Aos gritos de «é comunista», «morte ao bandido», «vamos dar cabo dele», um grupo de homens armados de varapaus, chefiado por um contratador de gado, agredia pessoas de esquerda nas ruas de Ponte de Lima.
O grupo espancou violentamente um jovem de 22 anos, conhecido por ser simpatizante do MES, «deixando-o no chão a escorrer sangue. Transportado para o hospital, foi o primeiro da longa série de feridos que viriam a receber tratamento hospitalar durante o dia», relata o Diário de Lisboa.
O bando chegou a invadir o Quartel dos Bombeiros em perseguição a um trabalhador da construção civil. No decorrer desse ataque foi ferido um bombeiro que falou ao vespertino lisboeta: «Quiseram assaltar-nos por abrirmos a porta a uma pessoa que fugia à ira da multidão. A gente não olha a partidos, olhamos é a pessoas feridas. Vinham atrás dele para o matar por isso é que lhe abrimos a porta», garantiu.
As agressões foram no início de um dia que acabou com o incêndio da sede do PCP e a morte de um dos comunistas que a defendia, o operário José da Costa Lima. Segundo o Diário de Lisboa, foram feridas mais de 100 pessoas.
Dois dias antes, a 16 de Agosto de 1975, o Partido Comunista Português organiza um comício em Alcobaça contra a vaga de destruição de sedes e ataques a militantes de esquerda que está a ser promovida por forças contra-revolucionárias, sobretudo, no norte de Portugal.
«Apanhar Cunhal»
Décadas depois, num texto de um conhecido advogado da terra ligado ao PSD, Fleming de Oliveira, colocado no seu blogue, conta-se a história daquela noite, em que a extrema-direita ataca o comício dos comunistas com o objectivo de, como alguns confessaram, liquidar Álvaro Cunhal. O advogado intitula o seu texto «Quando Cunhal podia ter sido apanhado à mão, mas conseguiu fugir».
Para o militante comunista Rogério Raimundo, segundo contou ao advogado, «o PCP fez vários comícios contra a reacção, pela liberdade, contra os assaltos às sedes do PCP e MDP, nas terras onde houve essas ações. Quis mostrar que não havia medo e que utilizava a força do direito de reunião. [É] Curioso que os contra-revolucionários só atacaram o comício do PCP em Alcobaça. O camarada Américo Areias considera que naquele dia esteve quase a começar uma guerra civil em Alcobaça. Perante o tiroteio e o apedrejar da cobertura do pavilhão gimnodesportivo houve a mobilização de todas as forças do PCP».
O ambiente no Pavilhão Gimnodesportivo de Alcobaça, com muitos militantes provenientes da Marinha Grande, Santarém, Alhandra, Seixal e Almada, era inicialmente de grande expectativa, de acordo com Mário Vazão, que lá se deslocou e entrou para tomar algumas notas para o jornal O Alcoa. Como não era de rejeitar a hipótese de incidentes, estavam também presentes repórteres nacionais e estrangeiros de França, Inglaterra e Canadá.
Até às 22h nada fazia prever, a uma pessoa mais desatenta ou desconhecedora do ambiente, o que se iria passar. Aos poucos, pequenos grupos, depois umas centenas de pessoas, de vários pontos do concelho e mesmo de fora, começaram a juntar-se no exterior e a apedrejar o pavilhão e a disparar tiros de caçadeira e de outras armas de pequeno calibre, bem como a cantar e proferir palavras de ordem provocatórias aos que chegavam e se preparavam para entrar.
De dentro houve resposta, com armas de fogo a disparar contra os atacantes, causando alguns feridos que foram transportados para o hospital, tendo um deles, Joaquim Elias Vicente, ficado internado.
«Era, aliás evidente, que a actuação dos atacantes obedecia a um esquema bem definido, já que eles actuavam divididos em grupos de cerca de 30 indivíduos que se auxiliavam mutuamente e que dispunham de reservas em locais pré-estabelecidos», analisava dois dias depois o Diário de Lisboa.
«Por volta das 23h10, as janelas do edifício começaram a ser apedrejadas pelos assaltantes que, entretanto, tinham ocupado novas posições e cercado o edifício, aglomerando-se, sobretudo, junto às entradas. Pouco depois, enquanto os participantes entoavam canções revolucionárias, ouviram-se tiros na rua. Como é natural, os acontecimentos provocaram uma certa agitação no interior do pavilhão sem, todavia, que se tivesse verificado uma situação de pânico, dada a pronta e eficiente reacção dos serviços de ordem do PCP», relata o jornal.
