Manhã de 1.º de Maio. Está um dia bonito, primaveril. Por mera coincidência, hoje celebra-se o Dia da Mãe. Na minha rua, um conjunto de famílias prepara-se para seguir para a praia, numa logística demasiado esforçada para a pouca fruição que a previsão do trânsito anuncia.
Tal como aquelas crianças, também não fui educado nas celebrações do 1.º de Maio e só quando, um dia, percebi que era à classe trabalhadora que pertencia (e não à média ou à média-baixa ou à média-alta ou a qualquer outro tipo de estatuto ilusório apetecível), comecei a celebrar o 1.º de Maio por necessidade de reforçar as fileiras da luta dos trabalhadores e dos seus sindicatos de classe.
No universo das classes médias, esta conversa é recebida como um anacronismo, como se uma qualquer terceira-via estivesse a resolver todos os nossos problemas por fases. Nós, aqui na classe média, até nem estamos mal, até já temos mulheres a CEO e Netflix disponível quando vamos três semanas de férias para fora. Tenham lá paciência e arranjem-nos problemas novos, mais modernos.
Por vezes, chega a ser espantoso observar pessoas que estiveram tantas vezes ao nosso lado, a desistir desse compromisso de classe e a aceitar resignadamente as comodidades e tendências do seu tempo. Na inversão das prioridades, perdemos muitas vezes a realidade e, quando dermos conta, ter-nos-emos perdido a nós próprios, convencidos de que estávamos no pelotão da frente da liberdade individual.
Há umas semanas, estalou uma polémica seríssima do outro lado do oceano. No epicentro do capitalismo, a plataforma de música Spotify acolheu o podcast de um tal Joe Rogan que difunde propaganda negacionista, em relação à Covid-19 e às vacinas, com bastante alcance. Podíamos ficar por aqui, concordaríamos todos que um dos grandes problemas dos monopólios é a capacidade que têm de controlar em absoluto a informação e, com ela, as consciências. Claro que estamos a falar dos Estados Unidos e nos Estados Unidos nada fica por aqui.
«Nós, aqui na classe média, até nem estamos mal, até já temos mulheres a CEO e Netflix disponível quando vamos três semanas de férias para fora. Tenham lá paciência e arranjem-nos problemas novos, mais modernos.»
Numa reação inesperada, o músico canadiano Neil Young, revoltadíssimo com a proliferação do negacionismo pela Spotify, ameaçou retirar todo o seu catálogo da plataforma se a empresa não se retratasse e, no limite, cancelasse a difusão do podcast de Rogan. Ameaçou e retirou. Na insistência da Spotify em não fazer nada, seguiram-se outros músicos, entre eles, Joni Mitchell. A empresa argumentou que era uma questão de liberdade de expressão. A discussão subiu de tom e Young acaba por dar uma entrevista onde lança um repto aos trabalhadores do Spotify: despeçam-se desse sítio tóxico.
Talvez Neil Young, afastado do nosso quotidiano, ache que nós andamos aqui todos a trabalhar por amor à camisola. Tivéssemos nós atingido o pleno emprego a nível mundial e talvez os trabalhadores pudessem escolher. Mas a escolha não é uma característica assim muito marcada da nossa realidade laboral. A generalidade da classe trabalhadora não escolhe, trabalha por necessidade e onde há trabalho.
Mas a cultura do cancelamento – uma espécie de sanções populares – ganhou uma dimensão tal, que Neil Young e companhia olharam para esta disputa como um confronto de gigantes e não como uma oportunidade para esclarecer sobre a forma como o poder se revela e sobre as consequências reais do seu domínio e controlo. Empresas como a Spotify têm, já hoje, um controlo efetivo do nosso entretenimento, da cultura dominante e até da informação que nos chega. Numa ilusão de pluralidade, a empresa acaba por criar narrativas políticas que certamente não irão desestabilizar o modelo económico que a sustenta. E, se assim é, sabemos bem quem acabará por sofrer as consequências dessa ilusão.
«Tivéssemos nós atingido o pleno emprego a nível mundial e talvez os trabalhadores pudessem escolher. Mas a escolha não é uma característica assim muito marcada da nossa realidade laboral.»
Esta era uma oportunidade rara para um combate sério ao capitalismo, seja no seu domínio, seja na sua forma de acumulação irresponsável e indiferente; uma oportunidade para estimular a sindicalização dos trabalhadores, reforçando a sua consciência sobre a natureza da luta de classes e não uma simples demonstração de superioridade moral.
Esta é, de resto, uma tendência preocupante: a prevalência da superioridade moral sobre a luta de classes. Ainda agora, a propósito da guerra na Ucrânia, assisti a um conjunto, ainda que curto, de declarações de desinscrição nos sindicatos porque a posição destes face ao conflito vincava o papel do imperialismo estado-unidense na geração e precipitação de acontecimentos devastadores para as populações envolvidas e para todos os trabalhadores do mundo.
A cultura do cancelamento (à Rússia) prevaleceu sobre a análise material das movimentações do capitalismo e da rearrumação do mapa geopolítico e económico. Esta prevalência é incompatível com a consciência de classe. Talvez nos tenhamos esquecido do que foram as greves de 1944, a escassez de bens essenciais e a fome, sob o pretexto de uma guerra.
O 1.º de Maio em 2022 está, de resto, cercado por dinâmicas de desvalorização das estruturas representativas dos trabalhadores. Mas há esperança. Por baixo da minha janela, uma mãe traz a filha pela mão. A criança pergunta-lhe qualquer coisa, mas só ouço a resposta: «então, filha, é o Dia Internacional do Trabalhador». Qu'importa a fúria do mar?
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