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De 1929 a 2019 – o capitalismo não mudou (I)

A primeira grande crise do capitalismo num quadro de predomínio do capital financeiro sobre o capital produtivo, a mais séria crise do capitalismo no século XX, deixou a descoberto a instabilidade estrutural da economia capitalista.

Cartaz da National Association of Manufacturers em Dubuque, Iowa, 1940. A associação dos industriais americanos lançou uma campanha nacional contra as políticas do New Deal e em defesa das virtudes do mercado livre.
CréditosJohn Vachon / Library of Congress

1. A década que se iniciou em 1920 anunciava-se como uma época de ouro do capitalismo. Nos EUA, no início de 1929, o volume da produção era cerca de 65% superior ao de 1913. No início da década, com a produção em série do famoso Ford Model T, nasce a sociedade de consumo, isto é, o capitalismo do consumo de massas: em 1930, estavam registados nos EUA mais de 26,5 milhões de automóveis (na Europa, cerca de 5 milhões). A outra face desta realidade: metade das dívidas das famílias americanas tinham sido contraídas para comprar automóveis. Desde então, o crédito ao consumo e todas as técnicas de publicidade têm actuado no sentido de criar necessidades e pressionar as pessoas a consumir (mesmo as de baixos rendimentos), levando as famílias a endividar-se, por vezes para além do que seria razoável.

Por esta altura, o sector financeiro começou a sobrepor-se aos sectores produtivos e as actividades especulativas cresceram exponencialmente. A euforia dos negócios tornou-se contagiante. No início de Outubro de 1929, um relatório do governo americano reflecte este clima de optimismo: «economicamente, temos um terreno sem limites à nossa frente; há necessidades novas que abrirão incessantemente caminho para outras mais novas ainda, à medida que forem satisfeitas. (…) Parece termos apenas tocado na orla das nossas potencialidades». Era uma prosperidade ilusória, assente em lucros fictícios, resultantes de capitais fictícios, criados na bolsa, sem nenhuma relação com a actividade produtiva.

«Em 29 de Outubro de 1929 ocorreu o crash na bolsa de Nova York: várias empresas e instituições financeiras sucumbiram à baixa das cotações bolsistas; muitos bancos entraram em colapso, porque os seus empréstimos tinham servido para financiar actividades especulativas e não investimentos produtivos; o pânico e a corrida aos bancos fizeram o resto. Era o início da Grande Depressão»

2. Mas a verdade é que, em finais de 1926, o consumo das famílias começou a crescer menos do que o volume da produção, e no início de 1929 a capacidade de produção instalada na economia americana ultrapassava em 20% a capacidade de escoamento das mercadorias produzidas. Aos primeiros sinais de quebra de confiança no andamento da economia, muitos quiseram salvar o dinheiro que tinham apostado na bolsa e o aumento elevado e brusco da oferta de títulos na bolsa provocou uma baixa acentuada das cotações. E em 29 de Outubro de 1929 ocorreu o crash na bolsa de Nova York: várias empresas e instituições financeiras sucumbiram à baixa das cotações bolsistas; muitos bancos entraram em colapso, porque os seus empréstimos tinham servido para financiar actividades especulativas e não investimentos produtivos; o pânico e a corrida aos bancos fizeram o resto. Era o início da Grande Depressão, a primeira grande crise do capitalismo num quadro de predomínio do capital financeiro sobre o capital produtivo e a mais séria crise do capitalismo no século XX, que depois se propagou à Europa capitalista e a todo o mundo capitalista (mais de 30 milhões de desempregados no conjunto dos países capitalistas). Ficava a descoberto a instabilidade estrutural da economia capitalista.

3. Milhões de pessoas caíram no desemprego, perderam as suas casas e passaram a viver em campos de tendas e barracas. As doenças epidémicas propagaram-se rapidamente, juntamente com a prostituição e o crime.

Mas a administração Hoover, fiel ao catecismo liberal, preferiu aguardar que as leis naturais da economia repusessem o equilíbrio em todos os mercados, acreditando que quaisquer políticas públicas para combater o desemprego poriam em causa a velha tese das finanças sãs (o equilíbrio das contas públicas), o que equivaleria à destruição do capitalismo. Dirigindo-se ao país em 1931, Hoover defendeu que a crise só poderia ser combatida com base no «espírito de ajuda mútua através de donativos voluntários (…), no âmbito da responsabilidade que Deus impôs a cada homem e a cada mulher para com os seus vizinhos». O governo nada poderia fazer, a não ser o que fez: chamar o Exército para reprimir as manifestações de protesto.

