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A recente intervenção policial na FLUL

O que aconteceu sexta-feira na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa trata-se, de facto, de violação de uma reserva sagrada da democracia, que mancha gravemente a memória do Dia do Estudante.

CréditosRodrigo Antunes / Agência Lusa

Esta sexta-feira, os estudantes associados ao movimento Fim ao Fóssil que ocupavam a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL) foram alvo de repressão pela Polícia de Segurança Pública. O movimento estudantil Fim ao Fóssil, que visa alertar a sociedade civil para o desastre climático, ocupou a escola António Arroio, o Liceu Camões, a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o Instituto Superior Técnico e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Contudo, apenas na Faculdade de Letras o direito ao protesto foi suprimido com intervenção policial «por desobediência à ordem de dispersão». A PSP foi chamada ao local a pedido do diretor Miguel Tamen, após uma reunião da direção com os estudantes.

Esta intervenção tem mobilizado muitos fazedores de opinião e personalidades do mundo académico contra Miguel Tamen. Conscientes de que não é permitida a ação policial em universidades portuguesas, acusam o diretor de um rompimento com a sacralidade do espaço universitário que recorda os tempos fascistas da Crise Académica de 1962. Para os que começaram hoje a questionar publicamente o monopólio da violência legítima da polícia: bem-vindos. Mas é preciso olhar a brutalidade policial como um todo, não apenas quando esta invade as cidadelas seguras do saber académico. Para os que se ficam apenas por criticar Miguel Tamen, por ter deixado a repressão legitimada da polícia reentrar nos safe spaces das elites intelectuais, resta-lhes a hipocrisia.

A violência que está a chocar a comunidade académica em sua domus acontece frequentemente em alguns bairros suburbanos de Lisboa, não provoca escândalo nenhum, apesar de ser uma desproporcionalidade ainda mais acentuada do que agora se verifica. Muitas vezes não implica apenas a ordem de dispersão e a prisão injustificada de jovens, implica também a depredação/dano do espaço público e privado, bem como a agressão, a injúria e a morte, em ações absolutamente truculentas. Quem frequenta piquetes de greve da CGTP-IN sabe também que a repressão policial sobre a luta e a vida não começa aqui, começa à porta de grandes empresas, e abate-se sobre as classes trabalhadores em defesa dos seus direitos.

«Acontece que a violência que está a chocar a comunidade académica em sua domus acontece frequentemente em alguns bairros suburbanos de Lisboa, não provoca escândalo nenhum, apesar de ser uma desproporcionalidade ainda mais acentuada do que agora se verifica.»

O que aconteceu sexta-feira na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa trata-se, de facto, de violação de uma reserva sagrada da democracia, que mancha gravemente a memória do Dia do Estudante. O gesto de transposição de fronteiras consagradas da república e do espírito crítico é característico dos sintomas mórbidos do fascismo. Mas será também mórbido se os desmandos policiais começarem a ser discutidos a partir daqui, onde as vidas e as lutas se tornam mais importantes do que aquelas alicerçadas às zonas depauperadas e proletárias das cidades. Nestes espaços a criminalização da pobreza, com vetores de perseguição étnico-racial, há muito tempo tresanda ao odor bafiento dos velhos tempos, e ceifa diariamente os anseios da juventude por um mundo melhor.

Os tempos revolucionários que nos separam da crise de 1962, motivada por uma polícia fascista, obrigam-nos a prevenir reproduções mecânicas de contextos. Os contextos que nos diferenciam de estruturas policiais como a estadunidense e a brasileira também. Mas «não esqueçamos o essencial», tal como apresentado por um carequinha insuspeito: «a polícia em todo lado, em qualquer república – por mais democrática –, quando a burguesia está no poder, permanecerá uma arma infalível, de comando e protecção da burguesia.»1


Miguel Dores (antropólogo, realizador). O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

  • 1. V. I. Lénine, «They Have Forgotten the Main Thing», em Collected Works, Volume 24, Progress Publishers (Moscow, 1964), p. 350-353. Publicado originalmente no jornal Pravda No. 49, maio 18 (5), 1917. Tradução do autor do artigo.

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