Entre 6 de Abril e 3 de Maio de 2011, o governo demissionário português conduzia negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Comissão Europeia (CE) e o Banco Central Europeu (BCE) para uma «ajuda financeira», um «resgate», um «programa de assistência». A experiência passada com o FMI (em 1977 e 1983) e os programas da troika impostos à Grécia e à Irlanda um ano antes faziam adivinhar os custos de tal decisão.
O processo que levou a que, há seis anos, o PS, o PSD e o CDS-PP aceitassem os termos do pacto com a troika começou antes. A partir do final de 2007, a crise económica e financeira fez disparar o nível de endividamento do País, os encargos com a dívida e os juros suportados anualmente. Com a recessão, o número de desempregados cruzou a fasquia do meio milhão pela primeira vez desde a Revolução de Abril.
Entre Março de 2010 e Março de 2011, o governo foi aprovando, com a ajuda do PSD, sucessivos planos de estabilidade e crescimento (os famosos PEC I, PEC II e PEC III) – documentos que já continham muitas das medidas de cortes de direitos e rendimentos, privatizações e liberalizações, com a destruição de serviços públicos, que viriam a integrar o programa imposto ao País em Maio de 2011.
O primeiro-ministro, José Sócrates, demite-se a 23 de Março, após o chumbo do quarto PEC, e o governo entra em funções de gestão. As eleições ficam agendadas para 5 de Junho mas as movimentações para que os três partidos que até aí governaram o País lá cheguem com um caderno de encargos único entram em marcha logo nos últimos dias de Março.
No início do mês de Abril, os banqueiros e os donos dos maiores grupos económicos têm montada uma estratégia para pressionar a chamada da troika. Entre reuniões com o governador do Banco de Portugal, com o líder do PSD, e com membros do governo demissionário, conseguem em poucos dias o objectivo. Em paralelo, multiplicam-se em entrevistas, artigos e intervenções públicas, repetindo o discurso das inevitabilidades.
Mas existiam outros caminhos. Um dia antes da comunicação em que o primeiro-ministro anunciou o «pedido de ajuda», o PCP propunha a «renegociação da dívida, nos seus prazos, juros e montantes», a par de outras medidas de ânimo à produção nacional e diversificação das fontes de financiamento do País.
Uma proposta em que os comunistas, à data isolados, viriam a estar progressivamente acompanhadas por vários sectores e muitas personalidades, ainda que com formulações e alcance diversos.
A dívida não desapareceu
O endividamento público cresceu 25 pontos percentuais entre 2008 e 2010, mas é nos dois anos seguintes (2011 e 2012, com a troika já instalada) que se dá a maior subida – de 96% passa para 126% do PIB. Os encargos com juros vão subindo paulatinamente de 4,3 mil milhões para os 5 mil milhões de euros entre 2006 e 2010, saltando para mais de 6 mil milhões em 2011. Quando Passos Coelho e Paulo Portas anunciam a «saída limpa» do programa da troika, em Maio de 2014, a factura anual já chegava perto dos 8,5 mil milhões.
Os 78 mil milhões de euros de empréstimos do FMI, da CE e do BCE tiveram, por si só, um efeito devastador na dependência financeira de Portugal. Se a situação era insustentável em Abril de 2011, temos hoje um encargo anual com a dívida que subiu para quase o dobro nos últimos dez anos – e um volume de endividamento que cresceu na mesma medida.
Se um dos problemas do Portugal de 2011 era o garrote que o endividamento representava ao seu desenvolvimento soberano, pouco mudou nesse aspecto. As agências de rating continuam a acenar com a categoria «lixo», os gigantes da especulação financeira internacional continuam a manipular as taxas de juros a seu bel-prazer e o euro e o seu banco central (o BCE) ainda servem de impedimento a uma abordagem que liberte recursos.
Nem os quase 10 mil milhões de receita com privatizações contribuíram para baixar o endividamento. O acordo assinado em Maio de 2011 previa 5,5 mil milhões de euros com o programa de privatizações, que incluía a ANA, a TAP, a CP Carga, a Galp, a EDP, a REN e a Fidelidade. O governo do PSD e do CDS-PP ainda acrescentou à lista a EGF, e tentou as privatizações dos transportes rodoviários de Lisboa e do Porto. No fim das contas, o País perdeu participações importantes (algumas maioritárias ou integrais) em empresas estratégicas – a dívida cá continua.
