Este não será nunca o Mundial das respostas simples para as realidades complexas. Aliás, se este Mundial nos pode oferecer alguma coisa - e pode - é o constante exemplo de que a realidade tem mais bases onde se assentar do que na nossa pressa de encontrar uma explicação que abarque tudo. Marrocos, que hoje será a primeira seleção árabe e africana a disputar uma meia-final de um Campeonato do Mundo de futebol, é só mais um exemplo. Este acontecimento histórico resulta de um conjunto de decisões, processos e deslocações que torna a seleção marroquina um conjunto singular.
Sendo esta a sua sexta presença num Mundial, Marrocos nunca se terá fixado como uma força dominante no futebol africano. O único título de seleções surgiu na Taça de África em 1976. Nos anos 80, ao atingir os oitavos-de-final no Mundial e ver duas das suas equipas vencer a Taça dos Campeões Africanos marcou o seu período áureo. Algo que, ao nível de clubes, apenas superou nos anos 90, com três títulos, e depois cerca de dezoito anos sem grandes feitos até que o Wydad voltasse a ser campeão africano em 2017 e 2022, este último sob o comando de Walid Regragui, o atual selecionador.
A história do selecionador é uma conjugação de diferentes histórias com um final feliz. Walid nasceu em França, onde estudou e fez praticamente toda a sua carreira de jogador profissional, ao mesmo tempo que mantinha fortes ligações ao país dos seus pais, com visitas anuais em tempo de férias. A sua chegada à seleção marroquina, enquanto jogador, acontece já como atleta da primeira divisão francesa e acabou por cimentar essa identificação que foi prolongada, no final da sua carreira, com o cumprimento de parte da sua formação técnica em Marrocos e uma carreira de treinador repartida entre Marrocos e o Catar, sempre marcado pelo sucesso.
A promoção a selecionador nacional aconteceu, no entanto, poucos meses antes deste Mundial, a 31 de agosto. Vahid Halilhodžić, o seu antecessor, teve um percurso marcado por vários conflitos com jogadores que acabaram por se afastar da seleção, como foi o caso com Ziyech e Mazraoui, duas das estrelas da caminhada no Mundial. A prestação na última Taça das Nações Africanas também foi pouco convincente, o que abriu portas para uma mudança de última hora que teve um enorme impacto nesta equipa. Não só com o regresso dos mencionados jogadores, bem como na transformação do jogo coletivo, que passou a ser marca de identidade para a nova realidade marroquina.
Ainda assim, este conjunto de jogadores é resultado de um processo de longo prazo. Primeiro com a construção da Academia de Futebol Mohammed VI, em 2008, que permitiu a existência de um trabalho de formação de jogadores mais organizado e mais focado nas exigências do futebol atual. Com esse trabalho de base a ser feito, a Federação marroquina organizou uma rede de identificação de jovens atletas com ascendência marroquina, apostando na sua diáspora para reforçar os quadros da seleção. Por isso, entre os 26 jogadores presentes no Mundial, Marrocos conta com 14 atletas nascidos na Bélgica, Países Baixos, França, Espanha, Itália e Canadá, cruzando-se com quatro atletas formados já na Academia nacional. Num prazo de catorze anos a realidade da seleção marroquina transformou-se radicalmente.
França e Marrocos, um encontro com diversidade
A progressão da seleção neste Mundial fez com que a equipa se encontrasse com vários países onde existem enormes comunidades marroquinas. Na fase de grupos, a Bélgica ficou pelo caminho. Já nas eliminatórias, a Espanha foi surpreendente ultrapassada. A história far-se-á perante a França, naquele que será o primeiro encontro oficial entre os dois países. Um protetorado francês até 1956, as relações entre os dois países sempre foram intensas. Desde o início do século XX que se assinala uma enorme comunidade marroquina em território francês, com números que superavam o milhão e trezentos cidadãos em 2008, entre nascidos em Marrocos e segunda e terceira geração já nascida em França.
Esta relação levará a que história deste jogo se faça num clima de intimidade. Com vários dos seus estágios de observação de jogadores jovens a serem realizados em França, os encontros entre equipas francesas e marroquinas são constantes. Olivier Giroud, avançado francês, e Walid Regragui, o selecionador marroquino, foram companheiros de equipa. A escritora Leila Slimani, em entrevista ao jornal L’Équipe, disse viver este momento com especial emoção. Se para ela, filha de um antigo presidente da Federação marroquina, este é um momento de concretização de uma velha aspiração de afirmação do futebol do seu país, por outro, sendo também cidadã francesa, verá com felicidade o avançar da equipa da França para atacar mais um título mundial.
Os bons exemplos não deixam, ainda assim, de ter que ser confrontados com as situações de exclusão da comunidade magrebina em França e o crescimento de tensões associadas ao fortalecimento da extrema-direita no território. Desde sábado passado, no momento em que as duas seleções garantiram o apuramento, que se lançou a ideia de um eventual choque de culturas. As imagens de confrontos e de intervenção policial pareceram enquadrar-se num discurso de violência que, ainda que sendo latente em espaços de exclusão social, não representam a totalidade da relação entre as comunidades. França e Marrocos são, hoje, duas equipas onde convive uma diversidade de origens debaixo da mesma bandeira. O futebol como oportunidade.
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