Alguns elementos do PCP que, na entrada, montavam o serviço de segurança, em resposta às pedras, tiros de caçadeira e insultos que lhes eram dirigidos, começaram a atirar objectos contra os manifestantes e a disparar para o ar armas de fogo. Entre sitiadores e assistentes dos incidentes multiplicam-se os feridos: «Um objecto contundente atingiu Manuel C., Francisco S sofreu um ferimento na vista e tal como Fernando L foi evacuado para Lisboa, enquanto Segismundo M, atingido com chumbo de uma caçadeira, teve de ser transportado de urgência para o Hospital Universitário de Coimbra (HUC)», escreveu Fleming de Oliveira.
Foi nessa altura que tinha acabado de chegar, vinda de Lisboa num carro com amigos, Lily Nobrega: «Quando chegámos ao pavilhão ele encontrava-se rodeado de centenas de pessoas, muitos de samarra, e um ambiente completamente hostil à volta do pavilhão. Quando estávamos a entrar, ouviu-se muito barulho, pareciam disparos, e começaram a cair pedras, o meu namorado ficou ferido e a deitar sangue da cabeça. Dentro do pavilhão, as pessoas organizavam-se, acudiam os feridos, dividiam tarefas, e preparavam a defesa. O pavilhão estava completamente cheio, colocaram-se a mulheres num lado e os homens do outro, para prepararem uma sortida», recordou ao AbrilAbril.
«Por volta das 23h30, a situação estabilizara: os assaltantes construíam barricadas para impedir a saída dos militantes que se encontravam no pavilhão e os serviços de ordem do PCP preparavam-se para a defesa. Foi durante este brevíssimo período de estabilização que Álvaro Cunhal se dirigiu aos presentes pedindo-lhes confiança no futuro: “tenham esperança e confiança, camaradas, porque as dificuldades temporárias serão supridas e os criminosos fascistas receberão os castigos que merecem, pois o momento de crise da Revolução há-de passar”», relatou o vespertino de Lisboa.
«A "pausa" foi abruptamente cortada por novas descargas de tiros que causaram ainda mais feridos entre os sitiados - que já então, deveriam ter cerca de nove feridos - obrigando-os a ripostar», acrescentou o diário.
Um trostskista assustado
José Vasco tinha 20 anos, esteve no pavilhão, não era do PCP, identificava-se como trotskista, recorda a Fleming o que viveu. «O comício começou com um discurso de António Dionísio, apresentado como delegado sindical na Crisal. Foi precisamente durante esse discurso que o comício foi interrompido por um monumental tiroteio vindo do exterior. Quase mecanicamente foi montado no interior um bem treinado mecanismo de defesa, a cuja organização assisti tão impávido e sereno, como aterrorizado pela incerteza do que me esperaria lá fora, ou até se dali conseguiria sair. E a verdade é que esses temores se aprofundaram, quando confirmei que alguns militantes do PCP estavam armados, o que me levou a prever um agravamento da situação. A verdade é que o tiroteio foi aumentando e que eu então me desloquei para o sector do pavilhão onde ainda se situava Álvaro Cunhal».
No interior do pavilhão, os comunistas não esmoreciam. Os cerca de 2 mil comunistas presentes entoavam «A Internacional» e o «Avante Camarada».
Em dado momento, José Vasco viveu o maior susto da sua ainda curta vida «quando um estrondoso ruído anunciou a queda de uma das janelas situadas ao alto do pavilhão, poucos metros atrás do local onde se encontrava o líder comunista. E eu lá continuava, observando e vivendo aqueles marcantes acontecimentos e verificando que, apesar do cerco que lá fora se desenhava e anunciava, a defesa movida pelos militantes do PCP fora entretanto reforçada com outros elementos armados, oriundos da Marinha Grande».
O Rádio Clube Português acompanhou, quase em directo, o ataque, alertou o país para que, no comício do PCP, realizado em Alcobaça, com a presença de destacados elementos do partido, entre os quais Álvaro Cunhal e Joaquim Gomes, «bandos de fascistas estão a causar graves distúrbios de que podem resultar pesadas consequências, assinalando-se já vários feridos».
A emissora apelou à solidariedade e acção dos trabalhadores e democratas para com essa situação que, como «muitas outras que se vêm registando, parece visarem a destruição das liberdades», bem como alertou para o perigo em que se encontraram os comunistas em Alcobaça.
Centenas de automóveis transportando de comunistas de várias partes do país, munidos de caçadeiras, matracas e barras de ferro, deslocaram-se à vila de Alcobaça, em socorro dos camaradas.
