Partimos para esta reportagem através de uma pesquisa que nos devolveu uma parte da revolução operada num dos mais mediáticos bairros de Sacavém. Nas conversas, notícias e reportagens realizadas sobre a Quinta do Mocho, a arte urbana surge inevitavelmente, a par dos nomes dos vários artistas de gabarito nacional e internacional que, ao longo dos últimos três anos, têm alimentado este bairro de cor.
Mas, se para muitos esta é a grande transformação que o município de Loures tem vindo a promover em associação com os moradores, de dentro dizem-nos que mais significativa foi a mudança comportamental de quem lá vive.
Kedy Santos, natural de São Tomé e Príncipe, reside há cerca de 15 anos na urbanização municipal Terraços da Ponte, mais conhecida por Quinta do Mocho, e é dele a frase que intitula esta parte do trabalho. Corroborando a célebre afirmação de Nina Simone («liberdade para mim é não ter medo»), Kedy, um dos guias responsáveis pelas muitas visitas à Galeria de Arte Pública (GAP) que a autarquia promove, assume que o mais importante feito operado no Mocho foi o desaparecimento do medo.
Um medo que existia dentro e fora do bairro. «Tínhamos medo de qualquer pessoa que não era africana. Achávamos que ou era polícia ou eram pessoas da Segurança Social ou alguém que vinha cobrar algo que nós tínhamos que pagar», confessa. Por outro lado, havia o medo por parte de quem olhava de fora e não percebia mais do que um «bairro problemático».
«O passo de gigante foi conseguido»
Depois de anos consecutivos abandonados à sua sorte, e sem conhecer verdadeiramente o sentido do verbo participar, muitos dos bairros de habitação pública estavam «com uma urgência enorme» de intervenção por parte do município.
Quem o diz é a vereadora da Coesão Social e Habitação da Câmara Municipal de Loures, Maria Eugénia Coelho. Além de confirmar que este era um bairro «completamente fechado sobre si próprio» e de reconhecer que há ainda muito por fazer, admite que «o passo de gigante foi conseguido».
«Quando tomámos posse, tínhamos consciência de que era uma urgência chegar aos bairros e criar formas de actuação. Precisávamos de criar formas de retomar a confiança da população na Câmara e de perceberem que aquilo que nós queríamos e precisávamos de fazer nos bairros exigia a participação efectiva da população, porque esse é o nosso tipo de intervenção», frisa.
Assembleias comunitárias, o «início de uma relação»
A forma encontrada pelo município para quebrar o gelo na Quinta do Mocho foi realizar aí a segunda edição do festival «O Bairro i o Mundo», em Outubro de 2014. Com o propósito de «mostrar o bairro ao mundo e trazer o mundo ao bairro», a primeira edição tinha acontecido um ano antes na Quinta da Fonte, em conjunto com o Teatro IBISCO (Inter Bairros para a Inclusão Social e Cultura do Optimismo).
A parceria foi renovada para a edição realizada na Quinta do Mocho. O dado novo é que, na preparação do festival, a autarquia implementou as primeiras assembleias comunitárias no bairro a fim de conhecer os objectivos dos moradores para a iniciativa e perceber melhor de que forma poderiam participar.
«Houve uma participação interessante», recorda a vereadora. «Primeiro, ainda com pouca confiança, mas com uma atitude por parte das pessoas que participaram nessas assembleias muito correcta, dizendo e assinalando os problemas que havia no bairro, as responsabilidades de cada um, não se pondo de fora de algumas dessas responsabilidades e, sobretudo, na vontade imensa de que era preciso transformar e que precisavam da ajuda da Câmara, mas também que estavam disponíveis para participar.»
O festival haveria de ser o preâmbulo das alterações implementadas no bairro mas, sublinha Maria Eugénia Coelho, mais importante do que a sua realização foram as assembleias e as reuniões preparatórias. «Foi o início de uma relação», confessa.
