Aconteceu, como se as coisas que acontecem neste país não tivessem já o suficiente de absurdo, que se sentaram frente-a-frente, numa dessas salas de televisão onde a luz não é para ver melhor mas para esconder o essencial, um jornalista que há muito se esqueceu de o ser, ou talvez nunca o tenha sido e apenas desempenhe agora com convicção o papel de inquisidor moderno, desses que não procuram a verdade mas o tropeço, o escorregão, a frase fora do lugar, que depois se possa repetir em rodapé durante quarenta e oito horas, e um homem que, com todas as suas limitações humanas, com todos os seus defeitos ideológicos que uns apontam com fúria e outros defendem com teimosia, estava ali, diante das câmaras, para falar ao povo, como se diz em linguagem antiga, sobre o país, sobre o que fazer com este chão que se afunda a cada dia, mas não pôde, não lhe deram tempo, ou melhor, deram-lhe o tempo contado em perguntas mal intencionadas, em provocações disfarçadas de curiosidade, em silêncios estratégicos que se seguem à interrupção brusca, e Paulo Raimundo, que é homem de carne e osso, aguentou, respondeu, tentou argumentar, mas como se responde a quem não quer ouvir, como se explica o país a quem só quer o soundbite, a polémica, o pequeno escândalo mediático para alimentar o dia seguinte?
E assim foi, dez minutos de entrevista que pareceram dez espelhos partidos, em que o entrevistador, se assim se lhe pode chamar, falava mais do que o entrevistado, ou falava para si próprio, que é ainda pior, como quem se ouve e se admira, e o outro, o Paulo, manteve-se ali, firme, tranquilo até onde a dignidade permite, e no fim, quando a paciência e o tempo se esgotaram juntos, perguntou aquilo que só um homem inteiro pode perguntar naquele momento: ai já está?, e nessa pergunta cabia tudo, a indignação e a tristeza, o absurdo e o cansaço, o desejo de ter dito o que precisava de ser dito, e a consciência amarga de que não o deixaram.
Mas isto não foi só uma entrevista, meus amigos, foi um retrato, um espelho da maneira como se cala quem pensa diferente, não com a censura antiga de lápis azul, mas com a nova, feita de interrupções, de insinuações, de tempo esvaziado de conteúdo, e no fim, o silêncio, que não é ausência de palavras, mas o excesso delas ditas por quem não quer ouvir resposta.
«E assim foi, dez minutos de entrevista que pareceram dez espelhos partidos, em que o entrevistador, se assim se lhe pode chamar, falava mais do que o entrevistado, ou falava para si próprio, que é ainda pior, como quem se ouve e se admira (...).»
José Rodrigues dos Santos, esse mesmo que escreve romances históricos com os olhos postos no abismo, como se a história não fosse senão uma grande reportagem de telejornal mal disfarçada, aparece diante de nós, não como jornalista, nem sequer como romancista, mas como sacerdote de uma liturgia funesta, alguém que parece rezar, com um fervor inquietante, pela continuidade da guerra, não por convicção geopolítica, nem por simpatia com o sofrimento dos povos, mas por uma razão mais íntima, mais televisiva, mais viral, e quem sabe mais narcísica. Sim, porque há narcisismos que se escondem atrás de fatos bem passados e perguntas com o sobrolho arqueado, perguntas que não procuram respostas, mas apenas confirmar aquilo que o perguntador deseja profundamente ouvir, que tudo continue a arder, que os corpos continuem a tombar, que as cidades sejam esventradas pela artilharia para que, finalmente, ele possa abrir o telejornal com aquele tom grave, solenemente ensaiado, e dizer «Morreram todos», como disse da outra vez, e sentir no instante em que o diz o mesmo calafrio que um actor sente ao ouvir o aplauso da plateia.
Porque, não nos iludamos, ele gostou e gostou muito, não do sofrimento em si, claro, dirá ele, quem pode gostar do sofrimento, mas do eco que o sofrimento alheio lhe trouxe, da atenção, do viral, do choque necessário para manter a relevância numa era em que a verdade já não basta, em que a informação tem de ser também espectáculo, tem de ser ruído, tem de ser um murro no estômago, e se o murro for grande o suficiente talvez se tornem a ouvir as sirenes, talvez se volte a ver no écran aquela nuvem negra a subir nos céus, e ele poderá dizer de novo, com os olhos semicerrados e a voz embargada de emoção calculada, que estamos perante uma tragédia, que morreram todos, e quem sabe, no fundo do coração, desejar que voltem a morrer, porque só com a morte se faz o drama, e só com drama se abre um bom telejornal.
E outros como ele há, sem dúvida, porque a indústria da guerra não se faz só de armas e tanques e tratados secretos, também se faz de narrativas, de imagens de satélite, de estúdios e de homens sentados atrás de secretárias que fingem imparcialidade mas que, no fundo, vibram com a desgraça como quem vibra com um golo ao minuto noventa e dois, e por isso, quando Paulo Raimundo ousa dizer que a paz é uma necessidade e não uma utopia, que a guerra não é um espectáculo mas uma tragédia, José Rodrigues dos Santos ri-se por dentro, talvez até se ofenda, porque a paz não dá audiências, a paz não faz cliques, a paz não se partilha nas redes, e no mundo deles, desse jornalismo de palco, o que não se partilha não existe.
O verdadeiro problema, se quisermos chamar-lhe assim, é que estes homens e mulheres que lutam pela paz, palavra simples mas subversiva quando levada a sério, não desarmam, não desistem, não se deixam levar pela espuma dos dias nem pelas armadilhas da retórica televisiva, continuam cá, teimosamente presentes, alicerçados numa esperança que não se compra em prateleira de supermercado nem se aprende nos manuais de opinião publicada, mas que nasce da convicção profunda de que é possível outro caminho, outro país, outra vida, e é essa persistência, essa dignidade resistente, que tanto incomoda quem prefere o ruído à substância, o escárnio à escuta, a encenação à verdade. Quando, perante a tragédia, perante os escombros de cidades bombardeadas, perante a morte tornada rotina e a guerra aceite como inevitabilidade, esses mesmos persistem em dizer que não, que não aceitam, que não se resignam, que a paz não é uma palavra vã mas uma urgência vital, e que é possível escolhê-la, mesmo quando tudo à volta empurra para o contrário.
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