No dia em que o frio chegou não tínhamos aquecedor. Os dias que se seguiram foram passados dentro de cobertores e mantas. Para estética do inverno não estava mau. Fechados em casa, ficámos reféns do isolamento térmico possível, cortesia de décadas de um negócio da construção em Portugal. Por vezes, parecia que lá fora a temperatura era mais agradável. Porém, o confinamento obrigou-nos ao sedentarismo e os pés e as pernas gelaram, a humidade instalou-se sobre os ombros e as mãos só encontraram conforto dentro das mantas. O frio paralisou-nos dentro da nossa própria casa.
A generosidade de um amigo trouxe-nos um pequeno aquecedor a óleo que instalámos na sala. Não foi preciso muito tempo para o quadro da luz avisar que há que estabelecer prioridades: ou aqueces a casa ou lavas a roupa, as duas ao mesmo tempo é que não vai dar. Não é propriamente liberdade de escolha. Há uns anos, com uma vida um pouco mais desafogada, pouco antes da entrada da troika, cheguei a pagar perto de 200 euros de eletricidade no mês de Janeiro. Agora, cá por casa, um confinamento geral no inverno ameaçava os nossos rendimentos e ignorar os consumos energéticos por causa do bem-estar não era uma opção.
«A generosidade de um amigo trouxe-nos um pequeno aquecedor a óleo que instalámos na sala. Não foi preciso muito tempo para o quadro da luz avisar que há que estabelecer prioridades: ou aqueces a casa ou lavas a roupa, as duas ao mesmo tempo é que não vai dar. Não é propriamente liberdade de escolha»
Os relatos sobre o impacte dos consumos energéticos, e da falta de isolamento térmico, na vida das famílias portugueses são hoje mais visíveis – fruto das partilhas nas redes sociais. De certo modo, essa partilha faz-nos perceber que não estamos sozinhos neste problema e que um dos bens mais essenciais na nossa vida tem um custo que não podemos suportar. Mas a história da energia em Portugal conheceu, em tempos, um momento de progresso, que veio dar resposta à profunda pobreza que grassava no país antes do 25 de Abril. Com a revolução veio o reconhecimento da energia como um bem essencial que necessitava de estar ao dispor de todos, de ser democratizado. Da nacionalização do setor nasceu a EDP.
No site da EDP encontramos essa história através de um relato com o qual nos podemos relacionar. É o relato de um país desigual e corporativo, onde a eletricidade não cobria todo o território, a esperança média de vida era baixa e a mobilidade reduzida. A história da EDP não começou por ser a de uma empresa que nasceu heroicamente para se autonomizar do Estado, mas sim a de uma estrutura que veio responder a uma necessidade, dar uma garantia de bem-estar e desenvolvimento às populações e ser um dínamo do progresso e da democracia. Mas, no site da empresa, esta história é-nos apresentada, curiosamente, para servir uma outra narrativa – a da privatização.
Como se se tratasse de uma evolução natural, diz-nos o site da EDP, através do relato de um trabalhador, que um dos grandes desafios do início da empresa pública foi a cobrança. Talvez para a história do departamento de contabilidade da empresa esse dado seja muito relevante. Para as populações que nem eletricidade tinham e para quem a nacionalização do setor da energia foi uma transformação radical das suas vidas, isso talvez não tenha assim tanta importância. A contabilidade, para a democracia, não é um princípio. O valor nominal das ações, que aparece logo de seguida como uma espécie de justificação para a transferência natural da empresa do setor público para o setor privado, também deve interessar pouco a quem neste momento se questiona sobre a razão de o Estado português não conseguir, no meio da pandemia, controlar o setor da energia e garantir, dessa forma, que este bem essencial não constitua um problema central do nosso quotidiano.
