A devolução de manuais escolares foi uma medida decidida na sequência da aprovação, na Assembleia da República, da gratuitidade destes livros em 2016, e que se veio a estender a todo o ensino obrigatório.
A questão da imposição da devolução destes bens sempre foi controversa e, no caso do primeiro ciclo de estudos, perante a forte e transversal contestação da comunidade escolar, rapidamente o Governo se viu obrigado a inverter essa decisão, tendo em conta as características do ensino e a forma como são construídos os conteúdos desses livros. Todavia, no que respeita aos restantes níveis de ensino, a obrigação de entrega dos manuais persiste.
Em consequência, segundo orientação do Ministério da Educação, as escolas têm cumprir a recolha com vista à reutilização dos manuais escolares, processo que deverá ser concluído até ao final de Julho. Ficam excepcionados desta obrigação os livros das disciplinas em que os alunos tenham exames. Nesses casos, os livros devem ser entregues três dias após a publicação das classificações dos exames.
O Governo impõe uma interpretação abusiva da lei para exigir a reutilização dos livros como condição de acesso a este direito pelos alunos. Em campanha eleitoral, o AbrilAbril foi ver o que dizem os partidos. Em causa está uma das medidas de maior alcance social da legislatura que agora cessa. Têm sucedido, um pouco por todo o País, situações em que as direcções de escolas e agrupamentos estão a impor às famílias que entreguem os livros «sem um risco», como condição de acesso aos novos livros para o ano lectivo que iniciou – chegando-se a impedir as famílias de se candidatarem à plataforma que determina a elegibilidade para o acesso aos manuais escolares gratuitos. A exigência da reutilização decorre de uma aplicação «ultra-rigorosa» da lei, a qual apenas determina que os manuais «podem» ser reutilizados. Ou seja, a lei sugere uma possibilidade mas não determina que tal seja uma obrigação, e muito menos que seja uma condição que possa impedir o acesso ao direito dos alunos aos novos livros. O PS nada refere no seu programa eleitoral sobre esta medida, mas quando a discussão se fez no Parlamento, no início de Julho, insistiu que a condição da reutilização é necessária e fundamental para a sustentabilidade financeira da medida, mesmo perante uma realidade que impõe um sentido diferente. O PAN nada diz sobre a matéria no seu programa eleitoral. Pelo lado de PSD e CDS-PP – que também nada dizem nos seus programas eleitorais sobre esta matéria –, clarificaram a sua verdadeira visão aquando do debate parlamentar, pondo-se à margem dos problemas denunciados, por um lado, e atacando a consagração do direito, por outro. Da parte do CDS-PP, a atribuição de manuais escolares não deveria ser um direito universal, a qual, a ser aplicada, seria «com condição de recursos». O BE, no seu programa eleitoral, propõe a «gratuitidade e progressiva desmaterialização dos manuais escolares» até ao 12.º ano. Todavia, no que respeita à reutilização dos livros, os bloquistas vieram alterar a sua posição. Em Julho, Joana Mortágua, no Parlamento, dizia que a «reutilização, que é desejável do ponto de vista de sustentabilidade económica e do ponto de vista de sustentabilidade ambiental, [não deve ser] depois utilizada como critério excludente para afastar as famílias deste direito». Há dias, no entanto, Catarina Martins, líder do partido, apontou diferentemente que é necessário que «os manuais escolares gratuitos sejam, no 1.º ciclo, manuais escolares novos». No quadro da CDU, cedo o PCP alertou para o facto de ter sido implementada uma «acção de sabotagem» da medida, por força da aplicação «cega» da norma relativa à reutilização dos manuais. No debate de Julho, a deputada comunista Ana Mesquita sublinhava que a reutilização dos manuais só pode ser equacionada considerando as questões concretas da aprendizagem dos diferentes ciclos de ensino e aproveitando os meios digitais, e que «não pode ser uma imposição com um mero objectivo economicista». No seu programa eleitoral, o PCP clarifica que «visando garantir a gratuitidade de todo o ensino público» é necessário alargar a «gratuitidade já consagrada aos manuais escolares às fichas de trabalho, a toda a escolaridade obrigatória». Impor tal condição esbarra com a realidade, pois os manuais, em particular os do 1.º ciclo, estão feitos para uma aprendizagem prática – segundo a qual às crianças é pedido que escrevam, desenhem, pintem e façam colagens nos próprios livros. Tal já foi aliás reconhecido pelo presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas, Filinto Lima, que disse que, «enquanto os manuais do 1.