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O assassínio como instrumento político

As circunstâncias vividas em 15 de Julho na Pensilvânia remetem-nos, inevitavelmente, para outros acontecimentos do género praticados pela «sagrada democracia americana» e pela sua irmã gémea, a intocável «democracia liberal», depositária dos «nossos valores».

CréditosShawn Thew / EPA

Uma primeira advertência: como vivemos num clima de opinião única, em que as discordâncias com as decisões políticas e o diktat que vigora nas relações internacionais nos colocam automaticamente no campo do inimigo, esclareço que as linhas seguintes não correspondem a uma qualquer recôndita simpatia por Trump na cegada em que se transformaram as eleições presidenciais norte-americanas.

Donald Trump é um crápula político, um indivíduo irresponsável muito hábil em manipular o ultramontanismo e a indigência da chamada «América profunda» para tirar partido da decadência e da própria ameaça existencial a que as recentes administrações presidenciais, com destaque para as do Partido Democrático, conduziram o império e o mito da «sagrada democracia americana».

Donald Trump é um outsider do sistema; é uma criação da autoria de mecanismos perversos de autodefesa do regime ao explorarem os desastres constantes da gestão norte-americana nas questões internacionais e, sobretudo, o desleixo para com os assuntos internos. A sociedade dos Estados Unidos está em falência política, económica, social e no domínio das infra-estruturas, situação que torna fácil a manipulação do descontentamento e da insegurança por um populista a quem não faltam as capacidades mobilizadoras e comunicacionais, sobretudo quando dirigidas aos extractos populacionais, talvez maioritários, que roçam a fronteira do analfabetismo funcional; e que também não tem carências de dinheiro para despejar, sem retorno garantido, em duas dispendiosíssimas eleições presidenciais consecutivas. O candidato republicano, odiado pelas elites tradicionais do partido por sentirem ameaçadas antigas e proveitosas mordomias garantidas pela porta giratória entre os cargos públicos e os conselhos de administração privados, depende muito menos dos doadores do que o seu rival Joseph Biden. Eles são igualmente corruptos, mas enquanto Biden passou a longa carreira nos gabinetes da política, mais motivado por um narcisismo associado à imagem representativa, expansionista, colonial e militar do Estado do que pela actividade económica pessoal directa – missão que delegou na família –, Trump tratou muito bem da vida em gigantescos negócios imobiliários, actividades especulativas garantidas pelo sistema e na rapina das estruturas estatais, por definição ao serviço dos oligarcas. Podre de rico, pode esbanjar rios de dinheiro para cultivar o narcisismo e satisfazer clientelas que se têm sentido menos abençoadas pela política dita «progressista» e de «esquerda» de que se ufana o Partido Democrático.

Ao fim e ao cabo, as elites globalistas do império, usufruindo das convenientes e velhas práticas garantidas por um complexo militar-industrial a salvo de sobressaltos que perturbem a rotina de dispôr do mundo a seu bel-prazer, está alarmada perante um competidor aparentemente «diferente», susceptível de as tirar do sossego.

Trump não é um fundamentalista globalista, embora seja um liberal-fascista à sua maneira, alinhado sem reservas com o sistema político, económico, social e militar coberto pela inquestionável «democracia americana» padronizada na «democracia liberal», única e indiscutível no chamado Ocidente colectivo.

Trump e os cúmplices

O reconhecimento ilegal da «unificação» de Jerusalém pelo presidente dos Estados Unidos da América é uma consequência lógica, e previsível, do desprezo internacional com que são encarados os direitos dos palestinianos – uma constante vergonhosa da história dos últimos 70 anos.

Donald Trump e Benjamim Netanyahu
CréditosDebbie Hill Pool/EPA / Agência Lusa

Não é a primeira violação do direito internacional cometida por uma administração norte-americana; por certo, sendo quem são os gestores de Washington, não será a última.

Porém, é importante não separar a árvore, gravemente contaminada, da floresta de enganos a que pertence.

Donald Trump anunciou a decisão, mas não está sozinho. Acompanham-no, além do primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, o seu próprio genro, Jared Kushner, sintonizado com o sionismo expansionista dominante e que foi encarregado, pelo presidente, de «solucionar o conflito israelo-palestiniano»; e Sheldon Adelson, senhor do jogo de Las Vegas e Macau, poderoso judeu sionista em cujo «filantropismo» se enquadram o financiamento da emigração para Israel e também uma choruda contribuição de 100 milhões de dólares para a eleição de Trump. Atenção agora retribuída, segundo as más-línguas, através da decisão envolvendo Jerusalém.

Embora este petit comité e respectivas ramificações tenha um poder próprio capaz de fazer validar comportamentos terroristas esmagadores contra a humanidade – nunca as variantes fascistas de governo em Washington e em Israel foram tão simultâneas e convergentes como agora – não lhe podem ser assacadas todas as responsabilidades pelo atentado contra a cidade santa das três religiões monoteístas.

Uma cidade que a chamada «comunidade internacional», ignorando ostensivamente uma realidade que ajudou a construir, continua a proclamar como futura capital de dois Estados: o de Israel, a oeste; e o da Palestina, a leste.

As raízes da hecatombe que agora se abateu, com redobrado vigor, sobre os palestinianos, vítimas dos jogos sangrentos da diplomacia mundial, estão precisamente no comportamento revoltante e desprezível das instâncias internacionais e dos governos mais influentes no mundo.

Trump e os seus parceiros directos limitaram-se a cavalgar a onda, ao sabor da maré favorável que lhes foi proporcionada pela conjuntura mundial e regional construída ao longo de décadas.

Em termos práticos, o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel decidido pelos Estados Unidos liquida o chamado «processo de paz israelo-palestiniano»… Que já estava liquidado. Aliás existiu apenas durante os meses das genuínas conversações de Oslo, até que foi assinado solenemente, nos jardins da Casa Branca, já sob o patrocínio corruptor de Bill Clinton, em 13 de Setembro de 1993.

