereditária, certamente referia-se às pretensões da sua classe que já não está satisfeita com os lucros que arrecada e precisa de acumular ainda mais capital. O mesmo Soares dos Santos que falava em mudança certamente não estava a pensar numa mudança à esquerda, mas sim numa que visasse garantir os seus objetivos de classe. O mote estava dado, e foi seguido por Cláudia Azevedo, CEO do grupo Sonae, na passada terça-feira, também na apresentação dos lucros do grupo. Nesse dia, Cláudia Azevedo anunciou que a Sonae aumentou os lucros em 6,4% para atingir os 357 milhões de euros em 2023, o que compara com os 336 milhões de 2022 e que o volume de negócios ascendeu a 8,4 mil milhões de euros em 2023, mais 9,2% que no ano anterior. Eis então que Cláudia Azevedo, a mesma que em 2023 ganhou 82 vezes mais do que o salário médio que paga aos seus trabalhadores, e a mesma que viu o Estado a pagar 450 mil euros à Sonae para apoio ao pagamento dos salários mínimos na empresa (ainda que, nessa mesma altura, tenha aumentado o seu salário para os 400 mil euros), durante a apresentação dos lucros, foi também ela questionada sobre as eleições legislativas que se realizaram no domingo. Respondeu a CEO que «pelo número de pessoas que foram votar e pela forma como votaram, há um grito de mudança grande» e que «as pessoas votaram a dizer isto: estamos fartos de politiquices e queremos políticas de futuro». Claro está que, tal como o CEO da Jerónimo Martins, a CEO da Sonae falou pela sua classe e reiterou que «a carga fiscal sobre as pessoas e as empresas é excessiva» e particularizou o caso da taxa sobre os lucros extraordinários da distribuição que «ainda faz menos sentido». Ou seja, Pedro Soares dos Santos e Cláudia Azevedo foram os porta-vozes do grande capital, dos que viram os seus lucros aumentar e dos que estão sedentos para os aumentar ainda mais. Para ambos, a tal mudança necessária não é a mesma mudança que é necessária para os trabalhadores. O tal «grito de mudança» que colocou a direita no poder e deu expressão aos projectos mais reaccionários, é, no final do dia, o garante da defesa dos seus interesses e os lucros assim o ilustram. Nas eleições do passado domingo, foram os grandes grupos económicos os vencedores. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Editorial|
Foram os grandes grupos económicos quem ganhou as eleições
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Paralelamente, lapida-se a deseducação, ilude-se a realidade, promove-se o parasitismo nas inúmeras horas televisivas em que peroram gouchas, cristinas, júlias, claúdios, alcatifando a miséria cultural que empobrece e embota consciências. Correntes que confluem para a pobreza económica, cultural e moral da democracia transformada em mercado político. É a actual praga política, cultural e social que emerge das derivas económicas, políticas erradas para enfrentar a inflação importada, a especulação imobiliária, a mitigação da subida insensata das taxas de juro, o desinvestimento ou investimento ferreamente controlado no SNS, no ensino, nos rendimentos dos trabalhadores, reformados e pensionistas centrando a sua preocupação na dívida pública para onde canalizam os excedentes orçamentais, para aí apoiar as grandes empresas capitalistas.
Refira-se o exemplo da Dona Claúdia Azevedo, cujos honorários 1 em 2023 eram 85 vezes mais que os salários médios dos trabalhadores do grupo Sonae, que o Estado socorreu (?) subsidiando a Sonae em 450 mil euros para apoio ao pagamento dos salários mínimos da empresa, quando o salário mínimo nacional foi fixado em 820 euros. Não é suficiente, a sua insatisfação é grande, pelo que reclama «políticas de futuro».
A situação por cá vivida não é muito diversa da que progressivamente está em crescendo na Europa, como o confirmam os resultados nas urnas em países como a Dinamarca, Hungria, Áustria, Finlândia, Holanda, Bélgica, França, Itália ou Espanha, a dar vitórias à direita e extrema-direita ou a ganharem terreno, ocupam mesmo lugares na governação, antecipando o que acabou por ocorrer em Portugal. A antropologia burguesa vai sendo deglutida pela antropologia neo-fascista. São as metamorfoses sequenciais do capitalismo, do liberalismo clássico ao neoliberalismo, ao neofascismo, impostas pelas exigências e urgências de o salvar das sucessivas e cada vez mais fundas crises.
Como se chegou à situação actual? Como perceber esta pandemia civilizacional que todos, de modos diversos mesmo opostos, acabam por reconhecer? Esta onda de direita e extrema-direita invade sem excepções toda a Europa, o sistema neoliberal, em particular o vigente na União Europeia (UE) é a sua causa. A maior ou menor resistência da esquerda está cercada e não mobilizará uma alternativa sem um projecto global de desenvolvimento que confronte e ponha em causa o sistema neoliberal instalado, consolidado desde que Jacques Delors o planeou, estruturando as traições das terceiras vias sociais-democratas, com o mercado único, a moeda única, uma política potencialmente única que se estabilizou nos anos 90. Se o modelo social europeu já era desestimulado, sempre minado pela Comissão Europeia e pelo BCE, com o pretexto da guerra da Ucrânia está a ser completamente desmantelado.
