Não é possível perceber o que está a acontecer hoje na estiva do Porto de Lisboa sem ver o processo no seu desenvolvimento histórico. O ponto de partida dessa história tem que ser dado no longo período em que a profissão da estiva esteve totalmente precarizada. A maioria dos estivadores juntavam-se em praças de jorna para serem contratados ao navio ou ao dia, naquilo que em Lisboa ficaria conhecido como a Casa do Conto – de «eu hoje conto».
Vencer essa precariedade, garantir um rendimento justo e estável, e condições de trabalho dignas e seguras, foi sempre uma prioridade dos estivadores. O conceito de efectivo portuário (ou contingente portuário) nasce para satisfazer essa necessidade. Permitia determinar o colectivo de trabalhadores necessário para assegurar o funcionamento do Porto e assegurar a esses trabalhadores condições similares a um trabalhador efectivo, apesar de muitos deles trabalharem para diferentes empresas ao longo de um mesmo mês.
A lógica seria que esse contingente estivesse localizado na Administração Portuária. Mas com a liberalização dos anos 90 nascem as empresas de trabalho portuário, detidas pelo conjunto das empresas privadas de estiva (e nalguns casos, também pelos sindicatos), sendo que o efectivo portuário era um só, correspondendo ao conjunto dos trabalhadores nas empresas de estiva e na Empresa de Trabalho Portuário (ETP).
Como a ETP não tinha fins lucrativos, era detida pelos seus clientes (e trabalhadores, nalguns casos), só havia uma por porto e permitia alguma flexibilidade na gestão da força de trabalho, a situação atingiu um certo equilíbrio, que beneficiava os patrões, mas também permitiu aos estivadores melhorarem as suas condições de trabalho e as suas remunerações.
Entretanto, a correlação de forças na sociedade portuguesa alterou-se em benefício do patronato, e chegou o momento em que o poder económico decidiu da necessidade de destruir o equilíbrio criado nos portos. Encarregou-se então o poder político ao seu serviço (PS/PSD/CDS na altura, agora há mais uns penduricalhos) de introduzir uma alteração na lei do trabalho portuário para degradar direitos e facilitar os ataques ao próprio conceito de efectivo portuário.
«Entretanto, a correlação de forças na sociedade portuguesa alterou-se em benefício do patronato, e chegou o momento em que o poder económico decidiu da necessidade de destruir o equilíbrio criado nos portos.»
Mas, ainda antes da alteração da lei, o patronato começou a lançar mão a um mecanismo mil vezes testado noutros sectores de actividade para limpar passivos e obrigações com os trabalhadores: a insolvência fraudulenta. Aqui facilitado pelo facto de nas ETP os seus donos serem simultaneamente os seus clientes, pelo que bastava uma desactualização das tarifas para criar um saldo negativo que, acumulando-se, acabaria por levar a empresa à falência, destruindo nessa falência as dívidas aos trabalhadores e ao Estado criadas pela subfacturação. E permitindo aos donos da ETP criar, ao lado, uma nova ETP, limpinha, contratando trabalhadores mais baratos e sem direitos. Tudo feito com base na lei e tudo ilegal, e até criminoso!
Paralelamente, a própria União Europeia queria aumentar a taxa de exploração nos portos. Como reconheceu o secretário de Estado de serviço, em Novembro de 2011, quando numa entrevista à publicação Transportes em Revista, a propósito da «reforma» do trabalho portuário, disse: «Vamos ter um problema porque o nosso país vai ser o "balão de ensaio" daquilo que a Comissão Europeia pretende fazer no mercado europeu.»
Fizeram o primeiro teste em Aveiro. Numa operação de chantagem sobre os trabalhadores e as suas organizações representativas, exigiam que estes aceitassem o despedimento de 30% dos trabalhadores, brutais reduções salariais nos restantes e o fim da contratação colectiva, ameaçando com a insolvência da empresa caso os trabalhadores recusassem. Face à firme recusa dos trabalhadores, avançaram para a insolvência da ETP de Aveiro.
Depois avançaram para Lisboa.
A 30 de Junho de 2013, numa pergunta do PCP ao ministro da Economia da altura, era feito o alerta sobre a falência fraudulenta que estava a ser preparada no Porto de Lisboa e criticava-se a passividade do Governo relativamente a esse processo. O Governo nunca respondeu às perguntas então feitas, mas elas aí estão a demonstrar quão preparado foi o processo de insolvência que está neste momento a decorrer. E o grau de cumplicidade do poder político com essa insolvência.
A primeira pergunta colocada nessa altura era: «Que medidas já tomou a ACT [Autoridade para as Condições do Trabalho] para impedir as sistemáticas violações da lei pelo patronato no Porto de Lisboa?» Não foi respondida, mas nenhuma entidade pública – nem o Governo, nem a ACT, nem a Administração do Porto de Lisboa (APL) que tinha a obrigação de vigiar o funcionamento da ETP-L – tomou qualquer medida para travar o plano do patronato.
