A primeira notícia é sobre a transferência para a ANA do Aeroporto Militar de Figo Maduro, apresentada como uma necessidade. São várias as notícias que, no essencial, abordam a (discutível) proposta da CTI (Comissão Técnica Independente) de a ANA usar Figo Maduro para um terceiro Terminal, e a alternativa preferida pela ANA de usar essa infra-estrutura essencialmente para parqueamento de aviões. Nenhuma notícia questiona o óbvio: Figo Maduro é uma infra-estrutura pública, que vai ser colocada ao serviço do lucro de uma multinacional francesa. Porquê? A troco de quê? As missões – inclusive de soberania – que essa infraestrutura realizava vão ter que ser realizadas por outra infraestrutura. Investimentos terão que ser feitos, custos públicos são inevitáveis.
Às vezes sente-se a insinuação de que tal oferta é para compensar a multinacional do «arrastamento da decisão sobre o novo aeroporto». O que é outra forma de falsificar a estória. Foi a Vinci que travou o processo então em curso, que estava decidido, com o estudo de impacto ambiental realizado e aprovado, e estava tudo consensualizado em Portugal aquando da privatização. Foi a Vinci que, assim que se apanhou com a concessão, disse que não queria retirar o aeroporto do centro da cidade de Lisboa e muito menos gastar parte dos seus ganhos a construir um novo aeroporto. E como o PSD/CDS lhe fizeram o favor de deixar o necessário buraco no contrato de privatização, a Vinci travou o início das obras em Alcochete. Cuja primeira fase já estaria construída hoje, não fora a Vinci.
O actual arrastamento do processo de decisão é posterior a tudo isto, e destina-se exactamente a disfarçar a realidade nua e crua atrás transmitida. Com a cumplicidade do PS. Ou seja, em vez de lhe retirar a concessão, como já devia ter feito, o Governo português ainda está a recompensar a multinacional com a oferta de uma nova infraestrutura pública. Que fácil é ser capitalista em Portugal.
«Nenhuma notícia questiona o óbvio: Figo Maduro é uma infra-estrutura pública, que vai ser colocada ao serviço do lucro de uma multinacional francesa. Porquê? A troco de quê?»
A completar a cumplicidade com este assalto, a comunicação social tem-se multiplicado em anúncios de que «a partir deste ano, a ANA vai ter de começar a partilhar com o concedente Estado uma percentagem das receitas». Face aos lucros da ANA (300 milhões em 2022, muito mais este ano, como veremos no final do ano), muitos leitores terão pensado: «epá, isto vai ser um maná, o Estado vai ficar rico!». E é aqui que importa ir à realidade concreta, àquela que está escondida em números que normalmente ninguém destaca.
Ora, o Orçamento do Estado para 2024 contém duas informações importantes relativas a este maná. Primeiro, traz uma estimativa de quanto será essa receita pública: em dez anos, a estimativa total é de 180 milhões de lucros entregues ao Estado. Nesse período, o lucro que a ANA enviará para a multinacional será de 3 a 5 mil milhões de euros. De facto, uma imensa alegria. Uma extraordinária vantagem: um conjunto de infra-estruturas públicas, vendidas por mil milhões de euros1, que já deram mais de mil milhões de lucro a quem comprou, e que nos próximos dez anos darão 180 milhões ao Estado Português e 3 a 5 mil milhões à multinacional. Restando ainda nessa altura uns 30 anos de concessão. Um maná.
Mas não comecem já a gastar aqueles 180 milhões prometidos para os próximos dez anos. É que neste momento, também informa a proposta de Orçamento do Estado, a Vinci já tem colocado em tribunais arbitrais pedidos para receber 214 milhões para Reequilibrar a Concessão. Parece mentira, eu sei.
Como é que alguém com uma concessão tão lucrativa como esta se atreve a pedir mais? Mas não só pedem, como manda o histórico dos tribunais arbitrais que irão receber. E se nada for feito para travar esta porta aberta ao assalto aos bens públicos, nos próximos dez anos muitas desculpas serão encontradas pela multinacional para ir a um tribunal arbitral buscar umas dezenas de milhões de euros do erário público.
O facto de a comunicação social dominada fingir não ver nada disto diz muito do seu papel em Portugal.
- 1. Sim, eu sei que eles dizem que venderam por 3 mil milhões. Mas é mentira. Foi por mil milhões. Os outros 2 mil milhões são dívida da ANA feita para comprar a concessão por 50 anos, que a Vinci assumiu e está – como é normal – a ser paga com os resultados da ANA antes do apuramento do lucro.
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