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Filipinas rejeitam e devolvem lixo ao Canadá

O governo filipino tomou uma posição firme e fez devolver ao Canadá toneladas de lixo não reciclável, entrados naquele país asiático sob falsos documentos. A Malásia quer seguir-lhe o exemplo.

O cargueiro MV Bavaria zarpou a 31 de Maio do porto-livre da baía de Subic, a norte de Manila, Filipinas, carregando cerca de 2450 toneladas de lixo tóxico devolvidos pelas Filipinas ao Canadá, a expensas deste país.
CréditosEPA/JUN DUMAGUING

No passado dia 31 de Maio o cargueiro MV Bavaria – de bandeira liberiana1 mas sem porto de origem conhecido – zarpou do porto-livre da baía de Subic, a norte de Manila, carregando cerca de 2450 toneladas de lixo tóxico, noticiou a Al-Jazeera.

Depois de um braço-de-ferro de cerca de um mês entre a administração do presidente Duterte e o Canadá, este país aceitou assumir os custos da repatriação de resíduos enviados para as Filipinas durante os anos de 2013 e 2014 sob especificações falsas.

Dos 103 contentores recebidos há seis anos, apenas 69 se encontravam em condições de voltarem a ser reembarcados com destino, segundo a Al-Jazeera, ao porto de Vancouver, no Sudoeste do Canadá. Ainda assim, 34 contentores ficaram nas Filipinas, seja por se terem deteriorado com os anos seja por terem sido abertos para fiscalização – quando se levantaram suspeitas sobre o seu conteúdo – e já não puderam voltar a serem fechados.

Contrabando de lixo

O envio ilegal de lixo para as Filipinas por parte do Canadá tem sido, como o primeiro-ministro Justin Trudeau o definiu já em 2017, um «prolongado irritante» nas relações entre Otava e Manila, segundo o sítio de notícias filipino Rappler.

Tudo terá começado com a chegada ao porto internacional de Manila, de Junho a Agosto de 2013, de 50 contentores alegadamente contendo sucata de plástico avaliada em 3,9 milhões de pesos, que teriam sido expedidos pela canadiana Chronic Incorporated, uma empresa de Whitney (Ontario) com «pelo menos um trabalhador» e pouco mais de 90 mil dólares canadianos de receitas anuais, de acordo com o serviço informativo Manta.

Os envios de contentores terão prosseguido até Janeiro de 2014, havendo informações contraditórias quanto ao seu destinatário, com meios a apontar para a filial filipina da companhia canadiana, a Chronic Plastics Incorporated (CPI), e outros a indicarem como destinatário o importador filipino Live Green Enterprise .

A verdade é que nenhum dos contentores foi desalfandegado fosse por quem fosse e, nesse mesmo mês, o Departamento de Ambiente e Recursos Naturais (DARN) solicitou à alfândega a devolução da mercadoria ao seu expedidor, por a mesma não ter sido levantada em tempo devido pela Live Green Enterprise e estar a acumular-se no porto.

Em 21 de Janeiro a autoridade alfandegária inspecciona 18 dos contentores que se encontravam há mais tempo abandonados e, em vez de sucata plástica depararam com uma autêntica lixeira, sem qualquer isolamento ou contenção: garrafas de plástico, sacos de plástico, jornais, lixo doméstico indiferenciado e mesmo fraldas descartáveis.

O lixo encontrado foi classificado de perigoso de acordo com o Lei da República 6969/1990 sobre o «Controlo de substâncias tóxicas, perigosas e desperdícios nucleares» e a alfândega decidiu não abrir o resto dos contentores a fim de prevenir o risco de contaminação ambiental nas imediações do local onde os mesmos se encontravam depositados.

Nos meses seguintes o Estado filipino não fica parado. A 20 de Fevereiro de 2014 o Bureau of Customs (BOC), a alfândega filipina, apresenta queixa contra os proprietários da CPI por contrabando de lixo tóxico sob o disfarce de sucata plástica e por violação do Código Tarifário da Alfândega das Filipinas. Em Março de 2014 o BOC, por intermédio do seu Departamento de Assuntos Estrangeiros (DFA, de Department of Foreign Affairs) faz remeter à Embaixada do Canadá nas Filipinas as primeiras cartas solicitando assistência para a devolução dos contentores de resíduos tóxicos de volta ao Canadá.

O proprietário da Chronics Inc., «uma empresa que envia sucata plástica através do Pacífico para as Filipinas, a fim de ser escolhida e vendida para reciclagem», segundo o canadiano Star, tratou as denúncias como «a coisa mais estúpida  que ouvi na minha vida», mas em breve as suas declarações deixavam de resistir à realidade dos factos.

Funcionários públicos virtuosos mas um aliado do Canadá na presidência

O na altura embaixador do Canadá em Manila, Neil Reeder, demorou cerca de um mês a responder. Durante uma reunião com o DFA, a 24 de Abril de 2014, afirma aos seus interlocutores a vontade do seu governo de «explorar com as Filipinas opções para que o resto do carregamento [de lixo tóxico] fosse processado – de acordo com a lei filipina – nas Filipinas». Por outras palavras: apanhado em falso, o Canadá estaria disposto a pagar às Filipinas para receberem o lixo perigoso. Levá-lo de volta é que não.