º ciclo continuarem a ser concebidos para se escrever, desenhar e colar autocolantes nos livros, não haverá condições para que possam ser reutilizados». De facto e como já afirmou à TSF Jorge Ascenção, presidente da Confederação de Associações de Pais (CONFAP), a reutilização não pode ser imposta, por razões de natureza pedagógica. «No 1.º ciclo, particularmente nos 1.º e 2.º anos, fará todo o sentido a gratuitidade da propriedade do manual, até como incentivo e prémio de mérito às crianças que iniciam a sua vida académica. Porque é de facto um manual de trabalho, um instrumento, um manual de aprendizagem pedagógica. […] Pedagogicamente está comprovado que é assim que se aprende melhor», explicou. Para mais, o dirigente associativo referiu ainda que esta insistência por parte do Governo do PS é incompreensível sobretudo porque, quanto ao 1.º ciclo, o «volume financeiro é quase insignificante» face aos valores em causa dos manuais dos restantes ciclos de estudo. Acresce ainda que as escolas são pressionadas para a insistência na reutilização dos manuais escolares, por força de um despacho do Governo que prevê que os estabelecimentos com maiores taxas de reutilização recebam maiores verbas do Estado. Perante as dificuldades financeiras com que as escolas se encontram por falta de financiamento adequado, estas acabam por encontrar, com esta imposição, uma fonte de obtenção de verbas. Para além do problema da reutilização, as famílias confrontaram-se, no início do ano lectivo, com diversas dificuldades, como livros a ser entregues em mau estado; famílias a quem não foram entregues todos os vouchers que permitem a aquisição de todos manuais necessários a cada aluno; estudantes a quem tarda, sem justificação, a chegada dos novos livros, iniciando as aulas sem os mesmos. Neste sentido, o Governo do PS parece estar a impor, na prática, limitações a uma das medidas com maior alcance social conquistadas nesta legislatura, deixando antever que, se tiver «mãos livres» (como já afirmou o seu mandatário nacional, Carlos César, ser objectivo do seu partido), tal medida poderá ser posta em causa, e que o mesmo poderá ocorrer com outros avanços que foram aprovados no âmbito da actual correlação de forças parlamentar. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. 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A reutilização dos manuais constitui um entrave ao direito das crianças
O que dizem os partidos sobre a questão
A reutilização dos livros é exigência anti-pedagógica
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Além da verificação do estado dos manuais e posterior introdução na plataforma informática, é preciso ainda juntar os dados referentes aos alunos, num processo que implica o trabalho de professores e restantes funcionários durante vários dias e que o presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), Filinto Lima, já classificou de longo e burocrático.
Se, por um lado, o Governo e os defensores desta medida apontam como argumentos a defesa do ambiente e restrições orçamentais, por outro, especialistas e pedagogos que se posicionam contra a devolução dos livros, advogam a importância para o processo de aprendizagem de se estabelecer uma relação das crianças e jovens com os livros, questão que tem de ser avaliada caso a caso.
A isto soma-se o facto de existir um amplo consenso quanto aos efeitos nefastos que as restrições associadas à pandemia provocaram na educação e nas aprendizagens. Aliás, estes problemas levaram o Executivo a anunciar o «Plano 21/23 Escola +», assumido como prioridade para este sector – programa já objecto de críticas, nomeadamente pela Fenprof, que o considera insuficiente.
Recorde-se que, porém, no passado ano lectivo, o processo de devolução foi interrompido pela Assembleia da República, que decidiu que os manuais não deveriam ser devolvidos devido aos efeitos da pandemia.
De facto, se se coloca como prioridade para a educação a recuperação de aprendizagens, então as questões em cima da mesa não deveriam ser a da devolução dos manuais escolares, mas sim os meios com que cada escola conta, já no próximo ano lectivo, para dar resposta a este flagelo.
Aos dias de hoje, a Escola Pública confronta-se com falta de autonomia que permita o reforço dos apoios pedagógicos e sociais, a contratação dos trabalhadores necessários, a diminuição do número de alunos por turma, a par de uma necessidade urgente de obras em muitos estabelecimentos.
Desde a aprovação da gratuitidade dos manuais escolares, o Executivo criou diversas dificuldades e entraves à sua concretização, num caminho de somar argumentos para a regressão desta medida de enorme alcance social.
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