«A antropologia burguesa vai sendo deglutida pela antropologia neo-fascista. São as metamorfoses sequenciais do capitalismo, do liberalismo clássico ao neoliberalismo, ao neofascismo, impostas pelas exigências e urgências de o salvar das sucessivas e cada vez mais fundas crises.»
É nesta Europa, em que o frágil Estado social está a ser substituído pelo robusto estado de guerra, o que evidentemente não consta directamente em nenhum programa eleitoral, mesmo quando encapotadamente o façam preconizando um substancial aumento das despesas com armamento, que as direitas vão abrindo caminho com bastante desembaraço, como provavelmente as próximas eleições para o Parlamento Europeu irão comprovar.
Este estado de sítio agrava-se quando há partidos ditos de esquerda que proclamam oxímoros como os da direita democrática para justificarem a sua disposição para capitularem, subscrevendo mesmo as políticas atlantistas mais agressivas de que são exemplo paradigmático os Verdes alemães.
Por cá, a primeira linha é galhardamente ocupada pelo Livre, esse partido de esquerda invertebrada que defende essa Europa, que está disposto a todas as cedências desde que delas extraia dividendos materiais e imateriais, o que faz utilizando com habilidade uma linguagem polidamente manhosa para subverter todos os princípios que alardeia defender, a começar pela soberania nacional totalmente incompatível com a Europa que, com unhas e dentes, defendem os Co-Porta Vozes do Grupo de Contacto do Livre (até essas designações são de uma bufonearia rasteira!).
«É nesta Europa, em que o frágil Estado social está a ser substituído pelo robusto estado de guerra, o que evidentemente não consta directamente em nenhum programa eleitoral, mesmo quando encapotadamente o façam preconizando um substancial aumento das despesas com armamento, que as direitas vão abrindo caminho com bastante desembaraço, como provavelmente as próximas eleições para o Parlamento Europeu irão comprovar.»
Qual soberania nacional, quando deixámos de ter soberania monetária e orçamental? Nada trava essa rapaziada vendida à UE e aos seus instrumentos: Acto Único Europeu, Tratado de Maastricht, Tratado de Amesterdão, Tratado de Nice, que subscreve a transformação da Agenda de Lisboa num programa ultraliberal e o Tratado de Lisboa, o Pacto de Estabilidade e Crescimento, o Acordo de Schengen, o TTIP. Gente que está de acordo com a ausência de harmonização fiscal e dos direitos sociais na UE. Com o aumento da percentagem do PIB em despesas para a defesa, almejando por um forte e bem armado exército europeu. Com os dribles às políticas verdes para acalmar os agricultores da UE e porque de facto o capitalismo nunca foi verde e as políticas verdes só o são enquanto bom negócio. A subserviência dessa gente aos ditames mais conservadoras de Bruxelas é indignante. Aldrabões de alto calibre travestidos de esquerda quando o que querem todos bem sabemos ou devíamos saber o que é, pelo que sempre que se ouve Rui Tavares ecoa a Carta a Gonelha escrita por Luiz Pacheco.2
As barganhas correm sem freio pelo Livre, são as traves-mestras das suas intervenções dessa esquerda fofinha, bem comportada tão do agrado das direitas que os usa como pisa-papéis de fina porcelana para que os seus decretos e despachos que favorecem o grande capital não voem empurrados pelos ventos da história. Têm excelente companhia e respaldo na direita incrustada no Partido Socialista para descanso e repouso das políticas mais reaccionárias.
Do lado dos bárbaros vão-se tecendo as teias de aranha dos entendimentos. As premências de meter as mãos no pote, de distribuir o seu conteúdo, atrasam a sua feitura. Depois de saírem debaixo das saias rodadas do PSD e do CDS saltaram para as arenas sequiosos de golpearem fundo as conquistas da Revolução de Abril, apesar de viradas do avesso por dezenas de anos de governações de direita protagonizadas pelo PS, PSD, CDS, sozinhos ou coligados.
«As barganhas correm sem freio pelo Livre, são as traves-mestras das suas intervenções dessa esquerda fofinha, bem comportada tão do agrado das direitas que os usa como pisa-papéis de fina porcelana para que os seus decretos e despachos que favorecem o grande capital não voem empurrados pelos ventos da história.»
Nas últimas eleições o Chega conquistou mais de um milhão de votos, tornou-se na terceira força política com expressiva representação na Assembleia da República. Um partido que à míngua de quadros gravita à volta de um gauleiter que é o político português mais desenvergonhado e mentiroso, de que se poderia pensar não ser possível ter existência. Existe, tem êxito e goza de tempos de antena e páginas na comunicação social escrita que lhe conferem um brutal protagonismo com a dupla vantagem de estar sempre presente e não ser desmentido por maiores e mais indubitáveis imposturas que bolse. É um partido ultra-reaccionário, saudoso da ditadura salazarista fascista, de uma sociedade securitária, do passado colonial que elogia. Está contra qualquer réstia de progressismo social. É a favor da xenofobia, da discriminação racial, contra todos os direitos sociais, em particular os que favoreçam as mulheres, são misóginos, machistas, homofóbicos.