Este foi o acto que selou a condição de nado-morto do «processo de paz», quando os Estados Unidos assumiram, através dele, um papel simultâneo de mediador e representante de uma das partes. Não há ilusões de paz que resistam a um processo de guerra que impõe, desde logo, a submissão de uma das partes em conflito, por sinal a mais fraca, indefesa e desprotegida.

Em termos ainda mais práticos, o reconhecimento norte-americano de Jerusalém como capital de Israel vem dar asas e uma «legitimidade» – legalmente falsa, mas reforçada no terreno – ao processo de limpeza étnica e de terrorismo urbanizador que os governos de Israel praticam há muito na cidade, sob os olhos de todo o mundo.

« Não há ilusões de paz que resistam a um processo de guerra que impõe, desde logo, a submissão de uma das partes em conflito, por sinal a mais fraca, indefesa e desprotegida.»

Assassínios e prisões arbitrárias, deportação de famílias, derrube de casas, desmantelamento de bairros inteiros, como o de Silwan, apagamento de referências do modo de vida e da cultura árabe, restrições à prática do islamismo, eliminação radical das reminiscências fronteiriças entre os dois sectores são episódios corriqueiros que fazem parte do dia-a-dia de Jerusalém durante os últimos 50 anos.

Dividida à luz do direito internacional, projectada como capital de dois Estados para um futuro sempre adiado; violenta e ilegalmente «unificada» em termos reais, através de uma cadeia ininterrupta de factos consumados e na qual Trump integrou agora um poderoso elo de consolidação.

A anexão e judaização progressiva de Jerusalém é o topo de um processo em desenvolvimento contínuo desde que o regime sionista ocupou militarmente, em 1967, os sectores da Palestina administrados pelo Egipto – a Faixa de Gaza – e pela Jordânia – Cisjordânia e Jerusalém Leste. Ocupação que se estendeu aos Montes Golã – território sírio – e à Península do Sinai, posteriormente devolvida ao Egipto.

A partir da ocupação, como desfecho da Guerra dos Seis Dias, as resoluções das Nações Unidas impuseram a Israel a retirada de todos os territórios tomados em 1967, incluindo Jerusalém Leste, em simultâneo com o respeito pelas Convenções de Genebra, designadamente dos princípios que se relacionam com o respeito pela essência dos territórios e dos povos sob ocupação, incluindo a sua estrutura demográfica. Ou seja: o conjunto das leis internacionais aplicadas aos territórios palestinianos, incluindo Jerusalém Leste, proíbem liminarmente a colonização.

Em 1993, o «acordo de paz» assinado pelas instâncias representativas de Israel e da Palestina, neste caso a OLP, assumiu a progressiva desocupação dos territórios sob controlo israelita no sentido de um estatuto final garantindo a existência de dois Estados, o de Israel e o da Palestina, com capitais em Jerusalém, nos sectores oeste e leste.

No entanto, a partir de 1967 Israel embrenhara-se num processo gradual de colonização de Jerusalém Leste, da Cisjordânia e de Gaza, enquanto a chamada «comunidade internacional», olhando para outro lado e permitindo que se fizesse letra morta das resoluções da ONU, repetia a necessidade de respeitar os direitos dos palestinianos; depois do acordo de 1993, o recitativo defendendo «a solução de dois Estados» tornou-se uma espécie de mantra sem sentido entoado nas intervenções de qualquer dirigente mundial – secretários-gerais das Nações Unidas incluídos.

Através da colonização, o regime sionista dedicou-se a concretizar o que lhe era expressamente vedado pelo direito internacional: consolidar a ocupação, transformando-a gradualmente em anexação definitiva.

Em 1980, Israel declarou unilateralmente a unificação de Jerusalém como capital, acelerando na cidade a limpeza étnica e a implantação de medidas e estruturas judaizantes que já se tinham tornado comuns na Cisjordânia. Os dirigentes mundiais limitaram-se a não reconhecer oficialmente a decisão, mantendo as embaixadas em Telavive, a capital oficial. Nada mais aconteceu susceptível de obrigar Israel a mudar de rumo.

A «unificação» foi reforçada com a construção de uma barreira de colonatos, na verdade autênticas cidades exclusivamente judaicas que cortaram as comunicações viárias entre Jerusalém Leste e a Cisjordânia, isolamento que se tornou praticamente total com a edificação do muro de separação construído nas últimas duas décadas.

«Em boa verdade, o passo dado por Trump não foi tão ousado e isolado como possa parecer aos incautos.»

Ariel Sharon, um dos notáveis do fascismo sionista e primeiro-ministro, autor de repugnantes crimes contra a humanidade como as guerras no Líbano e o massacre de Sabra e Chatila, declarou simbolicamente a colonização como política oficial do regime ao mudar a sua residência para um colonato construído no interior das muralhas da Cidade Velha de Jerusalém, no sector leste.

Enquanto isso, os principais dirigentes mundiais, dos Estados Unidos à União Europeia, Rússia e China, insistiam verbalmente no respeito pela «solução de dois Estados»; de tempos-a-tempos, os dirigentes sionistas repetiam que não tencionavam respeitar as resoluções da ONU, por serem «parciais» e porem em causa «a segurança de Israel».

E acusavam a parte palestiniana de «boicotar o processo de paz« tornando-o dependente do fim da colonização, estratégia em que tiveram apoio frequente de todas as administrações norte-americanas, da União Europeia e governos dos respectivos Estados membros.