«Milhões de pessoas caíram no desemprego, perderam as suas casas e passaram a viver em campos de tendas e barracas.  As doenças epidémicas propagaram-se rapidamente, juntamente com a prostituição e o crime. Mas a administração Hoover, fiel ao catecismo liberal, preferiu aguardar que as leis naturais da economia repusessem o equilíbrio em todos os mercados, acreditando que quaisquer políticas públicas para combater o desemprego poriam em causa a velha tese das finanças sãs (o equilíbrio das contas públicas), o que equivaleria à destruição do capitalismo»

A mesma atitude de desprezo pelos trabalhadores vítimas de crise fica patente na declaração do presidente da National Association of Manufacturers, que veio imputar publicamente aos desempregados e aos pobres a responsabilidade pela sua própria miséria, porque «eles não praticam o hábito da poupança, antes perdem as suas poupanças nos jogos da bolsa. Com que razão culpam o nosso sistema económico, o governo ou a indústria?»1

4. Em Março de 1932, Franklin Roosevelt é eleito presidente dos EUA. Como muitos outros responsáveis, deve ter partilhado o temor da revolução de que fala o seu vice-presidente, Harry Truman: «Em 1932 o sistema de livre empresa privada estava próximo do colapso. Havia verdadeiro perigo de que o povo norte-americano adoptasse um outro sistema». O desejo de salvar o capitalismo moribundo levou Roosevelt a pôr de lado algumas das teses dos economistas liberais e a adoptar um conjunto de medidas de política activa que ficaram conhecidas por New Deal.

Inicialmente, foram gastas somas enormes em operações de salvamento de bancos, empresas ferroviárias, empresas agrícolas e mesmo alguns estados federados. Simultaneamente, o governo procurou anular quaisquer tentações revolucionárias, apoiando os desempregados, os idosos, os pensionistas e os veteranos de guerra, e reconhecendo alguns direitos sindicais e sociais dos trabalhadores. Só mais tarde o governo procurou regular as actividades financeiras (nomeadamente o sector bancário) e tomou medidas orientadas para recuperar a economia e combater o desemprego: desvalorização do dólar; abandono do padrão-ouro; baixa das taxas de juro; apoio à recuperação e à reestruturação de empresas; lançamento de grandes programas de obras públicas.

Em Junho de 1933, o estado concedeu às associações profissionais o poder de governar o respectivo sector de actividade económica, solução semelhante às soluções corporativas adoptadas na Europa, embora com outro enquadramento político. Ainda em 1933, foi criada a National Recovery Administration, uma estrutura de planificação económica centralizada, com competências para obrigar a indústria a reorganizar-se, para fixar os preços, para distribuir quotas de produção.

«[Franklin D. Roosevelt] deve ter partilhado o temor da revolução de que fala o seu vice-presidente, Harry Truman: "Em 1932 o sistema de livre empresa privada estava próximo do colapso. Havia verdadeiro perigo de que o povo norte-americano adoptasse um outro sistema". O desejo de salvar o capitalismo moribundo levou Roosevelt a pôr de lado algumas das teses dos economistas liberais e a adoptar um conjunto de medidas de política activa que ficaram conhecidas por New Deal»

Em 1935, a Suprema Corte americana declarou esta estrutura inconstitucional, argumentando que a Constituição americana não permitia o socialismo (como se as políticas do New Deal tivessem alguma coisa que ver com a construção do socialismo!). De todo o modo, ficámos a saber (embora nem todos tenham aprendido a lição) que não há constituições neutras: afinal, mesmo a mais neutra das constituições, proclamadamente aberta a todos os programas políticos resultantes da alternância democrática, veicula um projecto político que exclui qualquer outro (nomeadamente o socialismo).

Roosevelt foi reeleito em 1936, com uma vitória esmagadora. Começou então o «segundo New Deal», privilegiando as políticas activas de promoção do emprego e de apoio aos trabalhadores, em resposta, aliás, às pressões sindicais, que se faziam sentir, de forma sistemática, desde o início da década: foi instituído o salário mínimo, o subsídio de desemprego, o direito de livre organização sindical e o direito à contratação colectiva, e os sindicatos conseguiram penetrar em sectores industriais que até aí os tinham mantido afastados dos respectivos trabalhadores (aço, borracha, têxtil, automóvel).

Permaneceu, no entanto, a preocupação com o equilíbrio orçamental e a contenção das despesas públicas impediu o avanço do processo de recuperação da economia, com o consequente aumento da taxa de desemprego (de 14% em 1937 para 19% em 1938). Só perante esta realidade assustadora o governo decidiu aumentar as despesas públicas financiadas mediante o recurso ao défice para compensar a quebra do investimento e do consumo privados, antecipando, de algum modo, as propostas keynesianas para combater a crise.