Também as medidas no plano económico, fiscal, laboral e social que a troika impunha, e que o anterior governo cumpriu, fizeram aprofundar a recessão económica, já sentida em 2011. Entre 2009 e 2014, o PIB encolheu mais de 7%; a taxa de desemprego cresceu mais de 3 pontos percentuais; a dívida pública passou de 83% para 130% do PIB.
Em 2016, pela primeira vez desde, pelo menos, a entrada em circulação do euro, em 2002, a despesa com o serviço da dívida foi mais de duas vezes maior que o saldo orçamental. Isto significa que uma renegociação da dívida que reduzisse para metade os encargos com juros colocaria as contas públicas portuguesas com um saldo positivo (mais receita que despesa) – um superávite, não um défice.
A quem serviu o «programa de assistência da troika»
Os vários governos sempre rejeitaram divulgar estatísticas relativas aos beneficiários da dívida pública portuguesa. Sabemos pouco sobre quem emprestou os milhares de milhões que levaram o País à situação de 2011.
Mas, até usando o processo de reestruturação da dívida grega como paralelo, sabemos que quem mais ganhou com o empréstimo da troika e o travão a uma reestruturação da dívida foram alguns dos maiores bancos europeus. A pressão que banqueiros de cá e do estrangeiro fizeram não foi inocente, nem que tenham estado muito activos na campanha pelo «pedido de ajuda externa», seja no recato de gabinetes ministeriais, de instituições ou outros corredores do poder; seja junto da opinião pública e através da opinião publicada – directa e indirectamente.
Nos meses que antecederam Abril de 2011, os bancos europeus podiam pedir financiamento ao BCE a taxas de juros próximas de 1% para, de seguida, emprestarem dinheiro ao Estado português a taxas que chegaram aos 8%. A especulação financeira, posta em marcha com recurso ao BCE, foi determinante para que a dívida se fosse tornando cada vez mais impagável.
Entretanto, com os 78 mil milhões da troika, todos aqueles que jogaram na roleta da especulação ganharam: os fundos para pagar a aposta estavam garantidos, só o futuro do País é que não.
Anos negros e resistência
A luta contra as medidas de aumento de impostos, cortes nos rendimentos e nos direitos começou antes da formalização do «pedido de ajuda» ao FMI, à CE e ao BCE. Em Novembro de 2010, três milhões de trabalhadores param em dia de greve geral. O protesto, nesses moldes, voltou a repetir-se um ano depois, mais duas vezes em 2012 e uma quarta em 2013.
O «memorando de entendimento» traçava os objectivos a alcançar: avançar na liberalização dos sectores da energia, comunicações e transportes e do arrendamento urbano; redução drástica nos quadros de pessoal das administrações públicas e na capacidade de resposta dos serviços públicos (particularmente na Saúde e Educação).
Mas uma das alterações mais profundas, e, talvez, mais duradoura, deu-se no mundo do trabalho. As alterações incidiram sobre quase todos os aspectos: organização do tempo de trabalho, esvaziamento da contratação colectiva, flexibilização salarial, facilitação dos despedimentos e redução dos custos do trabalho, das indemnizações por despedimento ou dos subsídios de desemprego.
Os sucessivos ataques tiveram dos trabalhadores portugueses resposta. De acordo com dados oficiais, do Ministério do Trabalho, o número de trabalhadores que pararam em greve no período de 2010 a 2013 (quatro anos em que se realizaram cinco greves gerais) só tem paralelo nos últimos anos de Cavaco Silva como primeiro-ministro. A partir de meados dos anos 90, só em 2002 – ano de outra greve geral, contra o pacote laboral de Bagão Félix, ministro de Durão Barroso – os dados são comparáveis.
Em Maio de 2014, Passos Coelho e Paulo Portas anunciam a «saída limpa» do programa da troika, depois de três anos em que o corte nos salários chegou aos 5 mil milhões de euros. A 4 de Outubro do ano seguinte, a coligação eleitoral do PSD e do CDS-PP é derrotada, perde 800 mil votos e 30 deputados, e, um mês depois, os partidos são afastados do governo.
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