Gradualmente, o processo de colonização foi liquidando as possibilidades de criação de um Estado Palestiniano viável nos territórios ocupados em 1967. A Faixa de Gaza, cercada do lado israelita e do lado egípcio, foi transformada pelo regime sionista num campo de reclusão onde quase dois milhões de seres humanos são tratados como animais a abater; a Cisjordânia é uma manta de retalhos na qual as comunidades palestinianas ficaram progressivamente isoladas umas das outras, separadas pelo muro israelita, pelos colonatos propriamente ditos e correspondentes estruturas de apartheid, como são as redes viárias exclusivas para os colonos, as teias de postos militarizados de «segurança».

Os palestinianos de Jerusalém Leste, da Cisjordânia e Gaza ficaram circunscritos a bantustões isolados pelas estruturas colonizadoras, muitas vezes sem acesso às fontes de sobrevivência como água e terrenos agrícolas, sujeitos estes às pilhagens praticadas pelos colonos, com protecção do exército de ocupação.

Os dirigentes mundiais, entidades como a ONU, a União Europeia e o tão invocado «quarteto», presidido pelo desqualificado político e verdadeiro criminoso de guerra Tony Blair, continuaram a repetir por inércia as frases que foram perdendo sentido enquanto Israel construía este cenário, sem que nada perturbasse a sua estratégia – apesar do conteúdo sanguinário desta.

Até que Donald Trump associou os Estados Unidos a Israel na “unificação” de Jerusalém, uma agressão primária contra as normas internacionais mas que, paradoxalmente, corresponde à realidade no terreno. Na verdade, todo o processo sistemático de destruição dos direitos dos palestinianos tem assentado numa interminável sucessão de factos consumados na qual se diluiu a legalidade internacional e, com ela, a tão ainda falada “solução de dois Estados”.

Vieram Macron, Merkel, May, Renzi, até o diligente Santos Silva e mesmo o prolixo Juncker condenar Trump e assegurar que os seus países e a União Europeia não vão transferir as representações para Jerusalém. Menos contundente, mais igual a si mesmo, esteve o secretário-geral das Nações Unidas, recatadamente sintonizado com os comportamentos negativos e habituais da organização – a sua acefalia, a desoladora ineficácia e correspondente contemporização com as agressões às leis internacionais, quando cometidas pelos membros mais poderosos, ou com sua cobertura.

Das reprimendas a Trump saídas de Paris – entretanto sempre cavalheiresca no acolhimento a Netanyahu – de Londres, Berlim, Bruxelas ou Roma não rezará a História. O tempo as apagará, e depressa. Não tardará que Washington e o fascismo sionista revelem o empenhamento noutras tarefas guerreiras e desestabilizadoras do Médio Oriente, agora que não conseguiram extrair da agressão à Síria todos os proveitos que pretendiam. Quiçá desviando a mira para o Irão, o eterno sonho de Benjamin Netanyahu. Solidariamente activos com eles veremos então os parceiros de sempre, engolidas as discórdias passageiras, e não mais que verbais, sobre Jerusalém.

Em boa verdade, o passo dado por Trump não foi tão ousado e isolado como possa parecer aos incautos. Uma corte de cúmplices, inebriados com aventuras guerreiras, insensíveis ao desprezo que vitima os palestinianos e, através deles, a dignidade humana, ajudou a erguer o sangrento edifício de arbitrariedade e selvajaria internacional à medida de foras-de-lei como Trump e Netanyahu.

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Donald Trump vive da mentira, prega a aldrabice. Não é anti-guerra embora não tenha começado alguma. Mas tentou. Provocou o Irão assassinando o general Suleimani, uma das figuras mais proeminentes do regime de Teerão e que, na ocasião, desenvolvia diligências de paz na Ásia Ocidental. Bombardeou a Síria com saraivadas de mísseis, ocupou o Leste do país com tropas norte-americanas, alimentando ainda mais o estado de guerra e de golpe contra Damasco; ao mesmo tempo, montou um sistema de roubo de petróleo para benefício das transnacionais dos combustíveis. Forneceu armas ao regime nazi-banderista da Ucrânia até 2020, dando seguimento ao golpe da Praça Maidan montado pelo Partido Democrático e preparando o país para a guerra em curso. É apoiante fervoroso do regime genocida de Israel e concretizou duas violações grosseiras do direito internacional até então evitadas pelos próprios Estados Unidos: a anexação pelo Estado sionista do território sírio dos Montes Golã; e também reconheceu a «unificação» sionista de Jerusalém Leste através da transferência da Embaixada norte-americana de Telavive para a chamada «cidade santa». 

Trump é, em suma, outra faceta do sistema para que o sistema se mantenha, embora servindo clientelas que possam sentir-se marginalizadas dentro do Estado profundo, mas garantindo que nada será posto em causa no regime. E, tal como provou no primeiro mandato, não travará a decadência do império, embora tente aliviar problemas económicos internos decorrentes da política colonial, expansionista e de guerra exigindo aos países europeus da NATO um financiamento ainda mais gravoso das incomportáveis despesas da Aliança. 

Ajustes de contas

Donald Trump é tão fiel ao autoritarismo neoliberal e imperial como Biden, Obama, Bush pai e filho, Clinton, Reagan… Mas surge do exterior da classe política tradicional, onde pontificam os príncipes políticos democráticos e republicanos, convergentes nas decisões estratégicas susceptíveis de manter o sistema nos eixos globalistas. O candidato arrasta consigo dúvidas, incertezas e inquietações, parte delas relacionadas com as suas irreprimíveis tendências mitómanas e para a mentira. Os aldrabões políticos conhecem-se entre si e sabem como o exercício permanente da mentira pode ser escorregadio e incontrolável; por isso desconfiam de qualquer discurso ou atitude dos adversários. Verdadeiros impérios dentro do império, como a indústria do armamento e da morte – que talvez nunca tenha vivido tempos de tanta abundância – as corporações militares, da espionagem e da segurança não estão preparadas, ao cabo de tanta tranquilidade operacional e do funcionamento de tão bem oleados esquemas conspirativos e de intriga, mesmo conhecendo as consequências da primeira experiência – ou talvez por isso – para lidar com alguém de uma imprevisibilidade e de uma heterodoxia intrínsecas. 

