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Opinião

O futuro ficou cativado

Depois de criada tanta riqueza, os ricos estão muito mais ricos, mas quem trabalha tem muito menos condições de vida. Pela primeira vez na história, as novas gerações estão a viver muito pior que os seus pais.

As propostas do PS estão longe de responder às necessidades do país.
Primeiro-ministro faz declarações sobre o Orçamento do Estado.Créditos

Durante o reinado de Catarina II da Rússia foi nomeado governador da Crimeia o seu favorito Grigory Potemkine. Passados uns tempos, a czarina organizou uma viagem de dignitários estrangeiros, «os mercados» da altura, à Crimeia para mostrar os enormes progressos que o domínio da Rússia tinha concedido a estes locais inóspitos do império. O objectivo era garantir a sua aquiescência em relação ao domínio russo e até agilizar o investimento e comércio do estrangeiro para o império. A viagem foi directamente organizada pelo favorito da monarca, os dignitários estrangeiros desceriam o rio e veriam, a distância segura, as novas aldeias construídas pelo czarismo e a vida feliz das populações. Para isso, Potemkine construiu aldeias de cenário que tinham o aspecto das mais ricas povoações da Alemanha, escolheu os aldeões mais gordos e luzidios e vestiu-os como camponeses da Baviera, com um ar contente como se tivessem saído de um festival de cerveja. A visita foi um êxito, o favorito manteve as largas prerrogativas com a monarca e os dignitários estrangeiros emitiram pareceres, o que agora seriam notações, positivas sobre o desenvolvimento da Rússia.

A verdade é que a Rússia continuava tão miserável como antes mas, na opinião de quem mandava, estava em amplo progresso. E isso bastava para o legitimar externamente.

Com as devidas distâncias, as negociações do governo do PS em relação ao Orçamento do Estado têm-se confundido muito com cenários que mascaram uma realidade inexistente. António Costa e os seus pares podem até aceitar medidas progressistas, para determinados sectores, em sede de negociação orçamental, o problema é que a maioria fica sem ser executada, afogadas em cativações e outros expedientes, para não cumprir o prometido.

Quanto mais pífia é a medida, mais grandiloquente aparece o título dela. É o caso da «Agenda para o Trabalho Digno», que não reverte as modificações feitas pela troika e o governo de Passos Coelho à legislação laboral; não torna menos fáceis os despedimentos em Portugal; não defende o emprego; não torna menos miseráveis os salários em Portugal - em que cada vez mais o salário médio se confunde com o salário mínimo.

Como dizem as estatísticas, mais de 1,6 milhões de portugueses vive abaixo do limiar da pobreza, ou seja, com menos de 540 euros por mês. Ter um emprego não é garantia de não se ser pobre e Portugal está, aliás, entre os países da Europa com maior risco de pobreza entre trabalhadores.

Segundo uma análise feita pela Pordata, com base em dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2020, 9,5% da população empregada em Portugal era considerada pobre, ou seja, vivia com rendimentos inferiores ao limiar da pobreza.

A dita agenda para o «Trabalho Digno» preocupa-se, justamente, em criminalizar empresários que não declaram trabalhadores, mas pretende também perseguir os trabalhadores nesta situação, como se fosse culpa deles que o mercado de trabalho se tenha transformado num mercado de escravos.

Desde o final dos anos 70, nos países desenvolvidos, entre os quais a União Europeia, impuseram-se políticas económicas neoliberais que fizeram descer, em muito, o peso dos rendimentos do trabalho na fatia daquilo que é produzido.

As sociedades estão cada vez mais desiguais, e os vendedores de cenários de fantasia vendem-nos a teoria do chuveiro que nunca se concretiza. Segundo eles – no outro dia o comentador Marques Mendes repetia essa análise pela milésima vez –, se for criada muita riqueza para os muito ricos, alguma coisa há-de chegar aos mais pobres, nem que seja em forma de esmola.

A verdade é que depois de criada tanta riqueza, os ricos estão muito mais ricos, mas quem trabalha tem muito menos condições de vida. Pela primeira vez na história, as novas gerações estão a viver muito pior que os seus pais.

É isso que não pode acontecer. É por isso que são precisos orçamentos a sério que mudem questões estruturais e que dêem mais poder a quem trabalha.

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