Volta e meia, o discurso entranhado ganha voz, anima conversas de café, surgem exemplos de alguém que se conhece ou se ouviu falar nas notícias. Forjam-se teorias de que o País não vai para a frente por causa dos que vivem nas franjas, excluídos de um sistema onde nem todos têm lugar, porque essa é a matriz do sistema capitalista.
São «os do rendimento mínimo», os que «vivem à custa do Estado», os que «não querem trabalhar», os que «trabalham uns tempos para voltarem aos subsídios». No congresso do PSD do último fim-de-semana, Rui Rio, que faz propaganda afirmando-se ao centro, voltou a captar a atenção da extrema-direita com a retórica dos pobres que se alimentam do sistema. Para o presidente dos social-democratas, «não é racional manter apoios sociais a quem os usa para se furtar ao trabalho e dessa forma condicionar a própria expansão empresarial que cada vez mais se lamenta da falta de mão-de-obra disponível para trabalhar».
O mesmo lamento tinha sido reproduzido dias antes por Ferraz da Costa, numa entrevista. No seu tom mordaz e bafiento, o presidente do Fórum para a Competitividade disse haver «muitas pessoas que não querem trabalhar e o sistema permite». O que o «sistema» permite é o trabalho barato e sem direitos, realidade em que Ferraz da Costa lamenta não se ter ido mais longe – «a legislação laboral deveria ter sido mais liberalizada do que foi».
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que a transferência de rendimento dos trabalhadores portugueses para o capital é a mais acentuada da União Europeia. São mais de 10% em 13 anos. A avaliação da OIT, divulgada esta quinta-feira, é mais um incentivo à luta dos trabalhadores. No plano nacional, a análise revela que a percentagem do rendimento do trabalho no produto interno bruto (PIB) passou de 65,8% em 2004 para 54,8% em 2017. São 11,3 pontos percentuais perdidos em 13 anos. De salientar que a OIT utiliza uma metodologia própria para aferir a distribuição funcional do rendimento. A nível global, o rendimento transferido dos trabalhadores para o capital desceu de 53,7% para 51,4% no período temporal descrito, enquanto na UE se verifica uma redução de 1,8 pontos percentuais – tendo passado de 59,4% em 2004 para 57,6% em 2017. Portugal consegue a proeza de ficar abaixo da média dos 28 que integram a União Europeia (UE), mas a conclusão – nada surpreendente – deste estudo, que envolveu a realidade de 189 países, é que a desigualdade salarial continua a ser a tónica do mundo do trabalho. A par de saber quanto usurpa o capital, a OIT analisou o desequilíbrio na distribuição do rendimento entre trabalhadores e, embora os números não sejam animadores, há traços que permitem concluir sobre os benefícios da reposição de rendimentos e do aumento do rendimento mínimo nacional, ao longo desta legislatura. De acordo com o estudo, os 10% que ganham menos no nosso país ficaram apenas com 2,6% do rendimento total do trabalho em 2017, embora se registe uma subida comparativamente a 2004 (2,3%), ficando acima também da média da UE, que era de 1,7% em 2017. Os 20% que ganham menos ficaram com 7,1% do rendimento total do trabalho em 2017, uma subida relativamente a 2004 (6,4%) e à média da UE, que era de 5,1% em 2017 e 4,5% em 2004. No topo da pirâmide, verifica-se que os 10% que ganham mais corresponderam a 30,4% do total auferido pelos trabalhadores. A nível geral, a OIT revela que 10% dos trabalhadores recebem 48,9% do total do salário global, enquanto os 50% dos trabalhadores mais mal pagos recebem apenas 6,4%. Por outras palavras, e é de desigualdade que se trata, o estudo mostra que o aumento dos rendimentos no topo traduz perdas salariais para os restantes trabalhadores da pirâmide. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Trabalho|
Capital usurpa cada vez mais rendimento do trabalho
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O ardiloso argumento «dos que vivem à custa do Estado» nunca é dirigido a quem verdadeiramente o faz. Não toca nos benefícios fiscais dos grandes grupos económicos, nem nos apoios dados às grandes empresas, nem naquelas que este ano voltaram a argumentar não ter condições para pagar um aumento do salário mínimo, nem nos buracos da banca ou das PPP que os portugueses são chamados a cobrir. Tal como não aborda a questão dos baixos salários e da precariedade, nem tampouco a necessidade de uma justa distribuição da riqueza.
Faz-se com os pobres, alimentando o ódio e a xenofobia perante aqueles que o sistema capitalista exclui, fazendo crer que é sua a responsabilidade de não ter conseguido «vencer» e «agarrar as oportunidades».
Tal como na série coreana Squid Game, os ricos divertem-se com a situação dos pobres e, sendo os responsáveis por um sistema alimentado de desigualdades, criticam os que não se conseguem manter à tona, enquanto continuam a jogar um jogo de regras viciadas.
Se a realidade dos que vivem com o que ganham ao fim do mês não se degrada mais, isso deve-se à organização e luta que travam nos seus postos de trabalho. E essa é uma pedra no sapato dos patrões. Ferraz da Costa regozija-se com a ideia de que os sindicatos «lá fora não têm grande peso», argumentando que por «cá vai ser uma questão de tempo».
Mas não é esse o retrato traçado em empresas como a Efacec, a Petrogal ou a Altice. Nestas, tal como em muitas outras por todo o País, resistir continua a ser a palavra de ordem para que o tabuleiro do jogo seja bem mais equilibrado e não sejam os mesmos do costume a jogar.
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