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União Europeia ao lado de Trump contra a Venezuela

É importante, para memória futura e inevitável exigência de responsabilidades políticas e humanitárias, anotar os governos que, na Venezuela, virão a ser responsáveis por uma chacina de vidas humanas.

Encontro do Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, e do Secretário de Estado norte-americano Michael Pompeo, em Washington, Junho de 2018.
Créditos / US Department of State

Uma semana de atraso é caricata para funcionar como disfarce para uma subserviência rasteira anunciada. A União Europeia, com o governo português bem na linha da frente, segue a estratégia intervencionista e potencialmente fascista de Donald Trump na Venezuela. É importante, para memória futura e inevitável exigência de responsabilidades políticas e humanitárias, começar a anotar, um por um, os governos que virão a ser responsáveis por uma chacina de vidas humanas que poderá ser o resultado de uma de duas vias: a guerra civil, na esteira da Síria; ou uma ditadura fascista, a exemplo de Pinochet e alguns outros.

No seguidismo em relação à estratégia de Trump, a União Europeia assume a sua conivência com o golpe na Venezuela de uma maneira que contraria a maioria dos Estados membros da Organização dos Estados Americanos, apesar de esta entidade ser habitualmente considerada uma simples correia de transmissão dos desejos e interesses de Washington.

Do alto dos seus púlpitos ou na telegrafia dos seus twitters, os dirigentes da União Europeia dirão que não, nada têm com a decisão de Trump, porque o presidente norte-americano reconheceu Juan Guaidó ao mesmo tempo que este se autoproclamou, enquanto eles têm a boa vontade de dar uma semana a Nicolás Maduro para convocar eleições presidenciais. Caso contrário… reconhecerão Guaidó. Uma posição muito diferente, como se percebe; sabendo desde logo que Maduro não aceitará um ultimato para abdicar de um mandato constitucionalmente legítimo, assente em eleições democráticas, livres, não contestadas institucionalmente e realizadas apenas há oito meses. Poderiam até ter sido mais recentes, mas foram antecipadas para Maio de 2018 por exigência da oposição.

É interessante ouvir o titular das Necessidades exigir eleições democráticas e livres a Maduro. Sobretudo por ser o mesmo ministro a quem não consegue ouvir-se qualquer reparo ao actual governo fascista da Ucrânia, nascido de eleições com abstenção idêntica às presidenciais da Venezuela. Não por ter havido um qualquer «boicote» de qualquer oposição; tão só porque a Ucrânia estava – como está – em situação de guerra e cerca de meio país vive acossado pelo poder de forças armadas e milícias fascistas, razão de peso para os cidadãos não irem às urnas.

Se o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal e alguns dos seus parceiros, entre eles alguns com as mãos sujas de sangue na Síria, entendem que a liberdade e a democracia da Ucrânia são exemplares e a solução é repetir em Caracas o famoso golpe de Maidan, em Kiev1, não precisam de fingir que entre eles e Trump ainda vai uma semana de diferença.

Nada de novo a rolar

A linguagem própria da comunicação mainstream recusa-se a usar a expressão «golpe de Estado» para identificar o que está a passar-se em Caracas como resultado das tramas urdidas em Washington. Trata-se apenas, como dizem Trump, Bolton e Pompeo, enormes vultos das liberdades e dos valores democráticos, de «restaurar a democracia» na Venezuela. Um passo absolutamente necessário porque o presidente democraticamente eleito é «um usurpador», enquanto um autoproclamado «presidente interino», invocando a Constituição do país para a violar, é um «legítimo» chefe de Estado – mesmo que nunca se tenha candidatado a presidente e use o cargo de presidente do Parlamento, em que também se autodesignou, para se apropriar de atribuições de outros órgãos institucionais. Uma verdadeira lição de separação de poderes.

«Se o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal e alguns dos seus parceiros, entre eles alguns com as mãos sujas de sangue na Síria, entendem que a liberdade e a democracia da Ucrânia são exemplares e a solução é repetir em Caracas o famoso golpe de Maidan, em Kiev, não precisam de fingir que entre eles e Trump ainda vai uma semana de diferença»

Nada é novo neste mecanismo tão democrático. Passando, deste feita, ao lado da Ucrânia e fixando-nos apenas no «quintal das traseiras» dos Estados Unidos – a doutrina Monroe está de boa saúde e recomenda-se – «restaurações democráticas» assim sucedem-se há mais de dez anos na região.

Honduras

Muitos ainda terão na memória o caso das Honduras, em 2009, onde o presidente democraticamente eleito foi deportado para a Costa Rica, deposto pelo presidente do Parlamento com assessoria de outro grande democrata, John Negroponte – uma vida ao serviço do intervencionismo de sucessivos presidentes norte-americanos. Alguém que, também nas Honduras, mas noutra fase da democracia recomendada pelo Departamento de Estado, tinha aconselhado a criação de esquadrões da morte, mostrando assim uma vasta amplitude de meios ao dispor para atingir os fins pretendidos.

A partir de então, as Honduras vivem uma história de eleições falsificadas, mas todas elas aceites em Washington, Bruxelas, Paris, Berlim ou Lisboa como perfeitamente válidas, segundo os cânones da democracia. Viveu-se recentemente mais um episódio da saga, em que a manipulação foi tão grosseira que Washington e a Organização dos Estados Americanos demoraram um mês a validar os resultados. Mas validaram-nos – e nisso não verá o ministro Santos Silva qualquer ofensa à democracia, a legítima, a que proporciona os resultados que os democratas sem mácula consideram apropriados ao país.

