Um dos argumentos mais corriqueiros na oposição à regionalização é o de que a fraca qualidade dos dirigentes políticos conduz inevitavelmente a práticas duvidosas. A associação do autarca do interior ao ultramontanismo e à corrupção é um classismo cosmopolita que tende a esquecer que o desenvolvimento do poder local democrático decorre da de opções políticas nacionais e que a própria organização dos partidos políticos se reflete na prossecução (exclusiva ou relativa) do interesse público. As práticas duvidosas devem mais ao modelo de democracia que os partidos hegemónicos impuseram (com uma grande resistência da Constituição) do que à imoralidade dos indivíduos – característica que, apesar de uma convicção ilusória, não lhes é inata.
Mas para as elites cosmopolitas e os seus aspirantes é mais fácil moralizar, estereotipar e generalizar do que compreender a origem de certas opções – como é que a política local, com a sua falta a urbanidade, cosmopolitismo e sofisticação, pode tomar as suas próprias decisões? Não lhes passa pela cabeça que, por exemplo, a democracia não se esgote na dimensão política e que a dimensão social, cultural e económica seja determinante para a sua realização. Esta rejeição ideológica cria grandes e sérios entraves ao desenvolvimento e à autonomia das populações sobre o seu próprio destino. O resultado é a perpetuação do isolamento, do esquecimento e da condenação à dependência de caciques, de grupos económicos que exploram recursos locais e de financiamentos condicionados pela chantagem. Sem esperança e confiança na sua própria capacidade para a participação democrática, desiste-se e entrega-se o ouro ao bandido.
Ao longo de décadas assistiu-se ao processo de desertificação do interior do país, mas quando se fecharam estaleiros e minas, quando se limitou a produção agrícola e as pescas, substituiu a floresta autóctone por fósforos lucrativos, encerraram escolas e maternidades, centralizaram serviços para ganhar escala (isto é uma gente que adora ganhar escala), construíram vias rápidas para o êxodo e portagens dissuasoras para garantir que o dinheiro dos nossos impostos não serve para o transmontano andar a passear à nossa custa, entre tantas outras patifarias, sacudiu-se os ombros com pragmatismo e a desculpa de que era o progresso, que eram sinais dos tempos ou a evolução inevitável do mundo.
Depois de se terraplanar económica, social e culturalmente o país que insiste em viver para lá das áreas metropolitanas, e apesar de todos os programas fracassados para captar o investimento que ia salvar o interior, lá veio o advento do turismo, cheio de oportunidades para tudo e todos e toca de, num último fôlego, investir o pouco que se tem na requalificação do espaço público, na reconversão e adaptação dos negócios à nova dinâmica anfitriã. Mais uma dependência que mais cedo do que tarde se tornaria danosa e atrairia um oportunismo vampiresco.
Foi desta realidade, que não é exclusivamente portuguesa, que Tanguy Viel partiu para dar corpo a uma «banal história de vigarice», Artigo 353 (2017), cuja tradução foi publicada apenas em 2024. A delapidação industrial do norte de França e as promessas de um novo progresso são o rastilho para um ato cuja condenação o autor deixa à nossa consideração. Viel traz aqui um exercício de desmoralização que obriga o leitor a analisar e a refletir sobre as circunstâncias que levam alguém a cometer um crime. Esta é, talvez, a grande virtude deste romance, que dá um enquadramento materialista a uma realidade para lá de um único acontecimento. Não se trata de uma vulgarização do homicídio, mas da demonstração de que o bem e o mal são conceitos equívocos e que a sua natureza moralista não serve de nada para a transformação de que necessitamos no caminho para a harmonia social.
«É o desespero que permite a hipótese da vigarice, com a cumplicidade de autarcas deslumbrados, banqueiros sôfregos, gente sem pátria e parasitas de fato e gravata – a fórmula clássica do desastre.»
No momento literário que vivemos, no qual é mais fácil ver um autor explorar exercícios de onanismo intelectual para provar a sua imensa sofisticação ou uma irreverência reacionária, Viel opta por um realismo social com uma abordagem crítica ao capitalismo e às suas devastadoras consequências sociais. Dir-se-ia que essa abordagem tem o mérito de nos conduzir pela identificação da origem daquilo que à superfície era uma história banal de vigarice, como sugere o protagonista logo na abertura da obra.
Em momento algum, a vigarice que agravou a vida daqueles que já não tinham horizontes assume um papel espontâneo. Ela nasce de fatores muito concretos: uma região espoliada do seu setor produtivo pelas decisões dos governos e da União Europeia; o desemprego e a falta de oportunidades; a erosão da confiança no socialismo, provocada por aqueles que o traíram com promessas de uma economia de mercado e de um elevador social; a ilusão do fim da luta de classes; e o desespero que aceita já qualquer solução. É o desespero que permite a hipótese da vigarice, com a cumplicidade de autarcas deslumbrados, banqueiros sôfregos, gente sem pátria e parasitas de fato e gravata – a fórmula clássica do desastre.
Artigo 353 não é um suspense, de reviravoltas e revelações surpreendentes. É uma obra que, através de uma forma já experimentada, desvela e expurga a culpa e nos obriga a reconhecer o dano daquilo que verdadeiramente se deixou banalizar. Ao mesmo tempo repete um equívoco na determinação dos responsáveis pela vigarice. Ficamos, de certo modo, com a ideia de que é na concorrência entre o vigarista e o desesperado que se encerra a responsabilidade das ações. Mas as circunstâncias são bem mais complexas do que isso. Nesse aspeto, a personagem do Presidente de Câmara torna-se nuclear no enredo, porque é este que, apesar da sua bonomia e boas-intenções, vai validar a oportunidade trazida pelo vigarista, investindo dinheiros públicos num projeto que dificilmente beneficiaria a população local e que, certamente, beneficiaria uma pequena elite em detrimento de um espaço público.
Quando pensamos no poder local, pensamos num modelo democrático em que as decisões tomadas atendem a necessidades reais de quem ali vive e trabalha. As soluções para o definhamento económico e social não podem ser tomadas em gabinetes à porta fechada. Elas têm de ser o resultado de uma discussão pública que se dirija à realidade de cada população e não apenas aos interesses de uma classe dominante que tomou ilegitimamente o poder. Só um verdadeiro processo democrático e o renascimento de um espírito de construção coletiva, nos ajudará a superar certas tragédias.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui