|Manuel Gouveia

Ruído e bilha do gás – dinheiro público, lucros privados – governar é isto?

Em ambas as situações o governo expôs a verdadeira essência da sua política: proteger sempre os interesses do grande capital, produzir linhas de propaganda e subsídio-dependência para continuar a receber votos de quem é frontalmente prejudicado pela sua política. 

CréditosAntónio Cotrim / Agência Lusa

Com pompa e circunstância, e beneficiando de uma comunicação social completamente acrítica, o governo, através do Ministério das Infraestruturas, acaba de anunciar duas medidas similares para o problema do ruído no Aeroporto de Lisboa e para o preço da Bilha do gás. Similares porque em ambos os casos o governo se limita a pegar num anúncio de distribuição de dinheiro público para fingir que está a resolver alguma coisa, deixando o problema incólume, ou mesmo agravado, e principalmente, deixando incólumes, ou mesmo beneficiados, os interesses por detrás de cada um destes problemas. E isto sem sequer gastar, de facto, o dinheiro anunciado. Vejamos em detalhe.

O ruído no Aeroporto de Lisboa

O problema que existe é que a Lei da República portuguesa não é cumprida pela ANA. A lei actual proíbe os voos entre as 0h e as 6h. Não é cumprida porque existe uma portaria do Governo a permitir excepções à lei. Que faz o governo? Reduz o período de exclusão aérea para o período entre a 1h e as 5h e consegue que o Expresso o elogie por impôr «restrições aos voos noturnos no Aeroporto Humberto Delgado». O que os moradores exigiam era que a exclusão de voos fosse (1) respeitada e (2) alargada para todo o período nocturno, que é entre as 23h e as 7h. Mas, se pensarmos um pouco, este Governo não podia agir de outra forma: este foi o Governo que autorizou o aumento de voos em 40% até os 45 milhões de passageiros e a realização de obras na Portela para esse aumento, ora o Rossio não cabe na Betesga, e é liminarmente impossível autorizar tal volume de tráfego na Portela e que isso não implique alargar o horário de funcionamento do aeroporto, que é o que o governo acaba de fazer, apesar de anunciar exactamente o oposto!

«O problema que existe é que a Lei da República portuguesa não é cumprida pela ANA. A lei actual proíbe os voos entre as 0h e as 6h. Não é cumprida porque existe uma portaria do Governo a permitir excepções à lei.»

Quem beneficia com estas medidas: a multinacional ao serviço da qual o governo se encontra! Mas se olharmos para a outra parte do anúncio, o beneficiário é o mesmo. A ANA (logo, a multinacional Vinci que suga os seus lucros) está obrigada a fazer as obras de mitigação do ruído. Não as faz, e o Governo anuncia agora um programa, pago com recursos públicos, para dizer que vai faze o que a multinacional deveria estar a fazer há 10 anos! Arranjou um nome à coisa «Programa menos Ruído», promete uns milhões às autarquias da zona, anuncia um processo de candidatura para obras apoiadas por esse fundo, e tenta assim garantir ou ganhar uns votos, mas na realidade, continua a permitir que a ANA não faça o que deveria fazer. Claro que se a ANA fizesse o que deveria fazer teria ganho em 2023 apenas 407 milhões de euros em vez de 417 milhões de euros, e o Governo vem com estas medidas proteger os rendimentos da ANA e tentar calar o protesto dos moradores. 

O problema do preço da bilha de gás

A questão, primeiro colocada pelo PCP, resume-se a uma pergunta, à qual até agora ninguém conseguiu responder: «O preço da bilha de gás em Espanha, no mercado regulado, é metade do preço da bilha do gás no mercado liberalizado em Portugal. Porquê?» Alguns tentaram responder – mentindo – passando a responsabilidade para a carga fiscal, mas os próprios números da Entidade Nacional para o Sector Energético (ENSE) demonstram que o peso da carga fiscal só explica 6 euros dos 16 a 20 de diferença. A resposta à pergunta está na própria pergunta, mercado regulado versus mercado liberalizado, e demonstra a verdadeira consequência da liberalização dos mercados. Claro que nem o Governo, nem o PS, nem o CH querem ver essa realidade, e todos propõem o mesmo (uns por despacho, outros com projectos de resolução na Assembleia da República): aumentar o apoio público já hoje dado através do programa «Bilha solidária», passando dos actuais dez, para 15 ou 12 euros.

O simples facto de em Espanha se conseguir vender – com lucro para todos os intervenientes e sem subsídios públicos – uma bilha de gás a 16 euros, é prova suficiente que em Portugal ela não pode custar 36. Em vez de regular o preço, de acabar com os lucros indevidos e proteger todos os consumidores, o governo (mas PS e CH é o que defendem também) cria um mecanismo de apoio público, que obriga alguns portugueses a mendigar dez euros à Junta de Freguesia (agora 15) de cada vez que compram gás, continuando eles, mesmo depois da esmola, a pagar o gás a dez euros (agora 5) mais caro que em Espanha, e deixando todos os outros portugueses a pagar 36 euros (e ainda a contribuir para os dez euros (agora 15) dados para reduzir o esforço dos primeiros). E tudo para quê? Para não prejudicar os lucros da Galp e dos outros grupos económicos do sector. Afinal, a Galp fechou 2024 com apenas 961 milhões de euros de lucros, e esse valor teria baixado para 960 ou 959 milhões se os preços do GPL engarrafado estivessem regulados!

«O simples facto de em Espanha se conseguir vender – com lucro para todos os intervenientes e sem subsídios públicos – uma bilha de gás a 16 euros, é prova suficiente que em Portugal ela não pode custar 36.»

Mas o faz-de-conta vai mais longe. Desde 2022, de acordo com a nota do Ministério das Infraestruturas, apenas foram dadas 2,15 milhões de euros desses apoios. Isto apesar da dotação para cada ano – anunciada – ser de dois a três milhões de euros. Ou seja, o programa não esgotou sequer as exíguas verbas que tinha. Que faz o Governo? Perceber porquê? Mudar alguma coisa para que o conjunto das famílias tenham acesso a esse apoio? Não. Anuncia o aumento da verba disponível (mais 2,5 milhões) e do valor do apoio (de 10 para 15 euros).

A realidade, nas contas do próprio Governo, é que o programa apoiou apenas 0,5% das bilhas vendidas (215 000 no total de três anos, quando se vendem cerca de 50 000 por dia), e uma percentagem similar dos consumidores. Ou seja, que pouco altera da realidade, e só serve para fingir que se está a resolver um problema, quando na realidade se está a fugir de reconhecer sequer o problema – o mercado liberalizado.

Em ambas as situações, o Governo expôs a verdadeira essência da sua política: proteger sempre os interesses do grande capital, produzir linhas de propaganda e subsídio-dependência para continuar a receber votos de quem é frontalmente prejudicado pela sua política. 

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