É possível que os funcionários públicos do DFA não se tenham mostrado particularmente entusiasmados com a ideia. A 9 de Junho de 2014 Reeder dirige-se-lhes explicando que o governo canadiano não dispõe «de autoridade doméstica ou internacional para compelir o expedidor a fazer regressar o carregamento ao Canadá». A lei canadiana impõe «multas por violação dos regulamentos de importação e exportação» mas «não prevê um mecanismo para obrigar ao regresso de expedições ilegais ao porto de origem».

O então presidente da República das Filipinas procurou acalmar a opinião pública do seu país. A 5 de Maio de 2014 proclamou o seu comprometimento com as questões ambientais promulgando o decreto presidencial 760 em que declarava, a partir de 2015, o mês de Janeiro como um «Mês de Desperdício Zero» nas Filipinas, prevendo a realização de programas e actividades com esse objectivo em todos os departamentos, empresas e agências do Estado, incluindo o poder local2.

Benigno Aquino III, que exerceu o cargo presidencial entre 2010 e 2016, é um homem de negócios proveniente de uma família que ocupa altos cargos no Estado ou governa as Filipinas há quatro gerações e foi um parceiro seguro de Washington e seus aliados no Pacífico.

Sob pressão de movimentos ambientalistas e da opinião pública, o presidente filipino viu-se forçado a reconhecer, em Maio de 2015, que não tinha discutido com o primeiro-ministro do Canadá, Stephen Harper, a questão da devolução do lixo tóxico ilegalmente recebido, durante uma visita oficial daquele às Filipinas.

Nos meses seguintes, apesar de o concelho municipal da cidade de Manila ter aprovado uma resolução exigindo a remoção de 50 contentores de lixo para o Canadá, 26 contentores foram transportados para um depósito de lixos nos arredores da cidade e aí despejados.

Tal não parou os diligentes funcionários do Estado filipino.

Em Julho de 2015 o BOC e o DARN solicitaram ao DFA o preenchimento de uma nota diplomática de protesto contra o Canadá «para prevenir a repetição do infeliz incidente» e «contribuir para o governo do Canadá rever os seus regulamentos domésticos de sobre a exportação ou tráfico ilegal de desperdícios». A carta, assinada por altos funcionários das instituições ambientais e alfandegárias filipinas, solicitava ao governo canadiano «documentos e outra evidência para apoiar a acção legal do Estado filipino contra a Chronic Plastics. Três dias depois outra nota se lhe seguiu, esta «sublinhando a firme posição do governo filipino sobre o assunto e solicitando ao governo canadiano acção apropriada».

O Canadá não se mostra impressionado. Em Novembro de 2015 o primeiro-ministro Justin Trudeau, em visita à Filipinas para o Fórum de Cooperação Económica Ásia-Pacífico (APEC, de Asia-Pacific Economic Cooperation), continuava a não se comprometer em receber de volta os 103 contentores de lixo tóxico, apesar de reconhecer que o assunto «expôs um problema que requer modificações» na legislação canadiana». Trudeau foi conciliador apenas quanto a uma eventual repetição da situação: «temos de assegurar que se uma situação como esta» se repita «o governo canadiano terá mais poder para exigir acção às companhias responsáveis».

Mal sabia que se avizinhava um tsunami político que iria alterar a relação tradicional entre o Canadá e os EUA e as Filipinas.

Um tsunami político com consequências ambientais

Em 9 de Maio de 2016 as eleições presidenciais nas Filipinas revelam-se um total desastre para o Partido Liberal de Benigno Aquino III. De 15 milhões de eleitores em 2010 restam-lhe menos de 10 milhões em 2016, enquanto o populista e nacionalista Rodrigo Duterte, com uma campanha contra a corrupção, o crime e a subserviência ao estrangeiro, recebe 14 milhões de votos e vence por uma margem confortável.

A derrota é mal engolida pelos aliados neo-liberais e o Canadá é um dos países que se desdobra em críticas às declarações fascizantes de Duterte, mas este cavalga a onda de aprovação popular e radicaliza o seu discurso contra os velhos aliados dos EUA, aproximando-se da China e da Rússia.

A 30 de Junho do mesmo ano o Tribunal Regional de Manila ordena o envio para o Canadá dos contentores de lixo tóxico ilegalmente recebido, a expensas do importador.

Em Novembro de 2017 Trudeau contraria as suas anteriores declarações ainda de uma forma tímida: «teoricamente» seria possível trazer de volta os 103 contentores, mas ainda não lhe era possível estabelecer um compromisso definitivo para retirar o lixo das Filipinas. O primeiro-ministro canadiano voltou a afirmar que o lixo provinha de um negócio privado e era preciso discutir, entre os governos canadiano e filipino, quem iria suportar os custos do transporte da carga para o país de origem. Justin Trudeau saberia já que a firma filipina subsidiária da canadiana Chronic Incorporated tinha desaparecido.