Mário Reis, livreiro, editor e actualmente proprietário de um restaurante nas Avenidas Novas, passou o período revolucionário com tarefas na segurança central do PCP. Lembra-se que nesse dia à noite foi convocado para seguir de Lisboa, junto à sede da Rua António Serpa, com uma caravana de cerca de duas centenas de viaturas para libertar os comunistas do cerco do comício em Alcobaça. «Foi o Mário de Carvalho [escritor, na altura funcionário do PCP] que me telefonou e foi responsável pela convocação da coluna de socorro», evoca Mário R ao AbrilAbril.
Ao começo da noite desse sábado de Agosto e de férias, Rosalina Martins, tinha regressado com o marido, Ricardo, de um passeio de automóvel, na companhia da amiga Teresa, conta Fleming.
Quando se preparava para chegar a casa a pé, situada perto do futuro Tribunal da Comarca, na esquina da rua Mariano Pina, viu muita gente, algumas pessoas que reconheceu, que se encontravam próximas do Pavilhão Gimnodesportivo. Para grande surpresa, ouviu, vindo dessa zona, alguns tiros que lhe pareceram de caçadeira. Como lhe constava, assim como a muita gente de Alcobaça, que iria haver barulho no comício do PCP, com a presença de Álvaro Cunhal, assustou-se e enervada, começou a dizer para o marido «ai, que não vejo mais os meus ricos filhos!» Este, enervado, disse-lhe para se calar, senão «ainda levas um par de chapadas». Rosalina calou-se, acalmou-se e depois supôs que os tiros vindos do lado do pavilhão e do seu interior, se destinavam a dispersar as pessoas que o estavam a cercar o pavilhão.
A partir das 22h, encontrando-se em casa, notou que se continuava ainda a juntar mais gente no exterior ao pavilhão, com ares ameaçadores e vozes exaltadas.
Os acessos ao Pavilhão, a partir da Escola Primária, encontravam-se cortados com barricadas.
Na opinião de Rosalina, este corte de estrada, era para impedir a saída dos comunistas e que Álvaro Cunhal pudesse sair. A certa altura, ouviu-se um conjunto de rápidos disparos de arma de fogo que, parecia ser de metralhadora. Rosalina viu muitas pessoas a atirarem-se para o chão. Encontrava-se a ver, através dos estores da casa, «a roer as unhas» e com as luzes apagadas. Acontece que, depois dos disparos, uma pessoa ficou estendido no chão, sem se levantar. Disse então para o marido que deveria haver ali um ferido grave, senão mesmo um morto.
Ao fim de alguns minutos, umas pessoas bateram à porta de entrada da casa. Tendo ido abri-la, constatou que se tratavam de três estrangeiros a falar inglês, e a pedir ajuda para um ferido que vinha em mau estado. O marido, que tinha alguns conhecimentos de inglês, abriu-lhes a porta e deixou-os entrar. Eram repórteres canadianos, e o ferido, assustado, tinha a cara coberta de sangue e alguns estilhaços dos restos de uma máquina fotográfica, que se partira. O repórter fotográfico, com o susto, tinha-se atirado para o chão, e na queda partiu a máquina, ferindo-se na cara. Os canadianos entraram em casa, mas não deixaram acender a luz, com o argumento que não queriam chamar a atenção, pelo que o primeiro curativo foi efectuado por Rosalina na casa-de-banho, à luz de duas velas.
«Vamos esfolá-los vivos»
Manuel Almeida, nos seus 23 anos, que havia regressado não há muito da Guiné, de onde trouxe um louvor individual numa operação de fuzileiros realizada na zona do Rio Cacine (fronteira com a Guiné-Conacri), tinha gizado, segundo Fleming, um plano de ataque. Queria ser «o homem que apanhou Álvaro Cunhal à mão».
ELP, MDLP e CDS organizaram-se, mas também estavam presentes muitos elementos do PPD e do PS a aplaudir. «Rio Maior trocou o leão pela moca e uma direita trauliteira, armada de varapaus e espingardas (e fósforos), desceu do Minho em 20 autocarros, instigada pelos senhores abades reacionários e veio por esse país abaixo, rumo a Alcobaça, gritando Morte aos Comunistas».
«Mas também por cá», confessou, ao advogado de Alcobaça, Timóteo Matos, «se organizou o festim, Vamos esfolá-los vivos!»
E continua, a contar, que, chegado o dia, o pavilhão ficou cheio. Iniciou-se o comício do PCP. Os sitiantes deram início ao ataque para a conquista do pavilhão. Foi dado o sinal com uma provocação e o arremesso de pedras para a porta. Mas as pedras não eram as únicas armas dos assaltantes, que dispunham de caçadeiras e pistolas «em não menos quantidade das que tinham os defensores, e que passaram imediatamente ao ataque. Foi uma luta desnecessária e estúpida que poderia ter tido consequências terríveis», reconhece Timóteo: «Os comunistas, melhor organizados, apoiados e comandados por camaradas vindos da Marinha Grande, foram avançando a pouco e pouco, muro a muro, poste a poste, sempre ao som de tiros de um e do outro lado».