Paraguai

Depois, em 2011, chegou a vez do Paraguai, onde um ex-bispo católico, à frente de uma vasta coligação progressista, teve a inusitada coragem de enfrentar séculos de poder dos terratenientes, os latifundiários.

O que foi ele fazer!?... Sob a batuta da embaixadora norte-americana, logo no Parlamento houve quem encontrasse maneira de transformar maiorias em minorias, legitimidade em impeachment presidencial; o ex-bispo retirou-se, substituído pelo seu vice-presidente, e o fascismo banqueiro e latifundiário reinstalou-se, um pouco mais benévolo que o do carniceiro Stroessner, mas fascismo social, militar, sob capa política «democrática». Nada que ofenda as sensibilidades do homem das Necessidades e dos seus parceiros de Lisboa a Budapeste, de Bruxelas a Varsóvia.

Equador, Brasil

A embaixadora norte-americana transitou de Assunción para Brasília e em terras brasileiras o Congresso, sintonizado com uma justiça muito justiceira, declarou o impeachment da presidenta e o vice-presidente subiu de posto.

Os acontecimentos daí resultantes, iniciados em fins de 2015, ainda estão em curso com novas e profícuas benfeitorias para a democracia, moldada esta em forma de Bolsonaro com o mesmo barro de que foi feito Trump. E para isso foi mesmo preciso prender Lula da Silva para não ganhar as eleições, uma vez que não tinha rival por próximo.

Em paralelo, o presidente progressista do Equador foi posto de lado e a contas com a justiça enquanto o seu vice-presidente assumia funções e foi agora um dos primeiros a dar a mão a Guaidó contra Maduro, o «usurpador».

Verdadeiramente independentes e soberanos, sobraram, na América Latina, a Bolívia – sempre sob várias ameaças – Nicarágua, Cuba e a Venezuela. A «troika da tirania», como tão apropriadamente a baptizou, recentemente, o conselheiro para a Segurança Nacional da administração de Donald Trump, John Bolton.

É contra esses países, e também contra o México, que agora se desviou perigosamente do guião, que está em curso a operação «restaurar a democracia». E o Brasil, o Paraguai, as Honduras e o Equador são bons exemplos de «democracias restauradas».

Petróleo e democracia

É um dogma: petróleo e democracia andam sempre de mãos dadas. E a relação é directamente proporcional, portanto quanto mais petróleo, mais democracia.

Sabemos bem que assim é. Na Arábia Saudita, por exemplo, onde existem as segundas maiores reservas petrolíferas; e no Koweit e Emirados Árabes Unidos, sétimo e oitavo no ranking dos mais dotados, como pode apurar-se na página 12 da publicação BP Statistical.

Conhecemos igualmente os casos de países onde não havia democracia e agora ela jorra abundantemente, para não haver infracções ao dogma que rege as coisas do mundo. Por exemplo, no Iraque e na Líbia, quintas e nonas maiores reservas mundiais, onde apropriadas guerras «restauraram a democracia» para franquear o acesso livre às riquezas do subsolo.

Mas houve e há casos onde abunda o petróleo e faltava, ou ainda falta, a inerente democracia que determina a sua partilha segundo o modelo transnacional.

Era assim no Brasil e no Equador, mas o problema está em vias de resolução. Sobretudo no Brasil, onde nos tempos de Lula da Silva foram detectadas reservas de petróleo que catapultaram o país para um surpreendente e apetitoso terceiro lugar do ranking – 200 mil milhões de barris, menos 66 mil milhões que a Arábia Saudita. Uma riqueza fabulosa que corria o risco de ficar ao serviço dos interesses egoístas do povo do Brasil, e não da grande irmandade mundial.

Como todos acabamos de perceber, agora que a Petrobrás vai a caminho do grande leilão mundial, a democracia e o petróleo deram as mãos também no Brasil. Tal como no Equador, pouco falado mas ainda assim o 19º país em reservas petrolíferas, do mesmo nível das que estão detectadas no México – onde a empresa pública petroleira, a Pemex, continua sob pressão para deixar de o ser.

Mas há um país onde existe uma situação intolerável, um caso em que o governo teima em manter nas mãos da população o usufruto das riquezas petrolíferas. E que riquezas!

Nada mais, nada menos, que a maior potência do mundo em reservas petrolíferas, com 300 mil milhões de barris, mais 37 mil milhões que a famosíssima Arábia Saudita, mais cem mil milhões que o Brasil.

A Venezuela!

Tanta riqueza não pode estar apenas na mão do povo de um país. É reparti-la, entregá-la às transnacionais que verdadeiramente conhecem o sector e o fazem verter para o mundo inteiro, tão democraticamente como ordenam o mercado e a inquestionável ordem neoliberal.

E o mercado é oprimido na Venezuela. Torna-se necessário «restaurar a democracia» para que ele se sinta livre e o petróleo jorre para todos. É simplesmente o que está a acontecer pelas mãos do eleito Guaidó, embora ninguém o tenha elegido para o cargo que ocupa e do qual se permite fazer ultimatos aos «usurpadores».

Lei eleitoral à medida

Juan Guaidó demonstrou, nas últimas horas, estar compenetrado do seu papel. E também ele dá ordens ao governo legítimo, tal como os senhores do mundo e da democracia, mas a genuína: ele exige eleições, mas que não sejam realizadas segundo o sistema legal em vigor mas com outro – que ele e os mentores externos ditarão, tal como mandam que se realizem eleições para que o golpe seja perfeito, isto é, não pareça um golpe.

Pelo que tem vindo a perceber-se, os interesses que fizeram avançar Guaidó já demonstraram que a sua democracia se constrói à base de ultimatos, arbitrariedades e jogos fraudulentos entre os conceitos de legitimidade e ilegitimidade.