A doença do capitalismo era, porém, muito mais grave do que os remédios inventados para a curar. A taxa de desemprego nunca foi inferior a 15% (em 1939, havia ainda 10 milhões de desempregados) e o investimento privado era, quando rebentou a Segunda Guerra Mundial, 17% inferior ao de 1929. Há quem defenda (tese muito discutível) que a crise só foi ultrapassada graças às despesas militares resultantes da entrada dos EUA na Guerra. Outros autores sustentam (com boas razões) que os interesses económicos dominantes nos EUA e o poder político que os representa nunca permitiram que as despesas civis (educação, saúde, habitação, infra-estruturas…) ultrapassem 14% a 15% do PIB, valor muito baixo para produzir efeitos mais relevantes.

O que é certo é que, no fim do segundo mandato de Roosevelt, a frustração era enorme, o que talvez explique esta elucidativa declaração do presidente da Works Progress Administration (uma das principais agências do New Deal): «as pessoas estão fartas dos pobres e dos desempregados. (…) Esta gente não conta para o bem-estar da população como um todo. São uma casta fora dos grupos que estão dentro do sistema económico. Elas não têm mercado para o seu único bem económico, a sua competência e o seu trabalho. (…) O que é natural é que a sociedade ignore esta classe de pessoas e as abandone. Existirão como uma não-entidade, ninguém se preocupará com o que lhes acontece. Os seus membros roubarão, pedirão esmola e viverão na miséria como os seus irmãos na Índia». Terá sido a sementeira da filosofia da exclusão social: os pobres que se danem, nós não temos que nos preocupar com eles, podemos ignorá-los como se não existissem, não nos fazem falta nenhuma e só nos criam problemas (os bárbaros podem um dia invadir a cidade…).

5. A Grande Depressão atingiu duramente a Europa, já destroçada pela Primeira Guerra Mundial. Consequência dos conflitos de interesses entre as potências imperialistas europeias, a guerra veio agravar as contradições no seio do capitalismo, criando as condições para a vitória da Revolução de Outubro, em 1917, na Rússia semi-feudal.

«as pessoas estão fartas dos pobres e dos desempregados. (…) Esta gente não conta para o bem-estar da população como um todo. São uma casta fora dos grupos que estão dentro do sistema económico. Elas não têm mercado para o seu único bem económico, a sua competência e o seu trabalho. (…) O que é natural é que a sociedade ignore esta classe de pessoas e as abandone. Existirão como uma não-entidade, ninguém se preocupará com o que lhes acontece. Os seus membros roubarão, pedirão esmola e viverão na miséria como os seus irmãos na Índia»

presidente da Works progress administration

Na Rússia e na Europa, quase toda a gente esperava que a revolução socialista eclodisse na Alemanha e em outros países industrializados, expectativa reforçada pela onda de entusiasmo revolucionário e de solidariedade activa com que as organizações operárias, em toda a Europa, receberam a revolução bolchevique. Apesar de terem falhado todas as tentativas revolucionárias ao longo de 1918, o primeiro-ministro inglês escrevia, em Março de 1919: «Toda a Europa está imbuída do espírito da Revolução. Existe um sentimento profundo não só de insatisfação mas também de raiva e indignação, entre os operários, em relação às condições existentes antes da guerra. Toda a ordem vigente, nos seus aspectos políticos, sociais e económicos, está a ser posta em causa pela massa da população, de um extremo ao outro da Europa».

Também na Alemanha foi derrotado o movimento Espartaquista (derrota selada com o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht). A correlação de forças evitou, porém, que a derrota do movimento revolucionário desse lugar a uma solução de tipo fascista, ao contrário do que aconteceu em vários outros países da Europa: o Império deu lugar à República de Weimar, que adoptou uma nova Constituição, com um programa político de matriz reformista (o compromisso que o capitalismo alemão teve de aceitar, naquelas circunstâncias históricas, compromisso que nunca teve o apoio dos comunistas alemães).

A Primeira Guerra Mundial significou, para a Alemanha, a perda de 10% dos homens em idade activa e a diminuição da produção industrial em 39%. No início da década de 1920, a Alemanha sofreu as consequências da hiperinflação: milhões de pessoas da classe média perderam as suas poupanças e caíram em situações de miséria sem saída; os salários sofreram uma perda brutal de poder de compra, o mesmo acontecendo com os pensionistas e os pequenos investidores em operações com taxa de juro fixa (incluindo os que tinham subscrito títulos de dívida pública para financiar a guerra); a moeda deixou de funcionar, generalizando-se o fenómeno da fuga à moeda e o regresso à troca directa; a economia ficou fora de controlo.