«a história da energia em Portugal conheceu, em tempos, um momento de progresso, que veio dar resposta à profunda pobreza que grassava no país antes do 25 de Abril. Com a revolução veio o reconhecimento da energia como um bem essencial que necessitava de estar ao dispor de todos, de ser democratizado. Da nacionalização do setor nasceu a EDP»
Acordo com o despertador do telemóvel. Por baixo do edredão, o corpo está quente, após uma noite a tentar proteger-se contra o frio. Poucos segundos após desligar o som do alarme, a mão regressa gelada para o interior da cama. Sem a pressão do tempo que o trabalho presencial implica, desde os transportes aos limites da picagem do ponto, a luta para começar o dia de teletrabalho obriga-nos a uma disciplina maior: a não ceder à tentação de permanecer na roupa de dormir, a tratar da casa antes de iniciar a jornada de trabalho e a manter um posto de trabalho onde nos sentamos e nos tentamos abstrair do espaço que construímos para a nossa vida íntima e que não reúne condições para trabalhar. Nestes dias de frio paralisante, a motivação para sair da cama e regressar à sala que ainda precisa de ser aquecida, não é muita. Essa também é a motivação que usamos para trabalhar, para estarmos no pleno das nossas capacidades para cumprir o nosso dever profissional, agora numa rotina sem movimento. Ainda na cama, penso nas ações da EDP. Quando terá nascido a ideia de que a gestão do setor público é pior do que a do privado?
A privatização da EDP, como a de outras estruturas, começou nos governos de Aníbal Cavaco Silva. Ao que parece, quinze anos após a revolução onde conquistámos a democracia e a eletricidade para todo o país, as prioridades do Estado mudaram e a democratização da energia, o seu acesso, deixou de ser um problema. Talvez do ponto de vista do trabalhador que nos faz o relato acima mencionado – e que foi progredindo dentro da empresa, com acesso a nova tecnologia, a um salário melhor e à garantia de direitos no trabalho, que no tempo em que o setor era gerido por treze empresas privadas não existia – a ideia do elevador social prometido tenha resultado e as suas ambições se tenham compatibilizado com o interesse em regressar ao desmantelamento deste bem público. Mas deixa-me curioso o facto de o seu relato trazer um elogio à organização pública da empresa e ao sucesso inicial da sua gestão. O que terá mudado?
Apesar de os argumentistas do site da EDP não clarificarem muito bem a narrativa (passámos do sucesso das cobranças para a oferta pública de venda numa simples mudança de linha), o que mudou foi a ideologia. Porque nada explica que um bem essencial cujo controlo tem implicações na qualidade de vida das populações e sem sinais de gestão ruinosa passe para a esfera privada. Tal como as cobranças, os lucros possíveis para os futuros acionistas passaram a ter mais relevância do que a democratização do acesso à eletricidade. E não nos esqueçamos da criação de emprego e do desenvolvimento tecnológico que a gestão pública trouxe à empresa.
«A privatização da EDP, como a de outras estruturas, começou nos governos de Aníbal Cavaco Silva. Ao que parece, quinze anos após a revolução onde conquistámos a democracia e a eletricidade para todo o país, as prioridades do Estado mudaram e a democratização da energia, o seu acesso, deixou de ser um problema»
No início do relato de Luís Santos Matos – o trabalhador que passou pelas várias fases da EDP – é o próprio que nos conta que no início da empresa «criámos agências de atendimento ao público, cobrança e formámos eletricistas». Eram os efeitos de um país na construção da democracia, da sua soberania e da sua autossuficiência. Talvez o elevador social do cavaquismo não lhe tenha permitido ver o que aconteceu nas fases finais do processo de privatização. A título de exemplo, em 2007 a empresa anunciava o despedimento de 3000 trabalhadores.
E o que nos diz a empresa sobre esse período?
«2007 é um ano “verde” para a EDP, com a aquisição da norte-americana Horizon Energy que coloca a EDP no topo das energias renováveis. Mas 2007 também é ano de nova vaga de privatização. As obrigações permutáveis emitidas a 15 de novembro de 2007, pelo prazo de 7 anos, representativas de 4,14% do capital social da EDP, agora Energias de Portugal, S.A. viriam a tornar o processo de saída do Estado do capital um pouco mais longo. Em 2013, com a transformação das obrigações em 4,14% do capital da EDP, a EDP tornou-se totalmente privada.»