Ao longo de um fim-de-semana, a par de outras intervenções artísticas como o teatro, a música e a dança, seis artistas pintaram seis empenas. A intervenção, com um forte cunho social, captou a atenção das pessoas. Desde então, o fenómeno da arte urbana nunca mais parou e a Quinta do Mocho revelou-se destino preferido de muitos artistas que já inscreveram a sua assinatura em 74 empenas do bairro.
Arte urbana contraria isolamento
Apesar da transformação do espaço público e da diminuição dos conflitos existentes entre os moradores, Kedy Santos, o voluntário que guia os visitantes nesta galeria criada ao ar livre e um dos elementos da banda «Império Suburbano», criada no âmbito do Projecto Esperança na Quinta do Mocho, não esquece o muito que ainda está por fazer no bairro, embora admita que os moradores «sentem que a Câmara encontrou uma ferramenta para os libertar de algum isolamento e de algum preconceito». A par do medo e do estigma, revela que se quebrou «uma coisa que estava enraizada aqui e também no exterior».
Pela experiência absorvida nas visitas guiadas ao bairro, conta-nos que as pessoas ficam surpreendidas pela arte estampada nos prédios, mas não apenas. «Quando termina cada visita, o que eu mais oiço é que são pessoas que vivem aqui perto, mas tinham medo, e quando integram a visita ficam estupefactas pela normalidade e tranquilidade que encontram actualmente no bairro, [...] e as pessoas reflectem isso mais para nós». «Nesse sentido», acrescenta, «são as coisas que mais nos fazem ver a importância do trabalho realizado aqui».
Licenciado em engenharia química e líder da Academia Ubuntu, Kedy nota, no entanto, que «normalmente as pessoas só gostam de ver a mudança física» e «têm mais dificuldade em descobrir a mudança comportamental, emocional ou até mesmo racional e sentimental», que são, reconhece, «mudanças muito mais significativas, que são estas que nós temos».
Revela que as pessoas do bairro se tornaram mais confiantes e abertas ao exterior. Além de perderem o medo de novos visitantes, os habitantes do Mocho começaram a lidar com naturalidade com as máquinas fotográficas e câmaras de filmar que ali entram para retratar a arte que se cola às suas habitações.
A par da transformação física, a vereadora concorda que as obras de arte «afixadas» nas empenas permitiram uma alteração do sentimento que os moradores tinham em relação a si próprios.
«A galeria está por detrás da identificação das pessoas com a estrutura da Câmara, que tem procurado resolver alguns problemas, mas claro que tem muito trabalho ainda por fazer.»
kedy santos
«A Câmara, juntamente com as pessoas, transformou a imagem que havia.» «Dos próprios», explica a seguir, «que tinham a sua auto-estima muito em baixo», mas também da restante comunidade que, ao visitar a galeria, «ajuda também a derrubar este estigma de que é um bairro perigoso, de que é um bairro que era composto por marginais e por bandidos». «Não é verdade, não é verdade de facto. São pessoas normais, com ansiedades e expectativas em relação ao futuro», realça.
A paz é uma arma
Kedy Santos entende que os problemas não se erradicam facilmente de um dia para o outro, embora reconheça que o processo estabelecido para restituir alguma normalidade tenha resultado na diminuição dos conflitos, tanto entre as pessoas do bairro, como destas com o exterior. Ao mesmo tempo diz que a «hostilidade» da polícia para com os moradores tem vindo a diminuir.
Admite que as pessoas vivem agora uma paz «muito significativa» e que essa tem sido uma das «armas» das pessoas do bairro, que tem contrastado com a ideia de que este era um bairro de conflitos e de violência.
Tal como na Bela Vista, em Setúbal, onde a participação popular foi considerada a chave do sucesso atingido até agora pelo programa «Nosso Bairro, Nossa Cidade», também na Quinta do Mocho a participação dos moradores foi fundamental para ultrapassar alguns dos problemas existentes.