O pior da natureza humana estaciona nesse partido que engana os mais vulneráveis ao seu discurso em que vocifera contra o sistema porque quer impor a ditadura pós-moderna dos novos fascistas que pretextam ser democratas, modelo Meloni a fazer caminho. O Chega desenvolve actividade política aproveitando-se das fraquezas e falhas do sistema democrático e dos muitos portugueses sem qualquer espécie de valores, a começar pelos mais básicos direitos humanos. Ventura está bem consciente dessa situação e do que está a fazer, explora todo o terreno abusando dos descontentamentos, muitos deles justos, que vende amalgamados com os que inventa, como qualquer bom vendilhão de banha da cobra que trata todas as doenças ou louro prensado em vez de haxixe. Mergulha de cabeça no grupo muito alargado de portugueses que acredita que há um sistema que beneficia sempre os mesmos e os prejudica, os que se movimentam nas portas giratórias entre o poder económico e o político, a elite corrupta que deve ser derrubada. O êxito do Ventura é ser o maior vigarista político e intelectual, exímio nas formulações primárias e nos apelos sanguinários que excitam esse mundo cão. Êxito que os ludíbrios, as insídias da comunicação social e os seus agentes abastecem, engordando o monstro.
As farândolas do Chega têm a vantagem de dar espaço para a Iniciativa Liberal (IL) se passear com ademanes democráticos, exibindo-se como pessoas cosmopolitas, bem apessoadas, bem perfumadas, com estilo nas suas vestimentas modernaças, fascistas que fazem o contraponto aos grunhos «cheganos».
«O pior da natureza humana estaciona nesse partido que engana os mais vulneráveis ao seu discurso em que vocifera contra o sistema porque quer impor a ditadura pós-moderna dos novos fascistas que pretextam ser democratas, modelo Meloni a fazer caminho.»
Há que ler o seu programa, os textos publicados pelos seus fundadores em jornais ditos económicos e de negócios, os estudos produzidos pelo Instituto +Liberdade, para se verificar que os objectivos até são mais sinistros que os do Chega. Distintos seguidores de Hayek, Friedman, Stigler e demais tropa de choque dos Chicago Boys, nalguns assomos de maior clareza, elogiam o Chile de Pinochet e as suas políticas económicas. O objectivo último da IL é privatizar tudo, mesmo o Estado, porque, como escreveu o nosso Nobel da Literatura, «aí se encontra a salvação do mundo… / e já agora, privatize-se também / a puta que os pariu a todos».3
Com o cacharolete político saído das últimas eleições, o país está aparentemente ingovernável a acreditar no «não, é não» de Montenegro em relação ao Chega, de que, por enquanto, se desconhece a elasticidade. Com a direita e extrema-direita amplamente maioritárias, a vida da esquerda, das esquerdas, mesmo que com as máximas reservas aí se inclua um Livre predisposto a todas as perfídias, mesmo que algumas ponham a falácia da sua imagem de esquerda em causa, encontrando aliados na direita nada desprezível cristalizada no PS, a esquerda, as esquerdas para enfrentarem as ameaçadoras vagas de direita nos seus diversos formatos, vai ter tarefas difíceis, exigentes, até sofisticadas para ultrapassar os tempos próximos propícios aos bem pagos bufarinheiros e calhordas de direita, alguns travestidos de falsa seriedade intelectual, que pululam e contaminam os órgãos de comunicação social com as suas intrigalhadas a intoxicar a opinião pública.
Há uma questão central que tem que ser enfrentada que é a da União Europeia, o seu enviesamento neoliberal, omnipresente nas suas constituições informais e formais, que são reconhecidamente aliadas das direitas, aqui e em toda a UE, com todas as péssimas consequências para a economia política, com as privatizações dos sectores estratégicos que deveriam ser detidos pelos Estados, a austeridade nos seus diversos gradientes, o euro imune a qualquer transformação. Nessas áreas sensíveis e essenciais para o progresso político, económico e social, os entendimentos à esquerda são complicados mas necessários, mesmo que em formatos dessemelhantes.
- 1. Remuneração da presidente da Comissão Executiva (CEO) da Sonae subiu de 1 239 200 euros em 2020 para 1 607 600 euros em 2021. Em 2022, Cláudia Azevedo recebeu quase 515 mil euros de remuneração fixa, 544 mil euros de prémios de curto prazo (pelo desempenho da Sonae em 2021) e outros 544 mil euros de prémios de médio prazo. Acrescem despesas de representação, cartões de crédito, seguros de saúde, etc.
- 2. Luiz Pacheco, Carta a Gonelha, Contraponto 1977.
- 3. José Saramago, Cadernos de Lanzarote – Diário III, Editorial Caminho, 1996.
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