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A liberdade na Internet, uma batalha que está a ser perdida

A luta contra a desinformação, contra as «fake news», tem servido de desculpa para montar novos instrumentos de censura. Desde logo, por autorizar muitas empresas a censurar conteúdos por «boas razões».

Créditos / Wecomex

Diz o ditado popular que «de boas intenções está o Inferno cheio». Mas posso garantir-vos, mesmo sem nunca ter visitado o dito Inferno ou sequer acreditar na sua existência, que, existindo, abarrotaria principalmente de más intenções. Porque se é verdade que é possível que uma acção bem intencionada produza um resultado negativo que não era o pretendido, na maior parte das situações que encontramos no dia-a-dia, e particularmente no dia-a-dia marcado pela luta das classes, a verdadeira intenção é já ela negativa e por isso é escondida, disfarçada como boa, para facilitar a adopção de uma determinada política.

Reforço das medidas securitárias

Por exemplo, o reforço na Europa das medidas securitárias usando a Internet aparece como uma «necessidade» para combater os crimes de pedofilia e terrorismo. E para o fazer seria necessário impedir a criptografia das comunicações, ou seja, criar um mecanismo onde todas as comunicações estariam registadas, guardadas, legíveis, trabalhadas e vigiadas, para assim poderem ser disponibilizadas às autoridades se e quando estas as requisitassem. Aproveitando ainda o processo para banir o uso de plataformas que «nós» não controlamos. Outra «necessidade» seria o uso massivo de tecnologia de identificação facial ligado à generalização da videovigilância.

Há uma pulsão securitária quase natural nas polícias deste mundo perante as extraordinárias potencialidades geradas pelo aumento exponencial da capacidade de produção, armazenamento, tratamento e comunicação de dados. Em limite e em abstracto, como já foi explorado pela própria Ficção Científica, todos querem conseguir prender o criminoso antes do próprio crime ser cometido. Mas na realidade queremos viver nesse mundo? Num mundo onde todas as nossas acções, palavras, opiniões estão registadas, catalogadas, avaliadas e armazenadas para serem usadas? Usadas pelas multinacionais ou pelo Estado, por um Estado que é, nunca esqueçamos, o instrumento da dominação das classes dominantes, e que na maior parte das situações até é um Estado estrangeiro e imperialista?

«Há uma pulsão securitária quase natural nas polícias deste mundo perante as extraordinárias potencialidades geradas pelo aumento exponencial da capacidade de produção, armazenamento, tratamento e comunicação de dados.»

Usadas de forma legal ou ilegal, mas usadas. Por exemplo, todos sabemos que os EUA fazem o varrimento sistemático de todas as comunicações. Fazem-no de forma ilegal e para satisfazer os objectivos das classes dominantes dos EUA, por exemplo, o objectivo ilegal de recolonizar a Ilha de Cuba. Mas há comunicações que não conseguem rastrear por causa da criptografia das mesmas e por se realizarem em plataformas que não controlam, que não se desnudam perante os seus serviços secretos. E isso é mau?   

Podíamos ter optado por falar do «client-side scanning», da importância do E2EE e da criptografia para o normal funcionamento da Internet. Mas essas são tecnicidades do momento. A discussão de fundo é outra. E permanente. Há que traçar limites e não nos deixarmos assustar para permitir que esses limites sejam violados. Da mesma forma que o correio «normal» não é todo aberto «por precaução», que os patrões não podem gravar a malta a trabalhar, que os telefonemas não são todos gravados nem fiscalizados, que não se podem gravar as pessoas na sua própria casa, etc., também é preciso dizer que na Internet há muita coisa que não deve ser vigiada, registada, armazenada, etiquetada. À polícia é preciso dar os meios de investigação e prova necessários, como já acontece, e ir actualizando esses meios face aos desenvolvimentos tecnológicos, mas sempre dentro dos limites necessários para salvaguardar a liberdade individual e colectiva. 

Caricaturando, quantos criminosos seriam apanhados se todas as confissões em todas as igrejas fossem escutadas e usadas? Quantos atentados pedófilos seriam evitados se todas as crianças fossem gravadas em vídeo 24h por dia? Quantos crimes económicos seriam evitados se todas as reuniões entre administradores de empresas fossem gravadas e verificadas?

Novas formas de censura

A luta contra a desinformação, contra as «fake news», tem servido de desculpa para montar novos instrumentos de censura. Desde logo, por autorizar muitas empresas a censurar conteúdos por «boas razões». Nalguns casos, por exigir a essas empresas que censurem conteúdos por «boas razões». Noutros ainda, por banir empresas do acesso à rede porque não censuram conteúdos ou porque produzem «maus» conteúdos. 