Timóteo acrescenta que, no pavilhão, «fechado logo após a abertura das hostilidades, reinava uma boa organização e cantava-se para afastar nervos e receios. Entravam, trazidos pela segurança, de quando em vez, alguns prisioneiros ou feridos que ali eram assistidos por médico e enfermeiros. Quando chegaram os militares, forças do RI7 de Leiria, e RI5 de Caldas da Rainha, já os sitiados tinham consumado o seu contra-ataque e lutava-se em baixo, junto ao prédio onde hoje está instalado o Snack Bar Gafa».
«Os militares chegados safaram os atacantes de uma punição ainda maior, até porque às notícias da rádio de que o comício em Alcobaça, com Álvaro Cunhal, estava a ser atacado por elementos de direita, responderam os comunistas de Almada e Barreiro e a partir dessa hora começaram a chegar carros e carros, mais de 300, contei eu, carregados de gente», recorda Timóteo.
«Por volta da meia-noite, chegaram as primeiras forças militares vindas de Leiria, coincidindo a sua chegada com os primeiros êxitos dos sitiados. Estes, com auxílio de outras organizações progressistas e de militantes vindos de Vila Franca de Xira, de Torres Vedras, Alpiarça e de Almeirim conseguiram, cerca da 1h30, romper as barreiras dos sitiantes e permitir que os militantes que se encontravam no pavilhão começassem a sair», relatou o Diário de Lisboa.
«A guerra civil poderia ter começado ali. Felizmente tudo ficou resolvido e às 3h00 da madrugada a calma reinava em Alcobaça. Conheço e sou amigo de alguns alcobacenses que estiveram neste ataque. Hoje não estão orgulhosos do seu feito, aliás não conseguido», concluiu Timóteo.
Apenas no domingo seguinte aos acontecimentos, o jovem trotskista José Vasco confirmou a gravidade do que tinha vivido, lendo no Jornal de Notícias, isto é, que centenas de pessoas haviam montado cerco ao comício do PCP e erguido barricadas e fogueiras. «Soube também por esse jornal que, durante a confrontação a tiro e à pedrada, se haviam registado 20 feridos, quatro dos quais haviam recebido tratamento hospitalar».
Os acontecimentos tiveram repercussão, no país e no estrangeiro. A revista Paris Match fez uma reportagem sobre o sucedido.
Entre os mais de 20 manifestantes feridos na noite de 16 de Agosto, sete ficaram internados nos hospitais de Lisboa, Coimbra e até de Alcobaça, entre eles, o jornalista do Daily Telegraph, o inglês Michael Field, 54 anos, que já estava há vários dias em trabalho de reportagem em Portugal.
Segundo um comunicado, emitido logo na manhã de 17 de Agosto pela Secção de Informação e Propaganda do PCP, escreve Fleming, «por declarações feitas por alguns provocadores, agarrados pelo serviço de ordem do comício, averiguou-se que alguns tinham vindo bem de longe e recebido dinheiro para o efeito».
Por seu turno, a Comissão Central do MDP/CDE, logo às 6h da madrugada da noite de 16 para 17 de Agosto de 1975, deu a público um comunicado:
«O comício realizado pelo PCP, em Alcobaça, com a presença de Álvaro Cunhal, seu secretário-geral e ministro sem pasta dos quatro primeiros governos provisórios, marca uma nova escalada de violência reaccionária. As liberdades encontram-se ameaçadas. Mas quem as ameaça são os mesmos que, durante quase 50 anos, as retiraram do povo. Em Alcobaça, os comunistas tiveram de defender o direito de reunião. Ao defenderem-no para si, neste caso concreto, estavam-no defendendo para todos os democratas, estavam defendendo as liberdades conquistadas após o 25 de Abril. Tiveram de o fazer, respondendo de armas na mão à violência reaccionária, dando uma primeira imagem do que poderá vir a ser este país se continuarem as hesitações que paralisam as forças militares e militarizadas, se continuar por concretizar uma firme política repressiva sobre a reacção. Esta noite, em Alcobaça, correu sangue; não apenas dos provocadores contra-revolucionários mas também de militantes progressistas»
Como escreveu, anos mais tarde, Álvaro Cunhal: «O anticomunismo dirige-se primeiro e preferencialmente contra o PCP, mas visa a liquidação das liberdades não apenas dos comunistas, mas de todo o povo português. O anticomunismo é a bandeira da contra-revolução contra todas as forças da revolução».
Hoje isso parece-nos infelizmente muito actual e familiar.
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