A segunda pergunta marcava a diferença entre a luta de classes – inevitável – e o banditismo de uma actuação patronal que pisava a lei com a cumplicidade das autoridades públicas: «Temos consciência de que este Governo nunca reconhecerá que a verdadeira solução para o desenvolvimento dos portos passa pela nacionalização das ETP e por uma lei do trabalho portuário que salvaguarde a existência de um efectivo portuário e a estabilidade dos seus postos de trabalho. Mas o Governo não pode ser cúmplice do processo de liquidação intencional das actuais ETP por se tratar, confirmando-se os indícios existentes e já publicamente expostos, de processos do foro criminal.»
A terceira pergunta teve também ela como única resposta a prática governativa: «Vai o Governo continuar a estimular uma política de confronto com os trabalhadores portuários, ou vai, como o exige a lei e recomenda o interesse nacional, intervir no sentido de promover o primado da contratação colectiva?»
A lei do trabalho portuário acabaria por ser aprovada pela maioria PSD/CDS. E foi depois mantida pelo PS – que chumbou as tentativas de a alterar. Da mesma forma, o plano criminoso da insolvência fraudulenta da ETP-L começou nos tempos de má memória de um tal Sérgio Monteiro, mas seria já com Pedro Nuno dos Santos e o PS na Barbosa do Bocage1 que o patronato da estiva conseguiu finalmente decretar o despedimento colectivo dos estivadores do Porto de Lisboa e a insolvência da ETP-L.
«Este processo ilustra bem o que é a política de direita, anti-revolucionária, anti-democrática, contrária à Constituição e aos ideais de Abril, disposta a violar todas as leis para satisfazer as necessidades do capital.»
A hipocrisia do ministro brilhou então na Assembleia da República. Com argumentos como que tanto defendia os trabalhadores despedidos da A-ETPL, como os que agora querem trabalhar e são impedidos pelos primeiros (ou seja, que na luta de classes devemos permanecer neutros entre o piquete de greve e os fura-greves arregimentados pelo patrão para o furar). E contando com a morosidade dos tribunais, e a necessidade diária dos trabalhadores se alimentarem, lá defendia que os tribunais iriam decidir e era preciso esperar que decidissem – como se as autoridades públicas, perante um crime que está a ser cometido à sua frente, devessem ficar paradas à espera de uma decisão dos tribunais.
Para deixar o ministro completamente exposto, os tribunais, entretanto, falaram e não disseram o que o Governo e os patrões queriam ouvir. Mas o grau de cumplicidade objectiva entre Pedro Nuno dos Santos e o patronato da estiva é tão grande que, agora, ambos fazem de conta que os tribunais não falaram e continuam a tentar sabotar a decisão de não permitir a insolvência da ETP-L.
É que a última decisão do Tribunal de Lisboa (2/1/2022) reconhece a legalidade do plano de viabilização aprovado para a ETP-L (contra a opinião dos seus proprietários e perante o recurso destes), por iniciativa dos seus trabalhadores (e principais credores).
E reconhece mais: a perspectiva de a massa insolvente «vir a obter uma receita de 1 338 594,02 euros com a procedência do pedido de indemnização civil deduzido contra os directores e associados da A-ETPL». É evidente que muita tinta correrá nos processos judiciais que julgam a insolvência fraudulenta da ETP-L e a acusação de danosa à gestão que a antecedeu. E que a balança da justiça está – no geral – muito inclinada a favor do patronato e do seu maior poder de fogo.
Mas, o mesmo Governo que há dois anos dizia que ia deixar os tribunais falarem não pode continuar a fingir não os ouvir. A ETPL foi viabilizada, está a tentar laborar com o alvará cedido pela APL, onde os trabalhadores são colocados em escala.
Há uma lei e um CCT para cumprir, mas a entidade patronal, com o apoio do Governo, não está a respeitar a decisão dos tribunais e continua a fazer o que na prática é um lock-out (proibido na lei e na Constituição), e continua a barrar a entrada dos trabalhadores da ETP-L nos terminais. Bruno Dias, deputado do PCP, coloca a Pedro Nuno dos Santos, oito anos e meio depois, as mesmíssimas perguntas escritas que então havia colocado a Sérgio Monteiro, denunciando a cumplicidade do Governo e exigindo o respeito pelas leis da República.
Este processo ilustra bem o que é a política de direita, anti-revolucionária, anti-democrática, contrária à Constituição e aos ideais de Abril, disposta a violar todas as leis para satisfazer as necessidades do capital. É que só há uma razão para que o Governo da República Portuguesa aceite chafurdar no lodo desta forma: para garantir que a multinacional turca, que hoje domina as empresas de estiva no Porto de Lisboa (e em Portugal), possa ganhar mais uns milhões retirados do aumento da exploração dos estivadores.
- 1. [1]Para quem já estranhava a mistura do grande poeta sadino nestas porcarias de outro Estuário, fica a informação de que a Rua Barbosa do Bocage é onde se situa a sede do Ministério das Infraestruturas.
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