Numa nova e extraordinária (pela falta de noção) intervenção, Isabel Jonet, Presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome, tornou a deixar evidente o paternalismo que subjaz à caridade. Depois de, em 2012, expressar a sua preocupação com a possibilidade de pessoas de baixos rendimentos comerem bife, a caridosa Marie Antoinette lusitana lamentou a falta de formação em economia doméstica dos pobres.
Governar pela positiva e ter uma agenda concreta não é também repor rendimentos e direitos dos trabalhadores, criar estímulos às actividades dos micro e pequenos empresários e reforçar os direitos à Saúde, à Educação e à Segurança Social? O chumbo parlamentar da baixa da Taxa Social Única para os patrões tem sido o pretexto para os defensores das inevitabilidades das políticas da governação do PSD e do CDS-PP, que proclamavam não haver alternativa aos cortes nos salários, nas reformas e pensões, ao aumento da precariedade no emprego e ao progressivo processo de privatização de serviços públicos e funções sociais do Estado, voltarem a colocar na ordem do dia a actual solução política. A tónica é agora colocada na ideia de que a solução política encontrada pelo PS e pelos partidos à sua esquerda – BE, PCP e PEV – está esgotada, porque foi criada com o único objectivo de reverter as medidas do governo de Passos Coelho e Assunção Cristas, e que não conseguirá governar pela positiva. É verdade que os resultados são ainda limitados, resultado também das políticas e das opções do Governo para responder aos graves problemas nacionais que os sucessivos governos e a intervenção externa impuseram ao País. Mas, não é governar pela positiva e ter uma agenda concreta quando, por exemplo, se repõem rendimentos e direitos dos trabalhadores, se criam estímulos às actividades dos micro e pequenos empresários e se reforçam os direitos à Saúde, à Educação e à Segurança Social? As medidas deste governo, nomeadamente o aumento do salário mínimo nacional (SMN) e das pensões, e o fim da sobretaxa, são dirigidas às camadas com baixos rendimentos e, ao contrário do que afirma Isabel Jonet em entrevista reproduzida hoje na imprensa, já chegaram a esse sector da população. Aliás, não deixa de ser curioso que, nessa mesma entrevista, venha questionar se as empresas podem aguentar o aumento do SMN sem despedimentos. De resto, quando a presidente do Banco Alimentar sugere um «acordo entre as várias forças políticas para se levar a cabo uma política que mude a situação das pessoas que vivem mal» era importante saber em que é que esse acordo se traduziria. Isto é, se quando fala do combate à pobreza está a pensar em medidas que melhorem as condições de vida das populações, como o aumento do SMN, os aumentos salariais na Administração Pública e no sector privado, o combate à precariedade no emprego e a defesa e reforço da contratação colectiva; ou se está a pensar apenas em medidas assistencialistas. É que, quando falamos de acordos alargados, convém não esquecer que foram as políticas da governação do PSD e do CDS-PP que contribuíram para o agravamento da pobreza e a deterioração de uma parte significativa dos trabalhadores e pensionistas, e que no seu ADN não está a defesa dos interesses dos trabalhadores, dos sectores da população mais pobres e desfavorecidos! Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Editorial
A agenda da direita
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«Quando se atribui uma ajuda deste tipo [a entrega de 125 euros a todas os cidadãos com receitas abaixo dos 2700 euros], é importante fazer uma pedagogia e explicar às pessoas que não podem ir gastar estas verbas todas de uma só vez», tentou argumentar Isabel Jonet, em declarações à Agência Lusa.
Curiosamente, esta preocupação nunca se aplica aos milionários que malbaratam os imensos lucros que extorquem, todos os anos, todos os meses, todos os dias, desses mesmos pobres. Faz hoje, 7 de Setembro de 2022, precisamente um ano que o actual presidente de El Salvador, Nayib Bukele, um populista da extrema-direita, desatou a jogar no casino aleatório das criptomoedas, tendo já perdido, em 12 meses, mais de 300 milhões de dólares pertencente ao povo salvadorenho.
As boas intenções de Jonet nunca se aplicam a esta classe de «investidores». Mário Ferreira, o empresário que gastou centenas de milhares de euros numa pseudo-viagem de 11 minutos ao espaço, nada tem com que se preocupar. Jonet não terá qualquer reparo a fazer sobre a sua conduta.
A Pedagogia do Opressor
Subjacente às suas afirmações está a genuína preocupação que os pobres, recebendo um pouco de dinheiro extra, gastem tudo em todo o dinheiro em «copos e mulheres», como afirmou o presidente do Eurogrupo Jeroen Dijsselbloem, em 2017, referindo-se aos povos do Sul da Europa.
