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O reflexo da política de direita: por cada maternidade fechada, uma privada abriu

No campo da saúde, a política de direita levada a cabo por PSD/CDS-PP e que muito agrada à extrema-direita foi desenhada pelo PS. Com Correia de Campos enquanto ministro da Saúde deu-se o encerramento de maternidades e o privado aproveitou a deixa. 

CréditosPaolo Aguilar / EFE

No passado dia 17 de Agosto, Pedro Adão e SIlva, ex-ministro da Cultura do Governo PS, assinou um texto no Público com o título «o que as maternidades nos dizem sobre o país». Numa curta reflexão, Adão e Silva relembra-nos de dois estudos invocados em 2006 por Correia de Campos quando era ministro da Saúde que advogavam «soluções que procuravam introduzir racionalidade e previsibilidade nas respostas de obstetrícia».

O texto do ex-ministro da Cultura tem interesse porque parece ser escrito por alguém que nunca fez parte de um governo. Sobre o problema das maternidades nele pode ler-se que «os governos reúnem comissões especializadas, as comissões especializadas recomendam e ficamos sensivelmente na mesma» ou que «em tese, não há quem não seja favorável à concentração de respostas obstétricas, desde que exista alguma previsibilidade, (ou seja, que, ao contrário do que agora acontece com o inimaginável fecho rotativo, as grávidas saibam com antecedência onde é que se devem dirigir)».

Para Adão e Silva há dois problemas: um político, já que «os governantes até estão interessados em promover mudanças (daí procurarem mobilizar o conhecimento), mas, depois, chocam com a realidade»; e um corporativista, pois qualquer solução «esbarra na sempre muito vocal Ordem dos Médicos». 

Em jeito de remate final, Adão e Silva levanta a questão «sabem quem beneficia com a ineficiência do sistema, promovida por uma coligação recorrente de bloqueios políticos e interesses corporativos?». O mesmo dá a resposta: «o sector privado, em que 80% dos partos são feitos por cesariana (mais caros), o que se compara com 50% no SNS». «Digam lá se o que se passa nas maternidades não é um retrato do país», conclui o ex-ministro do PS. 

O texto procura apagar as culpas do PS no que toca a encerramentos de maternidades. Faz parecer que o problema nunca foi de decisões premeditadas e opções políticas Fazendo uma rápida pesquisa sobre o rasto de destruição levado a cabo por Correia de Campos na altura em que era ministro da Saúde do governo Sócrates, conseguimos comprovar que numa boa parte dos casos, onde fechou uma maternidade do SNS abriu uma maternidade de um grupo privado do negócio da doença. 

Encerramento da maternidade do Hospital de Barcelos

A 14 de Março de 2006, munido por um suposto «imperativo técnico», o governo PS mandou fechar a maternidade do Hospital de Barcelos. Todas as justificações eram válidas para o ministro Correia de Campos que defendia que «o mais importante não é o equipamento, são os recursos humanos. Temos carência de médicos obstetras».

À data já se fazia sentir a falta de médicos e, como tal, uma necessidade de investimento que atraísse e fixasse profissionais no sector público por todo o país. Correia de Campos culpabilizava os trabalhadores, dizendo que «os jovens médicos não se sentem atraídos pelos locais onde se fazem menos de dois partos por dia». Estava a ser aplicada uma lógica economicista ao SNS e com essa justificação o ex-ministro mandava fechar maternidades, estando ciente do impacto evidente para as populações.

O encerramento da maternidade do Hospital de Barcelos era relativizado com a garantia de que o acompanhamento às grávidas e os partos passariam a ser realizados no Hospital de São Marcos de Braga, a uma distância de 30 quilómetros. 

Em 2008, também durante o governo PS, este último hospital foi entregue à gestão de um consórcio privado liderado pelo Grupo José de Mello Saúde, ao abrigo de um contrato no âmbito das Parcerias Público Privadas na Saúde, rumo a um Novo Hospital de Braga construído de raiz, com transferência de instalações em Maio de 2011. 

A verdade é que na ausência de uma maternidade pública em Barcelos, surgiu no concelho o Hospital Particular do Grupo Saúde com serviço de maternidade. Enquanto o Estado destruiu as suas funções sociais, o privado viu a necessidade da população e com isso uma forma de lucro. 

Encerramento da maternidade de Mirandela

«Mirandela é a que tem menos equipa. Está assente que vai fechar no final do ano». Foi com esta leviandade e prepotência que Correia de Campos, em 2006, anunciava o encerramento de mais uma maternidade. Ao invés de investir, a solução foi, mais uma vez, mandar fechar. 

A maternidade de Mirandela pertencia ao Centro Hospitalar do Nordeste Transmontano, que congrega os três hospitais da região - Mirandela, Bragança e Macedo de Cavaleiros. Este último não tinha maternidade e com o encerramento em Mirandela, restava apenas Bragança para servir toda a população. 

Os utentes, naturalmente não ficaram satisfeiteitos e a 11 de Setembro, dia em que a maternidade cessou a sua actividade, centenas de pessoas concentraram-se junto ao Hospital de Mirandela, invadiram as instalações e exigiram explicações de alguém ligado à Administração que geria os três hospitais do distrito de Bragança.

