Há umas semanas, num sábado à tarde, tive de apanhar um comboio para Lisboa. Apesar de, agora, esporádica, fiz esta viagem diariamente durante um ano e meio. Uma das vantagens de fazer a chamada linha da Azambuja no sentido inverso ao do movimento pendular laboral em hora de ponta é a certeza de irmos sentados a observar a paisagem. De um lado, os canaviais, os sapais, o brilho do sol sobre o Tejo e a Lezíria, lá ao fundo, irradiando uma luz quase mística, sugerindo uma vida de bucolismo em que o tempo passa lentamente por entre os dedos. Do outro lado, mal o comboio se afasta desse desconfortável reduto cosmopolita – a Gare do Oriente –, surgem os primeiros sinais de três décadas de uma desindustrialização que atirou a região a norte da capital para uma profunda e imparável crise económica, social e cultural.
As paredes das fábricas em ruínas são preenchidas com graffiti ou outras pichagens mais preguiçosas. Ao lado, armazéns de material mais recente e precário acolhem pequenas e ambiciosas empresas de logística. À medida que nos vamos afastando, os armazéns de logística vão crescendo sem nenhum sinal de vida.
Enquanto caminho para a estação, recordo esse quotidiano que me obrigou a decorar as cicatrizes do concelho onde nasci e trabalho. Na parte de trás da estação, a avenida é um rio estranhamente sereno, uma tarde lânguida e quente e o sábado alheio às carruagens dos comboios de Portugal. Já na plataforma, procuro uma sombra, sem sucesso. Os bancos são insuficientes e as estruturas de abrigo não conseguem evitar o sol da tarde (nem o temporal dos invernos).
À estação vai chegando cada vez mais gente. Os coletes, as fardas, as mochilas, os sacos, os rostos cerrados – a bagagem pesada da invisibilidade, lembrando-me a Multidão do pintor Rui Filipe. Vai dar entrada na linha número dois o comboio proveniente da Castanheira com destino a Lisboa – Oriente.
E então entram, entramos todos, fugindo ao sol de junho. Quem perder este, só daqui a uma hora: esperar um comboio de regresso a casa, na linha da Azambuja, ou para chegar ao trabalho; o tempo limitado pela política de transportes; a vida adiada. Sempre à espera: do comboio, do autocarro no transbordo, de chegar a casa. «Esperando o aumento do ano passado para o mês que vem».
Mas o calor permanece dentro da carruagem. Os bancos livres são rapidamente ocupados. Ao meu lado, dois homens dormem refastelados, como se o corpo tivesse deixado de responder. As peles suadas tocam-se, inevitavelmente. Um grupo de homens ri, no meio deste vulcão em andamento (a refrigeração da cabine não é suficiente). Com o ruído não consigo perceber o que os anima. Próxima paragem: escala para outro lugar. Entram mais não-turistas. O riso do grupo animado desaparece, inevitavelmente. Uma mulher pousa dois volumosos sacos, um em cima do outro, num lugar que vagou e permanece de pé. Um rapaz, generoso, oferece-lhe os dois lugares que estava a ocupar, como se os estivesse a reservar para uma ocasião importante como esta (a solidariedade no meio do inferno não é oásis, também é inevitabilidade).
«Quem perder este, só daqui a uma hora: esperar um comboio de regresso a casa, na linha da Azambuja, ou para chegar ao trabalho; o tempo limitado pela política de transportes; a vida adiada. Sempre à espera: do comboio, do autocarro no transbordo, de chegar a casa.»
O calor agrava-se, tal como o cansaço nos olhos destes «passageiros clandestinos» no sábado lúdico dos outros, dessa esmagadora maioria de cidadãos comuns (acham eles) que passeiam nos jardins ou se recolhem em casa com as crianças porque lá fora está insuportável. Mas para os outros, invisíveis nos contratos temporários, não há esplanadas de um bar, nem pássaros estúpidos a esvoaçar. Não há sábado, só pele suada, peso nas pernas e comboios cheios, sem alternativa e ar condicionado.
A maioria não chegará ao Oriente. Ficarão a oriente do oriente do Oriente, noutra paragem que os levará a outras vidas. Reparo, então, que não voltei a pousar os olhos naquela paisagem tagana. Não creio que alguém o tivesse feito. Os olhos, até ao destino, vão virados para dentro aproveitando o movimento do comboio como uma anestesia. Descemos das carruagens na urgência de voltar a ser alguém, longe dos armazéns da logística, dos contratos temporários, das altas temperaturas e da falta de carruagens provocada pela falta de investimento na ferrovia. Agora, para o cais, sobem outros como nós.
Nesse dia regressei no último comboio, pouco antes da meia-noite. Depois, não haverá mais comboios de Lisboa até ao Carregado, nem para Sacavém. Durante seis horas, só o carro será uma alternativa de circulação nessa unidade coesa chamada Área Metropolitana de Lisboa, onde, em gabinetes bem distribuídos por quem sabe aproveitar um bom sábado, se tomarão decisões sobre quem pode e como pode circular, quem pode viver ou até respirar nas veias da metrópole. Subo até ao meu bairro, exausto. Estendo-me no sofá sem vontade sequer de ligar a televisão, pego numa cerveja que estala gelada no silêncio castrador do subúrbio e suspiro por uma boa noite de sono.
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