Deduz-se, por isso, que não excluirão quaisquer meios para atingir os objectivos que já estabeleceram entre si.

Um deles é o recurso à agressão militar. Não tardará que Guaidó, fazendo uso dos poderes que lhe foram conferidos por interesses externos, chame países «amigos» como o Brasil, a Colômbia – que é parceiro da NATO – ou o Paraguai, para que reponham a «ordem democrática».

«Não será difícil vaticinar que tempos dolorosos se avizinham da Venezuela e dos povos da América Latina.
Mais difícil será prever como tudo irá acabar. Para todos os efeitos, já são conhecidos alguns responsáveis pelo que vier a acontecer. E o governo português não estará isento da sua quota-parte. A comunidade portuguesa na Venezuela bem poderá queixar-se da armadilha que lhe foi montada pelos que mandam em Lisboa»

Talvez, por este caminho, as pretendidas eleições decorram manu militari, como na Ucrânia, onde os resultados foram tão bons.

Ou talvez não.

Pode acontecer que as instâncias legítimas da Venezuela e o povo resistam às agressões, sejam elas políticas ou militares. E que não entreguem sem lutar o que tanto custou a conquistar.

Se os poderes externos insistirem, no horizonte está o pior dos pesadelos de um país, a guerra civil. Daí à carnificina não será preciso dar mais qualquer passo. Temos ainda diante de nós o caso da Síria, que se iniciou na sequência de ultimatos impostos a um governo legítimo e soberano, na sequência de manifestações orquestradas do exterior – como está abundantemente provado.

Ou, em alternativa, no horizonte está também a imposição de um regime fascista de onde nascerá, radiosa, a democracia.

Pode ainda acontecer, no limite, que o presidente legitimamente em funções na Venezuela, fazendo uso dos poderes que a Constituição lhe confere, peça socorro a países amigos, que os tem.

Não será difícil vaticinar que tempos dolorosos se avizinham da Venezuela e dos povos da América Latina.

Mais difícil será prever como tudo irá acabar. E que nunca mais nenhum governo da União Europeia tenha o desplante e a ousadia de queixar-se dos crimes de Donald Trump.

Para todos os efeitos, já são conhecidos alguns responsáveis pelo que vier a acontecer. E o governo português não estará isento da sua quota-parte. A comunidade portuguesa na Venezuela bem poderá queixar-se da armadilha que lhe foi montada pelos que mandam em Lisboa.

  • 1. Em 2017 passou desapercebida uma notícia transmitida pela Reuters sobre a realização na Venezuela, nos meios ligados à oposição de direita, de sessões de cinema onde se passava um documentário favorável ao golpe de Maidan, com o objectivo de ensinar aos jovens direitistas venezuelanos as técnicas de armamento e a táctica de luta de rua utilizada pelos grupos pró-Maidan. A notícia não informa a mão generosa que propiciou tal peça formativa, mas não é difícil adivinhar.
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As ondas de choque que a situação está a provocar, porém, têm uma amplitude muito maior do que seria previsível. Isso tornou-se evidente pela dimensão dos ajustes de contas, de tal maneira desestabilizadores que conduziram à situação extrema do recurso ao método de eliminação física de rivais políticos. Está hoje provado: as elites de poder na América do Norte e na União Europeia não se escusam a matar, ou no mínimo a tentar matar.

A exemplo do que ainda se passa com o assassínio de Kennedy,  cometido há 62 anos, transcorrerão talvez outras seis décadas até que saibamos o que aconteceu no passado 15 de Julho na Pensilvânia, quando um «lobo solitário», sempre um «lobo solitário», tentou matar Trump nas barbas dos valentes SWAT e uma miríade de bem artilhados snipers dos serviços secretos.

Desta vez não foi «bolsonarada», como aconteceu numa campanha eleitoral brasileira. Os tiros foram para matar e, diz-se, o candidato foi salvo pelo desvio da bala no teleponto. A mesma sorte não tiveram uma espectadora abatida e dois feridos graves, que não mereceram uma palavra de respeito e solidariedade nos discursos oficiais, incluindo o de Biden, ou nos comunicados de instituições policiais e de espionagem.

O «lobo solitário», um jovem de 20 anos cuja curta vida nada explica sobre as suas reais intenções, e por coincidência um «republicano», não ficou vivo para esmiuçar os motivos do seu acto, graças à acção, então já eficaz, dos snipers de serviço. Tal como aconteceu a Lee Oswald, o presumível assassino de Kennedy, logo a seguir abatido por um indivíduo chamado Jack Ruby, o qual, por sua vez, não sobreviveu a meia dúzia de horas na prisão.

Os proprietários da «sagrada democracia americana» não tiveram, naturalmente, nada a ver com a falhada eliminação de um estorvo chamado Donald Trump. Manifestaram indignação e também solidariedade para com o candidato, como faria qualquer crocodilo comovido, e proclamaram solenemente uma grande verdade comprovada todos os dias: a violência não faz parte do modo de vida nos Estados Unidos.

Diferente, e de sentido contrário, fora o tom de discursos e comentários proferidos antes do atentado por altos responsáveis do Estado e do Partido Democrático.

Por altura das comemorações sectárias do 80.º aniversário do Desembarque na Normandia, enquanto Biden discursava em França os seus serviços de campanha lançaram um vídeo no qual o presidente-candidato proclama que «não há nada mais sagrado que a nossa democracia, mas Donald Trump está pronto para queimar tudo». 

Meio ano antes, o mesmo Biden proclamara que «Trump e os seus republicanos MAGA estão determinados em destruir a democracia na América; não podemos deixá-lo vencer». Será que encontramos aqui um reconhecimento implícito de que as eleições de 2020 foram efectivamente uma burla, «não o deixando» vencer? 

