Diz o ditado que «Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades». A propósito da indemnização paga a Cristina Dias, nomeada para secretária de Estado da Mobilidade, veio o PS colocar em causa tal indemnização e o PSD colocar na praça pública documentação que procura demonstrar a normalidade de tal processo.
(Recorde-se, para os saudavelmente mais distraídos da mediática espuma dos dias, que Cristina Dias terá recebido 80 000 euros de indemnização para sair da CP em 2015, onde era administradora, tendo sido nomeada para vogal do Conselho de Administração da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes [AMT], um mês depois, com um salário de 9600 euros, mais 3840 euros de despesas de representação).
Estamos perante uma situação inaceitável: alguém que sai de um cargo público para outro cargo público melhor remunerado e recebe uma indemnização graças a um programa que existia «por causa da necessidade de redução da despesa pública».
Do ponto de vista moral e político, esta indemnização é tão inaceitável como a que foi paga a Alexandra Reis e deu o mote à criação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à TAP. Mesmo que possa vir a ser considerada legal. Basta reler as intervenções do PSD naquela CPI, e fica claro que a única razão para o PSD hoje considerar esta situação legítima é o facto de Cristina Dias ser secretária de Estado de um Governo do PSD e não do PS.
O programa de rescisões por mútuo acordo
Para tentar «limpar-se», o PSD tornou público um documento precioso: a lista de 400 trabalhadores (sem os respectivos nomes, mas com as suas funções) que entre 2010 e 2015 saíram da CP ao abrigo desses programas recebendo indemnizações. E o valor dessas indemnizações.
Não se percebe o que o PSD quer demonstrar. Nenhum dos outros 399 trabalhadores era administrador da empresa nomeado pelo Governo, nem saiu para outro cargo público nomeado pelo Governo. Quererá o PSD afirmar que Cristina Dias foi «esperta» e aproveitou um programa existente por outras razões para ir «buscar» 80 000 euros? Num momento em que o PSD obrigava o povo português a apertar o cinto? É este o modelo de moralidade do PSD? Talvez...
Mas aquilo que queremos aproveitar para destacar é outra coisa. Só entre 2010 e 2015, a CP «libertou-se» de 400 trabalhadores, pagando-lhes indemnizações que totalizaram 37 milhões de euros. Entre esses trabalhadores, 55 eram maquinistas, 56 técnicos superiores, mais de 100 estavam nas áreas afectas à venda e revisão. E estes números não incluem a EMEF, que estava então separada da CP.
Esses programas foram conduzidos sobre o pressuposto de que as empresas públicas tinham trabalhadores a mais, e era preciso reduzir a despesa pública. O seu resultado foi descapitalizar duplamente as empresas públicas: tiveram que assumir os custos desses «acordos» e ficaram com pessoal a menos. Se olharmos para o Orçamento do Estado em vigor, à semelhança do de anos anteriores, inclui este artigo 33.º: «Contratação de trabalhadores aposentados para o setor ferroviário – Os aposentados ou reformados com experiência relevante em áreas de manutenção de material circulante ou em funções de maquinista podem exercer funções nas empresas públicas do setor ferroviário que procedam ao transporte coletivo de passageiros, mantendo a respetiva pensão de aposentação, acrescida de até 75% da remuneração correspondente à respetiva categoria e, consoante o caso, escalão ou posição remuneratória detida à data da aposentação, assim como o respetivo regime de trabalho.»
«Esses programas foram conduzidos sobre o pressuposto de que as empresas públicas tinham trabalhadores a mais, e era preciso reduzir a despesa pública. O seu resultado foi descapitalizar duplamente as empresas públicas: tiveram que assumir os custos desses "acordos" e ficaram com pessoal a menos.»
Ou seja, primeiro pagou-se para os trabalhadores saírem, agora paga-se a reformados para trabalhar. Isto sem contar as centenas de situações em que as empresas públicas passaram a subcontratar os mesmos trabalhadores, mas através de prestações de serviço, da externalização de funções, etc.
Esta prática – menos escandalosa que um administrador «arranjar» para si 500 mil ou 80 mil euros além de salários milionários – contribuiu ainda mais para a destruição das empresas públicas, enfraquecendo a sua resposta operacional, fazendo desaparecer conhecimento técnico indispensável, agravando os custos operacionais (as prestações de serviço ficam sempre muito mais caras que o trabalho prestado directamente).
Qualquer destas práticas é prática corrente, quer dos governos PS, quer dos governos PSD. E não vale a pena tentar perceber qual deles é o menos mau neste capítulo: têm as mesmas práticas e a mesma falta de vergonha. E muito menos devemos deixar que nos conduzam a pensar que o problema está nas empresas públicas. Não está. Está no facto do poder político estar subordinado ao poder económico privado, de as leis aprovadas por PS e PSD criarem uma gestão pública propositadamente ineficaz, de as pessoas escolhidas para gerir as empresas públicas terem como primeiro objectivo – assumido ou não assumido – a sua privatização, e viverem ajoelhadas aos pés de uma ideologia, o neoliberalismo, daninha do ponto de vista económico e social.
O sucesso do sistema está exactamente que, enquanto os problemas se agravam, e neste caso, mesmo enquanto PS e PSD expõem publicamente as suas taras e opções erradas, a maioria esmagadora dos que assistem ao espectáculo são levados a conclusões inconsequentes: em vez da racional conclusão de que é preciso romper com este caminho e impor uma gestão pública democrática, transparente e progressista, são levados a concluir que a solução é entregar as empresas públicas ao grande capital.
Terminando como se iniciou, com um ditado popular: «Fazem simultaneamente o mal e a caramunha».
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