O coronavírus é uma espécie invasora da vida. Uma ameaça que, pela densidade e velocidade da sua propagação, introduziu uma perturbação universal que promoveu alterações substanciais nas movimentações na superfície da terra, com uma travagem desmedida na actividade económica e brutais restrições nos direitos e liberdades, que exploram o natural instinto de sobrevivência de todos para que as aceitem sem resistências significativas.
A actividade económica, com desiguais solavancos, vai sendo retomada. Uma retoma que tem tornado evidente a falência do receituário neoliberal e a importância do Estado definir políticas públicas de investimento e de defesa dos trabalhadores, se realmente quer menorizar os inevitáveis impactos que uma crise com esta extensão provoca no tecido económico de qualquer país, maior ainda quando esse tecido tem sido puído por dezenas de anos de governos de centro-direita e de direita, como é o caso de Portugal. Uma evidência que alarma os neoliberais de vários matizes que, controlando os meios de comunicação social e estando bem ancorados no chamado serviço público dos media, tentam por todos os meios desvalorizar as evidências quando as não podem negar.
O real perigo é que algumas das medidas de emergência para conter a propagação do contágio, que têm sido adoptadas e aceites, passem a fazer parte do quotidiano. Instalou-se um clima de medo potenciado pela comunicação social corporativa com os relatórios diários e atemorizantes sobre as vagas de Covid-19, em que as estatísticas das vítimas são apresentadas de forma abstracta, em que as taxas e os picos de mortalidade não são sujeitas a nenhum crivo elucidativo das razões dos óbitos atribuindo-os por atacado ao vírus, mesmo quando os óbitos dos grupos etários mais elevados, ainda que influenciados pela presença do vírus, não podem ser exclusivamente explicados pela sua presença. O que está em curso é um processo de instauração de medo generalizado, em que mesmo o negacionismo científico imbecil dos bolsonaros ou os ziguezagues trumpistas, que se atropelam na sua irracionalidade, contribui para a sua persistência.
O mundo é varrido pelos turbilhões do medo. Medo de se ser contagiado, medo de morrer, medo de perder o emprego, medo de não se sobreviver por perca de capacidade económica e social que impossibilite o dia seguinte que não se sabe como e quando acontecerá.
«A actividade económica, com desiguais solavancos, vai sendo retomada. Uma retoma que tem tornado evidente a falência do receituário neoliberal e a importância do Estado definir políticas públicas de investimento e de defesa dos trabalhadores, se realmente quer menorizar os inevitáveis impactos que uma crise com esta extensão provoca no tecido económico de qualquer país, maior ainda quando esse tecido tem sido puído por dezenas de anos de governos de centro-direita e de direita, como é o caso de Portugal»
Não é um acaso a tipologia das notícias dos media, em que a liberdade, as liberdades no seu relativismo e desde sempre ameaçadas, são colocadas em causa, com a exploração de toda a panóplia conducente ao isolamento social, ao confinamento, ao teletrabalho, aos espectáculos on-line, à educação digital, às vendas on-line, à quebra do isolamento pelo recurso às redes sociais, que são apresentados como instrumentos de combate à pandemia sem uma réstia de preocupação com o aprofundamento das desigualdades existentes e com o impacto da crise sobre os que já tinham os seus direitos fragilizados, muitos deles sem direito ao isolamento social, e que são a parte dos grupos sociais mais afectados pela crise.