Maria Eugénia Coelho frisa que a intervenção social da autarquia implica a participação activa das pessoas. E isto é algo que os moradores percepcionam. Além das alterações sentidas no quotidiano, Kedy Santos revela que a estratégia seguida pelo actual Executivo tem ajudado a aproximar as pessoas, incentivando-as a acreditar e a participar.
Proximidade e confiança
Sublinha que existe menos burocracia para se chegar à resolução dos problemas e que isso tem ajudado a «quebrar alguma distância» entre a população e o município. Neste sentido salienta que, antes de decidir sobre qualquer situação, a autarquia «tende a ouvir as pessoas, fazendo assembleias comunitárias». «Sempre que ocorre alguma necessidade, a Câmara tende a proceder desta forma e isto também ajuda as pessoas a aproximarem-se mais», acrescenta.
Kedy revela-nos que, ao longo de anos, as pessoas do bairro criaram uma ideia de que, por mais que participem ou opinem, algumas vezes sentem que as suas opiniões não são válidas e que, por isso, optam por nunca se fazer valer em questões de dever cívico. Salienta, no entanto, que «já há uma participação muito mais activa de muita gente, em muitas situações», até porque os resultados dessa participação têm-se feito notar.
Coisas «simples» como apanhar táxi ou autocarro
Desde o dia 1 de Julho de 2015 que apanhar o autocarro para a Quinta do Mocho é uma realidade. A necessidade de se cumprir este direito fundamental foi discutida numa assembleia comunitária participada pelos moradores do bairro, em conjunto com o município e a Rodoviária de Lisboa (RL), onde se percebeu que a carreira n.º 300 era a que melhor servia a população.
Vai daí, a empresa alterou o percurso do autocarro que liga Lisboa (Campo Grande) a Sacavém (Loures), e surgiram duas novas estações na Quinta do Mocho: uma na Alameda das Comunidades, junto ao Centro de Saúde, e outra na Avenida Amílcar Cabral, depois da rotunda da Casa da Cultura de Sacavém.
Apesar da necessidade de haver mais carreiras e horários diferentes, para a população, que apenas conseguia aceder ao autocarro nos limites do bairro, este foi um passo importante. O medo, de que Kedy Santos nos falava no início da conversa, afastava também a possibilidade de apanhar táxi no bairro ou ir para casa neste meio de transporte, uma vez que os taxistas não ousavam entrar naquele território. Até 2015, sensivelmente, quem quisesse ir para a Quinta do Mocho tinha que ficar na Courela do Foguete, um bairro a cerca de um quilómetro de distância.
Recentemente foi realizada outra assembleia que, além de solucionar o problema dos transportes, contribuiu para trabalhar a vertente do emprego. Em parceria com o município, a RL, que está a recrutar motoristas para os seus autocarros, deslocou-se à Quinta do Mocho para apresentar aos moradores a possibilidade de se candidatarem a esses empregos, criando algumas facilidades no acesso aos concursos.
A perspectiva, acrescenta a vereadora, é a de que os trabalhadores recrutados no bairro posssam trabalhar em qualquer carreira, embora admita que o objectivo da Rodoviária «era que as carreiras que passassem aqui, nomeadamente na Quinta da Fonte, pudessem ter pessoas do bairro porque lhes garantia uma maior segurança no próprio transporte». Adianta que, se forem pessoas do bairro, relacionadas com quem frequenta aquele transporte, «aí as coisas correm melhor».
Um passado de desleixo
Nas assembleias comunitárias realizadas em 2014 fez-se o levantamento do conjunto de problemas que os bairros tinham. Uma parte dos edifícios fazia parte desse bolo, com as partes comuns a necessitarem de uma intervenção de fundo.