Mas em Junho de 2018 as Filipinas endurecem a sua posição, ao punirem simbolicamente – supendendo-o por três meses sem vencimento – o subsecretário de Estado responsável pelo DARN e pelas questões ambientais, por ter «actuado com grosseira negligência» ao ter emitido um certificado de registo a favor da Chronic Plastics apesar «dos insuficientes detalhes na sua Folha de Registo de Informação».

Em Novembro do mesmo ano foram formados grupos técnicos, compostos por representantes do Departamento de Justiça, do DARN, do BOC e do DFA, com o fito de resolverem o assunto, ficando de apresentar resultados até ao fim de Abril de 2019.

A meta viria a ser cumprida, mas já em Janeiro de 2019 a resistência filipina à arrogância canadiana começava a dar os seus frutos, quando o grupo ecologista EcoWaste Coalition enviou cartas a Justin Trudeau e ao ministro do Ambiente canadiano considerando a presença de lixo canadiano nas Filipinas uma acção «ilegal e imoral», violando a Convenção de Basileia sobre o Controlo de Movimento Transfronteiriço de Resíduos Perigosos – subscrita tanto pelas Filipinas como pelo Canadá, a qual impede a importação «seja em que circunstâncias for» de resíduos tóxicos, os quais devem ser tratados pelo país que os origina.

No mês seguinte a organização ecologista lançou um novo desafio ao primeiro-ministro do Canadá – conhecido pelas suas políticas liberais e pró-ambiente – apelando a que ratificasse a Emenda ao Acordo de Basileia que proíbe expressamente a exportação de resíduos perigosos de países desenvolvidos para países em desenvolvimento.


Uma escalada verbal e um recuo prudente

Em Abril o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, disse ao Canadá para levar de volta o seu lixo e ameaçou «declarar guerra» àquele país norte-americano se o mesmo não tratasse de levantar os resíduos que ilegalmente deixara nas Filipinas. Duterte mandou retirar o seu embaixador e cônsules no Canadá ao passar a data de 15 de Maio sem ter obtido uma resposta às suas exigências3.

Não terão sido as escabrosas declarações de Duterte que obrigaram o Canadá a rever a sua posição mas sim a firmeza política do presidente das Filipinas e a firmeza dos técnicos, que muito prejudicaram a imagem liberal e ética que o Canadá pretende passar nos foros internacionais. Nesse aspecto, a posição canadiana tornava-se insustentável.

O assunto ficou finalmente resolvido na sexta-feira, com a chegada do cargueiro MV Bavaria, afinal pago pelo mesmo Canadá que durante anos se recusou a fazê-lo.

Entretanto, segundo a Al-Jazeera, nas Filipinas os grupos ambientalistas insistem com Duterte para ir mais longe e proibir a importação de lixos seja em que condições for, alegando que em 2018 foram registados casos de chegada de resíduos provenientes da Coreia do Sul, da Austrália e de Hong Kong.

O MV Bavaria pode destinar-se a Vancouver, mas a verdade é que de Manila se dirigiu primeiro para Taiwan e depois para a costa chinesa, onde ainda se encontrava quando se escreve esta notícia. As organizações ambientalistas por certo seguirão a sua rota e em que portos, não vão os canadianos encontrar algum país ou governante capaz de receber dinheiro para ficar com o lixo.

Não contem com a Malásia, não contem com a China

Poucos dias antes destes acontecimentos a Al-Jazeera reportava que a Malásia anunciara ir devolver 450 toneladas de resíduos plásticos aos países de origem, referidos como a Austrália, o Bangladesh, o Canadá, a China, o Japão, a Arábia Saudita e os Estados Unidos. Falando em Tóquio, o primeiro-ministro Mahathir Mohamad criticou a prática de países ricos como os Estados Unidos, o Canadá e o país anfitrião, o Japão, ao enviarem lixo não reciclável para os países mais pobres, situação que qualificou de «grosseira injustiça». A Malásia, segundo a Global News (Canadá), pretende atingir em breve as 3 mil toneladas de lixo devolvido aos países de origem.

A China, que durante anos aceitou receber a maioria da sucata plástica de todas as proveniências, fechou o ano passado as suas portas a este tipo de tráfico, numa tentativa para limpar o ambiente, provocando uma corrida, por parte dos países ricos, à detecção e aproveitamento de outros locais de destino para despejarem os seus lixos tóxicos.

As metas ambientais nos países industrializados são frequentemente cumpridas à custa da exportação dos lixos produzidos e não tratados para países menos desenvolvidos. Esta situação, porém, só pode acontecer enquanto as nações prejudicadas consentirem este vergonhoso tráfico.

O exemplo das Filipinas e da Malásia pode levar outros países a darem os mesmos passos, o que obrigará os governos neo-liberais do capitalismo desenvolvido a finalmente enfrentarem a necessidade de investir no tratamento desses resíduos no próprio país, reduzindo os lucros das grandes corporações e procedendo a investimento público em vez de despejarem o seu lixo – a expressão aqui é literal – nos países economicamente mais pobres.

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