O medo sempre foi um poderoso instrumento de governação e a comunicação social estipendiada tem, ao longo dos anos, construído uma insidiosa narrativa instalando o pavor com relatos da violência, nos mais diversos formatos e com periodicidades variáveis. Delinquência, assassinatos, violações, acidentes, incêndios de vários calibres fazem parte dessa paisagem a que se agregam ameaças mais persistentes como o aquecimento global, o buraco de ozono, a contaminação ambiental, os desastres naturais e os que podem advir da queda de detritos cósmicos ou da aproximação de um meteorito, atraídos pela força da gravidade, mais os relatos direccionados dos terrorismos e das guerras que justificam outras guerras, etc. Notícias intercaladas com frivolidades mas sempre sem perder o norte de discriminar as forças políticas e sociais que se opõem frontalmente ao estado de sítio imposto pelo neoliberalismo, sempre dando destaque aos seus porta-vozes, que o maior interesse que têm pela pandemia, por cá e nos quatro cantos do mundo, é explorá-la enquanto negócio. Bill Gates e a sua máfia estão na linha da frente desse paradigma, criando alianças globais que impõem prescrições para os problemas da saúde que procuram impor a todo o mundo. É o filantrocapitalismo, em que se injecta dinheiro num sistema em que a democracia, a biodiversidade e a cultura são erodidas num processo em que ele e os seus pares ficam mais ricos.
Por cá, à nossa escala, o caso mais exemplar é o do bastonário da Ordem dos Médicos, que aproveita a situação dos graves problemas que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) terá para enfrentar uma previsível expansão da epidemia – «que não está a disparar, mas a crescer», como afirma a ministra da Saúde – não para defender o seu robustecimento, depois de anos de desinvestimento feitos pelos governos de centro-direita e direita, mas o negócio dos privados na saúde – um dos negócios mais lucrativos, depois das armas e da droga (Isabel Vaz, administradora da Luz Saúde, SA dixit) – opinando que o Estado deve contratar os privados, isto depois de os privados, no início da crise, se terem demitido de acorrer ao pico da pandemia por não dar dinheiro. Diz isto com a inefável, insuportável e hipócrita máscara de cruzado recacho pelo bem da saúde pública com que aparece nos inúmeros tempos de antena que lhe são concedidos para inocular o medo. É bem acolitado pela comunicação social mercenária, que nunca refere que os privados muito têm lucrado através do Estado e dos impostos cobrados aos cidadãos: 41% da sua facturação é assegurada pela captura de 47% do que o Estado gasta na saúde, à pala das ineficiências artificialmente criadas em décadas ao SNS. Esse alcoviteiro da saúde faz parte da camarilha dos abutres que assaltam a saúde pública para com ela fartamente lucrarem. Estão sempre muito atentos a estas janelas de oportunidade de negócio.
Os nossos dias, desde que foi declarada a pandemia, são bombardeados com notícias e propaganda em formato noticioso que engrossam as pesadas nuvens que chovem pavores sem detença. O planeta está envolvido por uma espessa camada atmosférica carregada de medos sem que se entreveja um anticiclone que a limpe. O medo empurra para o silêncio da aceitação de medidas restritivas à normalidade, por mais anormal que seja, da circulação da vida. Medidas que são aceites praticamente sem oposição e que as forças reaccionárias pretendem, em primeiro lugar, impor às liberdades constitucionais, às lutas dos trabalhadores, às lutas sociais e políticas, o que explica a sua fúria contra o 1.º de Maio, a Festa do Avante!, os lances que foram usados, os meios que foram mobilizados. O medo, como Maquiavel teorizou, foi desde sempre uma das mais poderosas armas das forças dominantes. É uma ferramenta multiusos que percorre todo o arco, da mais feroz repressão à mais ligeira persuasão.
Adquire novas valências quando aos medos que se têm instalado enquanto conta-corrente dos poderes dominantes se associa o medo universal catapultado pela pandemia. O seu combate é uma necessidade e urgência real que não pode ser adiada, o que facilita a aceitação de medidas restritivas na luta contra as tipologias de contágio que facilitam a sua propagação, paralisando e silenciando vozes críticas mesmo as mais sensatas, serenas e competentes.