Não admira, por isso mesmo, que a crise geral do capitalismo se tenha feito sentir na Alemanha com extrema violência: o desemprego e a fome atingiram milhões de pessoas, o que gerou movimentos de greves e de protestos generalizados, que várias vezes configuraram situações de tipo pré-revolucionário. O país viveu uma verdadeira guerra civil, num pano de fundo em que os partidos da direita e o partido social-democrata (SPD) tudo fizeram para travar o passo à revolução.

«Se o nazismo é filho de alguma política em especial, então a paternidade deve ser atribuída, em primeiro lugar, às políticas recessivas dos governos de iniciativa presidencial, nomeadamente o de Heinrich Brüning, aprovadas pelo silêncio dos socialistas do SPD. O resto foi obra do grande capital, que desde cedo apostou no Partido Nacional-Socialista para matar a revolução»

Em Março de 1930, Hindenburg nomeou Heinrich Brüning como chanceler. A pretexto de combater a crise, o chanceler da fome iniciou uma guerra aberta contra o «estado sindical» e apostou em políticas contraccionistas: recusa da desvalorização do marco; redução dos salários dos funcionários públicos; asfixia dos direitos dos trabalhadores; reduções dos subsídios de desemprego e das despesas sociais. A crise agravou-se: em 1932, a produção industrial era apenas 60% da registada em 1929; a taxa de desemprego atingiu os 30% (cerca de 6 milhões de desempregados e muitos mais em situação de desemprego parcial, sendo que, dentre todos eles, apenas 1,8 milhões recebiam subsídios de desemprego).

6. O compromisso de Weimar traduziu o projecto reformista da social-democracia alemã, que apostava nas virtudes do «capitalismo organizado» para abrir caminho ao socialismo através da democratização da economia com base na co-gestão e defendia que a integração do proletariado no estado, através de eleições, era o caminho para concluir a revolução burguesa e iniciar o socialismo, actuando o estado como «alavanca para o socialismo». Só que o projecto reformista – no fundo, uma tentativa de salvar o capitalismo dentro das regras da democracia política – revelou-se incapaz de resolver os graves problemas levantados pela crise económica, social e política que marcou o período particularmente complexo e contraditório entre as duas guerras mundiais do século XX.

O período dos gabinetes presidenciais terminou com a nomeação de Hitler como Chanceler e a consequente tomada do poder pelos nazis, com o apoio do grande capital alemão (da indústria e da banca) e dos grandes latifundiários. Em 27 de Fevereiro de 1933, os nazis incendiaram o Reichstag e imputaram esse crime aos comunistas. Na sequência de eleições gerais então realizadas, Hitler é nomeado chanceler em Março de 1933. A pretexto do incêndio do Reichstag, o partido nacional-socialista lançou uma política de violenta perseguição contra as organizações e os partidos operários (em especial o PC Alemão), uma política de classe violentamente anti-trabalhadores que marcou toda a governação nazi.

Não podem esconder-se os efeitos nefastos da desorganização económica, social e moral gerada pela hiperinflação. Mas não creio que possa aceitar-se, sem mais, a tese que vê na hiperinflação a origem do nazismo. Se o nazismo é filho de alguma política em especial, então a paternidade deve ser atribuída, em primeiro lugar, às políticas recessivas dos governos de iniciativa presidencial, nomeadamente o de Heinrich Brüning, aprovadas pelo silêncio dos socialistas do SPD. O resto foi obra do grande capital, que desde cedo apostou no Partido Nacional-Socialista para matar a revolução. Em última instância, o nazi-fascismo representou a forma extrema da ditadura do grande capital monopolista, que não hesitou em recorrer à repressão e à guerra para pôr na ordem os inimigos internos e para conquistar aos inimigos externos o «espaço vital» indispensável à expansão imperialista. Esta a origem da Segunda Guerra Mundial, o segundo conflito mundial inter-imperialista do século XX, resultante das contradições e dos conflitos de interesses entre os capitalismos nacionais europeus.

(continua)2

  • 1. Na sua oposição às políticas de Roosevelt a National Association of Manufacturers (NAM) lançou, durante os anos da Grande Depressão, uma enorme campanha de propaganda, em todo o país, com o objectivo de reforçar os valores conservadores americanos e o capitalismo de livre mercado. Os cartazes dessa campanha, fotografados de forma a expor o contraste entre a propaganda da NAM e a realidade miserável dos desempregados e vagabundos criados pelo capitalismo, adquiriram a força de libelo acusatório contra aquele. Ver uma selecção de imagens em Rian Dundon, «Photos: Depression-era billboards sold and celebrated the “American way”», em Timeline, 11 de Maio de 2018.
  • 2. Nota da redacção: a segunda parte do artigo será publicada amanhã.

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