São perto de dois mil milhões de euros os lucros arrecadados no primeiro semestre, apenas pelas energéticas e pelos principais bancos a operar em Portugal. Já foi praticamente tudo dito aqui em matéria de acumulação de riqueza, desigualdades e injustiças sociais, mas os números revelados ao longo da última semana, sendo a confirmação deste estado de coisas, voltaram a surpreender pela obscenidade. Não vale a pena argumentar com «situações excepcionais», porque não é de excepções que o sistema capitalista se alimenta. A guerra na Ucrânia não seria uma «situação extraordinária», como ontem referia Marcelo, nem poderia servir para justificar a riqueza obtida com o sacrifício dos portugueses, se quem nos governa tivesse tomado medidas de forma a não desequilibrar ainda mais os pratos da balança. Tão surpreendente quanto a riqueza criada numa altura em que, por mais que se estique, as contas de muitas famílias já não dão para pôr comida na mesa até ao final do mês, é a naturalidade com que se divulgam notícias sobre os resultados semestrais das empresas. Mas também a facilidade com que os beneficiários tentam pô-las em perspectiva. Os lucros «não são excessivos», argumentaram os presidentes da CGD (486 milhões de euros de lucro) e do BPI (201 milhões), onde as «reestruturações» alicerçadas em fechos de balcões e despedimentos têm impulsionado o aumento da riqueza. O facto de nos tentarem fazer acreditar que a obtenção destes resultados não tem nada de extravagante, numa altura em que a subida dos preços come cada vez mais os salários de quem gera a riqueza, só pode ser uma manobra de distração, por um lado, e de escape, por outro. Enquanto mantiverem o povo aprisionado à ideia de que este é o estado natural das coisas e não há alternativa, que os trabalhadores são descartáveis ou podem ser colocados a trabalhar com vínculos precários, que os salários não podem subir muito mais se não lá se vai a estabilidade e a produtividade das empresas, e que estas só são realmente viáveis se derem milhões a ganhar aos seus accionistas, nada muda. Por outro lado, a retórica de que os resultados não são exagerados só pode servir para não sedimentar ideias, algumas pífias, como a que teve Marcelo, de pedir às empresas com lucros «extraordinários» iniciativas de «maior responsabilidade social». A justiça social não se constrói com paliativos, caridade ou apelos à boa vontade das empresas, mas com a aplicação de políticas que defendam quem trabalha e trabalhou, e permitam distribuir melhor a riqueza criada no nosso país. Espanha aprovou recentemente um imposto extraordinário sobre os lucros dos sectores bancário e energético. Por cá, o Governo foi instado a fazer o mesmo, mas Luís Montenegro logo veio em auxílio dos grandes grupos económicos, argumentando que «não há justificação para criar mais impostos», e que esse seria um «sinal incorrecto aos que investem no sector da energia em Portugal». Além de desmentirem o novo líder do PSD, os lucros da Galp (420 milhões) e da EDP (306 milhões, mais 265 milhões da EDP Renováveis), permitem ter uma ideia do que podia mudar se ainda fosse o País a beneficiar deles. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Editorial|
Até quando vão continuar a vender a ideia de que isto é tudo normal?
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É muito fácil, vivendo numa redoma de vidro, assumir a posição paternalista que Isabel Jonet tem para com os «coitadinhos», a quem pretende, a todo o custa, ensinar a sua lição. Será sempre muito fácil falar de boas práticas de poupanças quando se vive, confortavelmente, há quase 30 anos, dos rendimentos de um familiar (suficientes para ambos e ainda criar mais cinco filhos), sem ter de se preocupar com as provações que esses milhões de trabalhadores enfrentam todos os dias nos seus postos de trabalho.
A total ausência de noção que aflige Isabel Jonet é sintomaticamente típica numa sociedade profundamente desigual como a nossa. Desconhecendo por completo a realidade destas pessoas, Jonet aplica a sua visão, distorcida, retrógada e paternalista aos outros.
Ignorando a realidade da pobreza, para Jonet, e segundo as declarações que causaram tanta celeuma, é equivalente que um rico passe a beber água da torneira a que um pobre deixe de comer carne. Entre o supérfluo e o indispensável há um mundo. As suas declarações expressam um pensamento do século XX, mas ainda do tempo remoto pré-1974, do pobre arranjadinho, sem outro projecto que não cumprir o de cumprir o seu desígnio de trabalhar até ao fim dos seus dias.
Na verdade, o que não entra na cabeça destas pessoas é que os seus motoristas, cabeleireiros, jardineiros e criadas, possam ter o mínimo de dignidade, ambições, gostos e vontades, para além de atender aos desejos e desmandos dos patrões. Chega a ser absurdo o quão idênticas são as declarações de Isabel Jonet e as famosas palavras da Marie Antoinette (Não têm pão? Comam bolos...).
A caridade da Jonet esconde o carácter classista do capitalismo e do liberalismo económico: para os patrões, nem chega a ser concebível que um pobre exija ser feliz e almeje um pouquinho mais de dignidade na vida. O pobre não é só alguém com menos (muito menos) dinheiro, é toda uma outra, e exótica, espécie. Lamentavelmente, uma espécie inferior.
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