O grande alerta que tem que ser feito neste estado de emergência é para o perigo que muitas das medidas hoje adoptadas se perpetuem depois de o termos ultrapassado. Há que no imediato pensar nesse perigo. Nos usos e abusos das tecnologias de controlo, para que o que hoje é urgente e necessário não ultrapasse essas fronteiras e configure políticas futuras, para que a legalidade agora justificada não se torne numa ilegalidade instituída, sabendo-se que o desarmamento político foi desde sempre um dos grandes objectivos da burguesia dominante que, ao longo dos tempos, foi apurando as suas formas de actuação, enriquecendo o seu arsenal com ferramentas que visam atingir sempre o mesmo alvo: reduzir a influência ou mesmo anular os instrumentos organizados de luta das massas populares, partidos e sindicatos. Um alerta plenamente justificado, se se atentar no que tem sido preparado nos últimos decénios pela comunicação corporativa que, como tem alertado Noam Chomsky, tem funcionado num sistema em que «os media de referência estabeleceram um padrão dentro do qual opera o resto», em que os media dos países periféricos, desenvolvidos, em vias de desenvolvimento ou do terceiro mundo replicam o que é emitido por esses media ditos de referência e pelas grandes agências informativas dominadas e controladas pela plutocracia altamente beneficiária com as políticas neoliberais.
«O que está em curso é um processo de instauração de medo generalizado, em que mesmo o negacionismo científico imbecil dos bolsonaros ou os ziguezagues trumpistas, que se atropelam na sua irracionalidade, contribui para a sua persistência.
O mundo é varrido pelos turbilhões do medo. Medo de se ser contagiado, medo de morrer, medo de perder o emprego, medo de não se sobreviver por perca de capacidade económica e social que impossibilite o dia seguinte que não se sabe como e quando acontecerá»
A essa forma, que agora se pode classificar como mais tradicional, surgiram outras mais sofisticadas através das redes sociais que promovem a fusão da vida profissional com a pessoal num gigantesco e global reality show em que cada um tem a ilusão de liberdade total que na realidade está apertadamente controlada pelos algoritmos alinhados com o totalitarismo democrático, com o pensamento único dominante orientado pelo lucro. Os milhões de pessoas que por todo o mundo viajam pelas redes sociais deixam voluntariamente o seu rasto, que está a ser vigiado pelo olhar panóptico dos guardiões do neoliberalismo. Rasto que já existia com o uso dos cartões multibanco, das localizações nos smartphones, com as pesquisas nos motores de busca, em que as grandes agências secretas em paralelo com as de marketing lêem e traçam os perfis do nosso estado de espírito a partir do que se partilha online. Tornamo-nos em utilizadores e consumidores sem escolhas nem diferenciações no universo digital. Somos voluntariamente colonizados por esses novos colonizadores, amantes zelosos do império digital.
Hoje vive-se num gigantesco campo de concentração virtual em que o neoliberalismo comanda a história reaccionária em curso, conseguindo mesmo o grande feito de provocar a desorientação ideológica de muitas esquerdas, promovendo movimentos activistas que acabam por fazer parte da sua narrativa.
O totalitarismo democrático, que tem a sua expressão mais acabada na democracia espectacular dos Estados Unidos da América, em que dois partidos se alternam para prosseguir políticas similares, persegue sem pausas a implantação de uma sociedade uniforme, inerte, portadora de um mesmo conjunto de opiniões, comandada pelo domínio integral das formas de comunicação tradicionais e das novas formas proporcionadas pela comunicação e interacção digital. O estado de excepção que agora se vive dá-lhe um novo impulso. Muitas das restrições têm um efeito negativo na vida dos cidadãos, com a consequência, que nunca pode ser subestimada, de tornar os pobres mais pobres e os ricos mais ricos, uma realidade que as crises tem vindo a acentuar como se pode ler aqui e aqui.
Para a esquerda consequente os desafios são ainda maiores porque, participando natural e conscientemente nos combates contra a crise instalada pela pandemia, tem que continuar a batalhar seriamente contra as opressões daí derivadas sem nunca perder a mão das lutas por uma possível transformação social.
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