Isto porque, denuncia Maria Eugénia Coelho, o orçamento da Câmara para a conservação e manutenção dos seus edifícios, anteriormente, era «uma vergonha». Logo, havia necessidade de uma «intervenção séria, que tinha deixado de ser feita» pela autarquia.
A par do projecto de arte urbana, que já saltou os limites do bairro graças ao Loures Arte Pública, o actual Executivo estabeleceu na Quinta do Mocho uma intervenção do ponto de vista físico, a começar pelas portas de entrada dos prédios.
«O que interessa uma porta?», interroga-se Maria Eugénia Coelho. «Isto parece que não tem muita importância, mas uma porta num prédio restitui também a privacidade das pessoas que ali vivem», frisa.
Naturalmente, o processo foi participado pelos moradores que, enquanto a autarquia colocava as portas, levantavam tintas, rolos e pincéis para pintar e recuperar as partes comuns. «Uns já o fizeram, outros estão a fazer, temos que ir acompanhando isso», afirma a vereadora.
Entre o que falta melhorar, Kedy Santos reflecte precisamente sobre o aspecto da reabilitação, a par do saneamento e dos esgotos. Adianta que há ainda algumas casas «que estão destruídas por força do tempo e do mau cuidado de alguns moradores», mas frisa questões de saneamento que ainda precisam de ser resolvidas. «Neste momento encontram-se algumas com questões de inundação terrível, escondem ratazanas e mosquitos que causam outros efeitos brutais», alerta.
A vereadora corrobora a necessidade de uma «intervenção forte» no edificado e aproveita para revelar iniciativas em curso. «Temos algumas candidaturas a programas financiados que nos vão permitir ter uma intervenção nalguns bairros muito forte, de outra forma seria difícil, e nós temos sempre que trabalhar com a população no sentido de lhes dar ferramentas para criarem os projectos da sua vida».
Levar as pessoas à rua de uma forma digna
Além da requalificação das habitações, Kedy Santos justifica a necessidade de espaços de lazer com o facto deste ser um bairro habitado por pessoas de diferentes comunidades, essencialmente angolana, são-tomense e guineense, mas com traços comuns. Desde logo, no gosto por revisitar tradições ao som de músicas.
«Por vezes não se encontram espaços que agreguem estas pessoas e isso é um dos problemas graves aqui porque já resultaram em muitos problemas no passado que acabaram em conflitos, mas só surgiram pela ausência de uma estrutura física que pudesse colmatar esta ausência de espaço», explica.
Outro aspecto a gerar procupação entre os moradores passa pelos parques e jardins que, segundo Kedy, «não estão de todo na melhor forma para dar às pessoas um ponto de lazer», e assim permitirem levar as pessoas à rua de «forma digna». «Temos muitas crianças, temos muitas creches e só temos um parque infantil para um universo de quase mil crianças. Isto é um problema que tem de se resolver», salienta.
Maria Eugénia Coelho reconhece que ainda existe muito trabalho pela frente, nomeadamente com os mais jovens e em parceria com as escolas. Acrescenta que durante o actual mandato foi construído um «conjunto muito alargado de turmas de alfabetização, na Quinta da Fonte», dedicado a jovens que não concluiram a escolaridade. «Não foi específico para os jovens deste bairro mas para os jovens de toda a Sacavém, que apanham muitos daqui.»
Admite que é uma área a aprofundar mas afiança, optimista, que «isto é uma bola de neve. Quando as coisas começam a correr bem, parece que atraem coisas boas».
Regressando ao tema da arte urbana, que motivou a exposição do bairro ao mundo e revolucionou a vida de quem lá vive, Kedy Santos afirma que sendo importante, tem o condão de chamar ainda mais a atenção para as situações que têm de ser melhoradas.
«Sabemos que as coisas não são fáceis, e nós não somos os únicos no concelho com problemas, mas neste momento tem de haver uma coerência e uma igualdade de circunstâncias na resolução destes problemas para que todos consigamos encontrar um bom porto», conclui.
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