A literatura e a realidade por vezes não se encontram. Às vezes aquilo que é traçado nas letras é mais justo que aquilo que ocorre na verdade. Nas linhas de Jorge Luis Borges no conto A Lotaria da Babilónia, o sorteio servia para tornar todos os homens e mulheres iguais durante a vida.
«Como todos os homens da Babilónia, fui procônsul; como todos, escravo; também conheci a omnipotência, o opróbrio, os cárceres. Olhem: à minha mão direita falta-lhe o indicador. Olhem: por este rasgão da capa vê-se no meu estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo, Beth. Esta letra, nas noites de lua cheia, confere-me poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas sujeita-me aos de Aleph, que nas noites sem lua devem obediência aos de Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num sótão, jugulei ante uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da Lua, fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam. Conheci o que ignoram os gregos: a incerteza.»
Na realidade, os ricos não conhecem a incerteza e o jogo é sobretudo um expediente dos pobres sonharem com uma existência diferente.
Os pobres jogam, nesta sociedade, porque os convenceram que é a única forma de a sua vida ser melhor. Os ricos não precisam de jogar à raspadinha. Já mandam. A sua vida não está sujeita à sorte: têm o dinheiro para a comprar.
Vamos aos números da sorte:
De acordo com um estudo da Santa Casa da Misericórdia, realizado em 2019, ao longo de seis meses, são os mais pobres que mais jogam na raspadinha, representando 50% do total de jogadores.
Segundo o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, quem mais joga são mulheres entre os 35 e os 54 anos, com habilitações baixas e rendimentos entre 500 e 1000 euros mensais, e 2,5% tem comportamentos abusivos face ao jogo e 1% patológicos.
«A ironia é que a venerável instituição que garante ajudar os pobres, o faz com o dinheiro que lhes tira. A caridade faz-se à custa dos sonhos, dos mais miseráveis, de uma vida fora da pobreza.»
Os portugueses gastam 4,7 milhões de euros por dia em raspadinha. São 160 euros por pessoa, por ano (dados de 2020 de um estudo da Universidade do Minho).
A Santa Casa da Misericórdia recebeu 1600 milhões de euros brutos, em 2018, dos vários jogos de azar que vende.
A ironia é que a venerável instituição que garante ajudar os pobres, o faz com o dinheiro que lhes tira. A caridade faz-se à custa dos sonhos, dos mais miseráveis, de uma vida fora da pobreza.
Mas os dados não são apenas viciados no tabuleiro da sorte. Vejamos a justiça. Há uns anos, o Tribunal da Relação do Porto deu pena agravada a um homem que roubou 15 chocolates, com o valor de 23,85 euros. O homem entrou na sala de audiência condenado a 90 dias de trabalho social, saiu dela com um ano de pena suspensa de prisão.
Recentemente, a mesma justiça permitiu que João Rendeiro escapasse à prisão, deixando-o usar os 20 milhões de euros depositados em offshores para ir para um país sem acordo de extradição com Portugal.
Bertolt Brecht, no Círculo de Giz Caucasiano, falava que a justiça prussiana era tão lenta que uma ama de leite, que contestou o pagamento de uma família nobre, conheceu a sentença quando o bebé já era coronel dos hussardos. Em Portugal, a justiça em relação aos crimes dos ricos é ainda mais lenta que na peça do dramaturgo comunista: nunca chega a acontecer.
Há mais de 12 anos, 82% dos inquiridos num estudo sobre «A Qualidade da Democracia em Portugal: a Perspectiva dos Cidadãos» afirmaram que o acesso à justiça em Portugal é desigual entre ricos e pobres.
Desde esse tempo, é evidente que a desigualdade aumentou na nossa sociedade e que quem trabalha tem cada vez menos poder na justiça, na economia e na vida; e, como sabemos, a raspadinha não serve. É mesmo uma questão de virar completamente o tabuleiro do jogo.
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