«A exemplo do que ainda se passa com o assassínio de Kennedy,  cometido há 62 anos, transcorrerão talvez outras seis décadas até que saibamos o que aconteceu no passado 15 de Julho na Pensilvânia, quando um «lobo solitário», sempre um «lobo solitário», tentou matar Trump nas barbas dos valentes SWAT e uma miríade de bem artilhados snipers dos serviços secretos.»

Na véspera do atentado na Pensilvânia, numa deslocação ao Michigan, o presidente começou por chamar «criminoso condenado» ao seu rival para acrescentar que «o mais importante, e quero dizer isto do fundo do meu coração, é que Trump é uma ameaça a esta nação».

A verborreia justiceira de Biden parece ser directamente proporcional à sua decadência cognitiva, mas o conteúdo das apreciações sobre o rival parecem não estar afectadas por outro tipo de maleita que não seja a demência política. Sobre a corrente MAGA (Make America Great Again – Tornemos a América grande de novo) de apoio a Trump, Biden considera-a «um movimento extremista que não partilha as crenças básicas da nossa democracia». 

O apogeu da obsessão do presidente em exercício contra o rival aconteceu precisamente uma semana antes do atentado, em 8 de Julho: «É tempo de colocar Trump como alvo. Não podemos passar dia após dia sem explicar o que está a fazer e temos de ir atrás dele». Será que estas palavras foram levadas à letra por Thomas Matthew Crooks, o jovem que enquadrou Trump como alvo e disparou?

Nancy Pelosi, a ex-presidente democrática do Congresso, não poupou igualmente nas ameaças. Em directo na MSNBC, também uma semana antes do atentado, apelou: «ele tem de ser parado; ele não pode ser presidente».

A teia da comunicação corporativa e globalista cumpriu a sua parte no episódio, neste caso tentando desviar as responsabilidades do poder instalado no assassínio falhado, minimizando e desvalorizando o atentado.

Ragan O’Handley, um «influencer» muito eficaz nas redes sociais e proprietário de uma grande empresa de media digital, também conhecido por DC Drain, garantiu que os jornalistas  e as equipas de produção dos principais meios de comunicação receberam orientações precisas sobre como abordar o atentado: «limitar-se aos factos, sem editorializar nem tirar conclusões»; «não lhe chamar assassínio» nem afirmar que «os tiros foram dirigidos contra Trump»; não pronunciar frases do género «viveram-se momentos assustadores no comício de Trump»; «não devem ser chamados comentadores»; e, quanto aos âncoras ou pivots televisivos, «devem ser naturais na linguagem corporal sem parecer sérios, solenes ou dramáticos» e não usar palavras como «caos» em relação ao comício.

A credibilidade de DC Drain, conhecido apoiante de Trump, é reduzida e as suas fontes estão provavelmente inquinadas.

Porém, mesmo que as orientações não tenham existido, os amestrados jornais e televisões do sistema comportaram-se como se os operacionais as tivessem recebido.

David Jackson noticiou no USA Today que «Trump foi removido do palco depois de ruídos muito sonoros terem assustado o ex-presidente e a multidão». Segundo a NBC News, «os serviços secretos retiraram apressadamente Trump do palco depois de terem sido ouvidos ruídos no seu comício na Pensilvânia». A agência global Associated Press informou o mundo de que «Trump foi escoltado para fora do palco durante um comício depois de se terem ouvido ruídos muito sonoros no meio da multidão».

A televisão MSNBC testemunhou que «Trump foi levado do palco depois de ruídos muito sonoros num comício»; e a voz do dono, a CNN Internacional, a proprietária da verdade definitiva e inquestionável, esmerou-se: «Os Serviços Secretos apressaram-se a retirar Trump do palco depois de ele ter caído durante um comício».

Em nome dos Serviços Secretos, o chefe de comunicação, Anthony Guglielmi, não destoou: «Durante um comício da campanha do ex-presidente Trump um atirador suspeito disparou vários tiros para o palco a partir de uma posição elevada no exterior do comício. Um espectador foi morto e dois espectadores ficaram gravemente feridos. O incidente está agora sob investigação e o Serviço Secreto notificou formalmente o FBI».

Apoiado em tão completa e variada dose de informação, o antigo presidente Obama lamentou o sucedido, «embora não saibamos exactamente o que se passou»; e o presidente Biden comentou enigmaticamente que «a questão é sabermos exactamente por que eles estão a fazer isto».

Metodologia

Percebemos já que a «sagrada democracia americana» sente repulsa pelo que é diferente, dissonante, incapaz de lidar com a dúvida, a incerteza, o imprevisto, características que moldam a figura de Trump como político oriundo de uma variante do sistema à partida não completamente sobreponível ao próprio sistema.

Aprendemos igualmente que essa repulsa é capaz de criar condições que conduzam à simples eliminação física do adversário; uma espécie de adaptação das considerações de Clausewitz explicando-nos, em versão actualizada, que o assassínio é uma extensão da política.

As circunstâncias vividas em 15 de Julho na Pensilvânia remetem-nos, inevitavelmente, para outros acontecimentos do género praticados pela «sagrada democracia americana» e pela sua irmã gémea, a intocável «democracia liberal», depositária dos «nossos valores», da «nossa civilização», do «nosso modo de vida», enfim, da superioridade humanista e missionária do «nosso Ocidente» e da «nossa» extremosa ordem internacional baseada em regras. 

Não seria necessário recuar tanto no tempo, mas o enforcamento humilhante de Saddam Hussein e o selvático estupro com baioneta do dirigente líbio Muammar Kadhafi são marcos históricos de uma metodologia que não dispensa o extermínio.

«Aprendemos igualmente que essa repulsa é capaz de criar condições que conduzam à simples eliminação física do adversário; uma espécie de adaptação das considerações de Clausewitz explicando-nos, em versão actualizada, que o assassínio é uma extensão da política.»