E o que é «um bom conteúdo»? Recentemente, notícias sobre a Palestina foram afastadas por «promoverem o racismo», numa lógica em que tudo o que é pró-Palestina é anti-semita (mesmo sendo os palestinianos semitas) e tudo o que é anti-semita é racismo. Sobre as guerras da NATO, a desinformação é cada vez mais a política oficial. Há 20 anos, eram os sérvios os massacradores e violadores de serviço. Passou-se depois para a demonização de Saddam Hussein e para a falsificação das armas de destruição massiva. Depois foi a propaganda para justificar a invasão do Afeganistão, da Líbia, da Síria. Agora é a guerra da Ucrânia que tem a mais parcial e falsificada cobertura possível. Quem se atreveu e atreve a discordar do discurso belicista foi e é caluniado, caricaturado, silenciado.    

«A luta contra a desinformação, contra as "fake news", tem servido de desculpa para montar novos instrumentos de censura.»

Outro mecanismo inventado foi a etiquetagem de algumas fontes de informação. Antes de serem proibidas e a preparar a sua proibição, várias empresas andaram meses com a etiqueta «Financiada pelo Estado Russo». Mais recentemente, são os canais chineses que arrastam a etiqueta «Financiada pelo Estado Chinês». Etiqueta que não é colocada a empresas ocidentais efectivamente detidas pelos respectivos Estados – como a BBC, a TVE ou a RTP – e muito menos é colocada em multinacionais privadas «Financiadas pelo Grande Capital». Mesmo aquelas empresas de comunicação social – e em Portugal temos os casos do Público e do Observador – que dão prejuízos económicos financiados pelos resultados políticos alcançados pelos seus financiadores, nunca tiveram etiquetas «ao serviço dos interesses de fulano». 

Todos os mecanismos de censura, de filtragem, que sejamos condicionados a aceitar, serão utilizados não de forma neutra, mas pelas classes dominantes. Vivendo essas classes da exploração e opressão das grandes massas, da guerra e da espoliação dos recursos mundiais, esses instrumentos de censura, por mais fofinhos e bem intencionados que pareçam, serão sempre instrumentos agravados de censura e desinformação ao serviço da exploração e opressão. 

«Quem se atreveu e atreve a discordar do discurso belicista foi e é caluniado, caricaturado, silenciado.»

Temos pois de ter a capacidade de dizer não. Não queremos filtragem de conteúdos. Não queremos a Comissão Europeia a articular com as grandes multinacionais o que pode e não pode ser escrito, lido, falado, ouvido, filmado, visto. Não precisamos de etiquetagens unilaterais, que visam apenas estigmatizar o que não é «nosso», não está sob o controlo das «nossas» classes dominantes, e amanhã será «naturalmente» objecto de censura.

Já basta a desigualdade no acesso à informação que é gerada pela propriedade dos meios, seja o grande capital ou os Estados ao serviço do grande capital.

A neutralidade da rede

Uma das questões que continua a ser ameaçada é a «neutralidade da rede». E o que é a neutralidade da rede? A garantia que os conteúdos circulam na rede sem qualquer tipo de ordem, derive essa ordem de factores políticos ou económicos. 

Em teoria, todos os intervenientes políticos são a favor da neutralidade da rede, e fazem juras de amor à mesma e à liberdade de produção e difusão. Na prática – esse eterno critério da verdade – vão-se dando passinhos atrás de passinhos para limitar a neutralidade da rede. 

Hoje já existem fornecedores que dão acesso gratuito a um conjunto de conteúdos (redes sociais, por exemplo) mas condicionam a pagamento o acesso à restante rede. É só um beliscão na neutralidade da rede. Na altura da pandemia, introduziram-se velocidades diferentes para serviços «vitais» e «não vitais». Mais um beliscãozinho... Agora discute-se, em nome de levar a rede a todo o lado, «a necessidade» de taxar os fornecedores de conteúdos, ou seja, de cobrar para que os conteúdos circulem. Claro que primeiro serão só as grandes multinacionais a pagar, mas estabelecido o precedente a regra já está mudada.  

A crescente mercantilização da Internet introduz cada dia pulsões para o fim da neutralidade da rede. Além dos interesses económicos envolvidos, o fim da neutralidade da rede tem ainda evidentes vantagens políticas para o grande capital, pois permite uma Internet ainda mais controlada pelo seu poder económico (já são os donos dos servidores, das redes de cabo, dos instrumentos de difusão, das plataformas, das centrais de produção de conteúdos, etc.).

Concluindo

A forma como vão limitando a liberdade na rede é através da intimidação, do medo. Quem não quer combater a pedofilia, o terrorismo, as notícias falsas? É preciso resistir à intimidação e ao medo. 

E manter ao mesmo tempo a lucidez de que mesmo a mais livre Internet – pela qual lutamos e devemos continuar a lutar – não faz mais que reproduzir as desigualdades do mundo em que está inserida. De um mundo que há que mudar. Que vamos mudar.

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