Menos 3000 salários por ano valorizam imenso uma empresa no mercado. São as vantagens da gestão privada, os seus instrumentos para «fazer acontecer».
O processo de privatização da EDP atravessou vários governos, de Cavaco Silva a Pedro Passos Coelho, passando por António Guterres, Durão Barroso e José Sócrates – o arco da governação. Mas é sobretudo a um homem que o sucesso da expansão da empresa se deve – António Mexia. O gestor que surpreendeu o mundo com a sua habilidade visionária havia sido ministro do governo de Durão Barroso, vindo de outra empresa do setor energético, a Galp, tendo ainda passado pelo Banco Espírito Santo. Com a derrota de Santana Lopes nas eleições de 2005, Mexia foi chefiar a EDP, para finalizar a privatização, acabando por ser transferido para a nova proprietária da empresa, a China Three Gorges, juntamente com Eduardo Catroga, que através do governo de Pedro Passos Coelho havia negociado a fase derradeira do processo de privatização. Estava tudo em família.
Acontece que no meio de tanta meritocracia, enquanto os nossos invernos continuavam a não ser acompanhados pela pobreza energética, algo podre se passava no reino da antiga elétrica portuguesa. Já em Junho de 2020, ficámos a saber que o Ministério Público iria acusar António Mexia de crimes de corrupção e sugeria que as suas funções cessassem imediatamente. E assim aconteceu. O sucesso da gestão privada, afinal, tinha truque.
«Com a casa fria e a chuva lá fora, a roupa demora a secar e a humidade vai tomando conta das malhas e dos tecidos sintéticos dos atoalhados. Encostámos o aquecedor ao estendal, que agora ocupa 1/3 da sala. O espaço de duas pessoas em teletrabalho fica ainda mais reduzido. Uma reunião obriga o outro a ir trabalhar para um quarto sem aquecedor. A luz da cabeceira não é suficiente e acende-se a do candeeiro do teto. Um dos gatos tenta aquecer-se nos pés e então fico a admirá-lo e à sorte que tem em adormecer sem se preocupar com as contas no final do mês ou com a economia de mercado»
O fantasma das nacionalizações, que tantas noites sem dormir deixa os escudeiros da economia de mercado, ganhou hoje uma força que torna reféns de uma história mal contada muitos daqueles que como eu não estão confortáveis em casa, muitos daqueles que sofreram com o desmantelamento de empresas de sectores estratégicos do Estado e muitos daqueles para quem o futuro é um incerteza e a quem as despesas com a energia, mais cedo ou mais tarde, vão alterar a sua liberdade de escolha, entre o mínimo conforto e a conta da eletricidade. Mas às vezes parece que a dogmática da eficiência da gestão privada é mais forte do que aquilo que a realidade do país nos mostra.
Com a casa fria e a chuva lá fora, a roupa demora a secar e a humidade vai tomando conta das malhas e dos tecidos sintéticos dos atoalhados. Encostámos o aquecedor ao estendal, que agora ocupa 1/3 da sala. O espaço de duas pessoas em teletrabalho fica ainda mais reduzido. Uma reunião obriga o outro a ir trabalhar para um quarto sem aquecedor. A luz da cabeceira não é suficiente e acende-se a do candeeiro do teto. Um dos gatos tenta aquecer-se nos pés e então fico a admirá-lo e à sorte que tem em adormecer sem se preocupar com as contas no final do mês ou com a economia de mercado. Regresso à página da EDP e ao seu cabeçalho, onde leio outra vez: «A EDP acompanha a história de um país, democratizando a energia e levando a todos a força fundamental para alimentar os sonhos de famílias e empresas.» Boa sorte.
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