O período de confinamento para evitar a propagação da pandemia de Covid-19 deixou à beira do precipício quem trabalha no sector da Cultura em Espanha, revela o portal El Salto numa peça ontem publicada. Sublinha, no entanto, que esse abismo estava no horizonte para quem se dedica à cultura muito antes de que a palavra «coronavírus» se tornasse moeda de troca legal em qualquer conversa.
A Econcult, Unidade de Investigação em Economia da Cultura da Universitat de València, levou a cabo um estudo sobre o impacto da Covid-19 no sector, tendo o objectivo triplo de medir esse efeito, analisar as estratégias de adaptação das organizações face à situação de confinamento num contexto de elevada incerteza e avaliar as ajudas públicas que foram destinadas ao sector em Espanha.
De acordo com o trabalho – um inquérito realizado por via telemática entre 16 de Abril e 17 de Maio, com 784 respostas válidas e abrangendo um universo estimado em 760 mil trabalhadores do sector cultural –, durante o confinamento ocorreu um «significativo e generalizado» desenvolvimento de conteúdos sem remuneração para exposição e consumo online, revela El Salto.
Mais de um terço dos inquiridos (35%) levou a cabo neste período iniciativas culturais grátis, e 64% afirmam ter recebido alguma proposta nesse sentido.
Devido ao cancelamento de eventos e à progressiva adaptação à chamada «nova normalidade», quase metade dos inquiridos estima perdas superiores a 75% nos seus rendimentos durante o segundo semestre deste ano.
«"A crise da Covid-19 mostrou que, sob o traje novo do imperador, esse discurso grandiloquente em torno das indústrias culturais, da classe criativa e do talento como motor da economia do conhecimento e da inovação, o rei ia nu"»
O estudo refere também o enorme agravamento da situação de fragilidade estrutural das organizações culturais, dificultando a sua sobrevivência e «a sustentabilidade do ecossistema cultural». Assim, El Salto nota que 92% dos questionados afirmam que se verão afectados a longo prazo pela «crise da Covid-19»; quatro em cada dez prevêem que o impacto os obrigará a reduzir o número de trabalhadores e 9% das empresas culturais provavelmente terão de fechar portas.
Raúl Abeledo, director de Projectos Europeus da Econcult, destaca que esta situação é anterior à pandemia: «A crise da Covid-19 mostrou que, sob o traje novo do imperador, esse discurso grandiloquente em torno das indústrias culturais, da classe criativa e do talento como motor da economia do conhecimento e da inovação, o rei ia nu. O impacto desta crise mostra às claras o predomínio de uma actividade artística e cultural marcada pela precariedade, a irregularidade e a temporalidade nas condições de trabalho, o impacto da austeridade nos cortes orçamentais do sector, as dificuldades de acesso ao financiamento ou as contradições na regulamentação dos direitos de propriedade intelectual», disse.
Em seu entender, esta realidade não só não vai desaparecer, como, pelo contrário, terá tendência a intensificar-se: «A crise da Covid-19 vai incidir na sua intensificação, é a consequência lógica de um pano de fundo marcado pelas tendências de digitalização, globalização e mercantilização neoliberal da economia em geral e da actividade cultural em particular», sublinhou.
A precariedade como tendência dominante no sector
O estudo «fotografa» a realidade muito diversa do sector da Cultura em Espanha, em que figuram trabalhadores por conta própria, a tempo parcial, empresas, associações ou fundações; artistas que a duras penas conseguem chegar ao fim do mês e directores de macrofestivais internacionais. Devido a esta mistura, Abeledo refere que é difícil avançar com uma perspectiva única do trabalho cultural, mas que se pode falar de tendências dominantes entre a maioria dos que se dedicam profissionalmente a ele. Por exemplo, se se tiver em conta o tamanho das empresas, verifica-se uma realidade que o investigador caracteriza como «bipolar»: muitas muito pequenas, poucas muito grandes e uma ausência notória de empresas de tamanho médio.
Na sua abordagem, a Econcult adoptou um conceito de «cultura» que inclui património, artes cénicas, artes visuais, artesanato, literatura, audiovisual e design, arquitectura e serviços criativos.
«Quando o inquérito foi realizado, apenas 11% das pessoas entrevistadas dispunham de ajudas públicas concretas, e 44% não tinham recebido nenhuma»
O facto de que, durante o confinamento, um em cada três trabalhadores da Cultura tenha realizado trabalhos de borla – algo impensável em qualquer outro sector de actividade – está relacionado com vários factores, segundo Abeledo, que se refere «às necessidades expressivas, ao carácter vocacional da actividade ou à importância da prática amateur».
Refere-se também ao facto de um dos traços característicos da visão e missão das organizações culturais se ligar a lógicas que vão para lá do ânimo de lucro, como «o desenvolvimento da identidade individual e colectiva, a liberdade criativa e de expressão, a conservação da memória e do património artístico, a transformação social ou o voluntariado cultural». Em qualquer caso, Raúl Abeledo considera imprescindível que «a defesa dos direitos dos trabalhadores culturais seja liderada e organizada a partir do próprio sector».
Metade dos inquiridos (48%) teve de implantar o trabalho à distância como resposta ao confinamento, com excepção das artes cénicas, em que o teletrabalho é muito difícil de levar a cabo. Esta forma de trabalho, juntamente com a aceleração em matéria de digitalização que representa esta crise, «vai gerar importantes transformações estruturais nos modos de produção e consumo cultural a médio e longo prazo», revela o estudo da Econcult.
Quando o inquérito foi realizado, apenas 11% das pessoas entrevistadas dispunham de ajudas públicas concretas, e 44% não tinham recebido nenhuma. Entre quem as recebeu, a avaliação foi negativa, tendo sido apontada a «clara insuficiência das mesmas para fazer frente à situação», informa El Salto.
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