Os linchados, porém, eram personagens de guerras, ainda que artificiais, seres de tez tisnada, desafiadores descarados da ordem ocidental e colonial. Saddam, um tarado das armas de destruição massiva que ainda um dia irão aparecer transportadas por El-rei D. Sebastião; Kadhafi, um beduíno, polígamo, que queria acabar com as moedas coloniais em África, substituindo-as por outra favorável aos interesses dos povos do continente. Para garantir a superioridade e os interesses ocidentais optou-se pela execução sumária. «Chegámos, vimos e ele morreu»: estas palavras épicas da secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, proferidas na Líbia, ressoam como um versículo de referência da bíblia comportamental do império. 

Transitemos para o velho e glorioso continente, a Europa, especificamente para o dia 15 de Maio deste ano, dois meses antes da tentativa de liquidação de Donald Trump.

Robert Fico, primeiro-ministro da Eslováquia, país membro da União Europeia, foi baleado e ficou às portas da morte depois de uma reunião do Conselho de Ministros. O intrépido militante da «nossa civilização» que cometeu o crime também actuou sozinho, mais um «lobo solitário» agindo sob ordens de ninguém. 

A culpa, verdade seja dita, foi do primeiro-ministro eslovaco, que se pôs a jeito por ter desafiado os Estados Unidos, a União Europeia, a NATO e a ordem internacional baseada em regras, irremediavelmente apontado como «amigo de Putin» ao defender a paz na Ucrânia. A expulsão do seu partido social-democrata da Internacional Socialista não passou de uma punição simbólica. Fico foi sentenciado a uma pena exemplar e radical.

Exemplar é o termo ajustado. Poucos dias depois, o então comissário europeu do Alargamento, o húngaro Olivér Várhelyi, contactou o primeiro-ministro da Geórgia, Irakli Kobakhidze, aconselhando-o a abdicar da chamada «lei russa», que obriga as organizações nacionais com mais de 25% de participação estrangeira a identificar as fontes de financiamento. Afinal a lei não é russa, mas sim americana e de países europeus porque replica legislação dessas nações. Perante a recusa do chefe do governo georgiano, o comissário Várhelyi sentiu-se obrigado a comunicar a Kobakhidze que se insistisse em manter a lei poderia sofrer um percalço como o que aconteceu a Robert Fico na Eslováquia. 

Posto isto, é legítimo admitir que o recurso à ameaça e à tentativa de assassínio ou mesmo à liquidação (os ataques a Fico e a Trump foram para matar) está a tornar-se recorrente como método para fazer cumprir os preceitos da democracia liberal e explicar o que poderá acontecer a actores políticos que incorram em comportamentos dissonantes, não-alinhados ou mesmo rebeldes em relação à doutrina oficial.

«Poucos dias depois, o então comissário europeu do Alargamento, o húngaro Olivér Várhelyi, contactou o primeiro-ministro da Geórgia, Irakli Kobakhidze, aconselhando-o a abdicar da chamada «lei russa», que obriga as organizações nacionais com mais de 25% de participação estrangeira a identificar as fontes de financiamento. Afinal a lei não é russa, mas sim americana e de países europeus porque replica legislação dessas nações.»

Apenas com algumas horas de diferença do momento do atentado contra o candidato presidencial norte-americano ficou a saber-se, através da explicação autorizada do criminoso de guerra nazi-banderista e chefe da polícia secreta do regime ucraniano, Kyril Budanov, que estão em curso operações para assassinar o presidente da Federação Russa, Vladimir Putin. Numa matéria em que o secretismo parece ser a alma do negócio, o anúncio público dir-se-á descabido, mas Budanov lá saberá da sua vida.

Se formos objectivos e assumirmos a probabilidade, tendo em conta a sucessão e o padrão dos acontecimentos, de não estarmos perante simples coincidências, o quadro começa a ser preocupante, tanto mais que os métodos dos nazis-banderistas ucranianos, tão queridos da NATO e da União Europeia, são intuitivos e fáceis de seguir. 

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, e o candidato presidencial independente norte-americano Edward Kennedy Jr. que se previnam, vejam onde pisam, com quem andam e cuidem de espreitar frequentemente por cima do ombro. O primeiro atreve-se a trabalhar pela paz na Ucrânia, tem uma política externa comparável à de Robert Fico, irrita Bruxelas e os primeiros-ministros que aceitam tudo quanto possa anular a soberania dos seus países. Por isso ordenaram, para começar, uma  «sabotagem» das acções de Orbán. Ora, o prolongamento da guerra na Ucrânia é uma estratégia fulcral da União Europeia e nada garante que o isolamento a que Orbán ficou condenado satisfaça plenamente os seus zelosos pares, podendo evoluir, no caso de um braço de ferro, para uma qualquer medida mais definitiva. 

Robert Kennedy Jr., filho e sobrinho de um ministro da Justiça e de um presidente liquidados pelo regime norte-americano, teve a ousadia de assumir a dissidência da linha oficial do Partido Democrático e de se apresentar na corrida à presidência. Está para os democráticos mais ou menos como Trump está para os republicanos, embora com escasso relevo. Criou anticorpos políticos dentro do sistema porque tem no activo as suas lutas pela preservação do ambiente, contra a eugenia praticada em populações indígenas das Américas Central e do Sul; além disso, o regime não lhe perdoa que tenha denunciado a deriva totalitária durante a pandemia de Covid e as correspondentes falcatruas com as vacinas e a operação massiva de vacinação.

A História e os «incidentes» já conhecidos para calar e neutralizar vozes discordantes da política única da democracia liberal merecem reflexão. E parece mover-se por aí uma alcateia de lobos prontos a tornar-se «solitários» e a cumprir missões punitivas de que, por certo, ninguém os encarrega.

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