Ao Jornal de Notícias, uma das presentes fazia o desabafo de quem via o Estado cada vez mais distante: «o concelho não devia votar nas próximas eleições. Tiram-nos tudo, fecham as escolas, hospitais e não há empregos. Qualquer dia ficamos sem nada»

Mais uma vez, a acção do governo PS foi premeditada e na linha do que é uma política neoliberal. Foi deixado campo aberto para os privados poderem assumir as funções que devem ser do Estado e em Janeiro de 2009 foi inaugurado um hospital privado no concelho com maternidade, o Hospital Terra Quente, que se apresentava como «uma alternativa ao SNS». 

De acordo com o Jornal do Nordeste, órgão de comunicação social local, o novo hospital representaria um investimento de 17 milhões de euros e contava com a comparticipação da autarquia local em cerca de 500 mil euros, correspondentes ao valor do terreno e às taxas de construção. O investimento era avultado, mas mais uma vez o privado viu no desespero dos utentes uma forma de lucro que justificava os valores da operação. Só o Governo do PS é que não via necessidade de investir no SNS e usava a «racionalização de recursos» como desculpa tecnocrata para justificar barreiras entraves no direito à saúde.

Encerramento da maternidade de Chaves

Já em 2007, Correia de Campos decidiu ir a Chaves, perto da quadra natalícia, e presentear os flavienses com o anúncio do encerramento da maternidade do concelho. O anúncio do encerramento da sala de partos, ocorreu num ano em nasceram 309 crianças no serviço de maternidade, 60% das quais por cesariana.

Correia de Campos considerava não ser possível «conciliar a visão imediata sobre a manutenção da sala de partos com a redução visível do seu movimento e a consequente perda de qualidade», ignorando assim o facto de que um serviço de qualidade é o de proximidade e se há problemas demográficos em determinadas regiões do país, devem ser fomentadas políticas públicas  que contrariem os declínios verificados. 

A solução criada pelo ex-ministro foi passar a encaminhar as grávidas para a maternidade de Vila Real, a única que fica a funcionar no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, que agrega ainda os hospitais de Peso da Régua e de Lamego. O proposto era, então, fazer com que as grávidas fizessem uma deslocação de 60 quilómetros para conseguirem dar à luz em segurança. 

Tal como nos outros exemplos referidos, em 2009 surgiu um hospital privado em Chaves. O Hospital Privado de Chaves, que passaria a ter uma unidade hospitalar que disponibilizaria serviços de maternidade e urgências 24 horas por dia, foi financiado em 20 milhões de euros pela Casa de Saúde de Guimarães e pelo Hospital Particular de Viana do Castelo. Mais uma vez, no lugar do investimento público, o privado aproveitou para tirar proveitos económicos do desespero de milhares de pessoas. 

O PS tem culpas, mas Adão e Silva optou por não dizer 

Neste momento existem 31 maternidades privadas, 43 maternidades públicas e três maternidades em regime de PPP. Em 2023 o Ministério da Saúde propôs-se a pagar ao privado entre dois e três mil euros por cada parto na região de Lisboa e Vale do Tejo. A este apoio só poderiam candidatar-se unidades de saúde que nos últimos dois anos tenham feito, em média, pelo menos 700 partos por ano. Feitas as contas, se um hospital privado fizer 700 partos e a cada um corresponder um financiamento de 3000 euros, ao final do ano isso custaria 2 100 000 de euros aos cofres do Estado, dinheiro que poderia ser destinado ao reforço do SNS.

Como nos lembra Nuno Serra num texto publicado no blog Ladrões de Bicicletas, «o que se constata é que os privados têm vindo, paulatinamente, a realizar uma proporção cada vez maior de partos (de 6,2% para 17,2% do total, entre 1999 e 2022), estimando-se, de acordo com a Ordem dos Médicos, que mais de 40% do total de ginecologistas e obstetras trabalhem no setor privado, sendo que na Grande Lisboa, cerca de 50% dos obstetras apenas trabalha no privado».

Mais uma vez Adão e Silva tem razão e este é um reflexo da realidade do país. Uma realidade que passou por uma política de destruição das funções sociais do Estado, cuja acção do PS foi determinante. Não foi a Iniciativa Liberal a realizar esta política. Foi o PS juntamente com PSD e CDS-PP. 

Mais uma vez Nuno Serra localiza o abordado dizendo que «muito mais que uma questão de reorganização e concentração dos serviços, a questão de fundo é pois, por isso, a da capacidade de reter e atrair novos profissionais para o SNS, travando a sua fuga para um setor privado em expansão. Um setor privado que é incapaz de cumprir plenamente princípios de política pública, como demonstra a prática de transferência de situações clínicas mais complexas para o SNS ou o excesso de recurso a cesarianas (65% do total de partos no privado em 2022, que comparam com os 32% registados no SNS, segundo a Pordata)».

Neste caso falamos de maternidades, mas a lógica podia ser aplicada a todo e qualquer sector e à demagogia do PS e seus aliados «independentes». Se formos ao aparelho produtivo, o PS desmantelou a Sorefame e agora diz aos sete ventos que está apostado em seguir com uma política industrial que passe pelo produção de comboios. A questão é que não seria o Estado a deter essa indústria, seria o grande capital a explorar as omissões do Estado.

Conforme se vê, a política de direita levada a cabo pelo PS, ou a política liberal, não assenta somente em privatizações. Passa também pelo encerramento de serviços, criando a necessidade às populações, e depois, por entregar os monopólios aos privados. O Estado fica, assim, submetido aos interesses dos privados. O poder político submete-se ao poder económico. Adão e Silva simplesmente não o quis dizer.
 

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