Após duas semanas de negociações na cidade escocesa de Glasgow, os 200 países ali reunidos acabaram por assinar um documento que tem sido fortemente criticado pelas organizações ambientalistas e mesmo por muitos estados que o assinaram.
«Para países como o meu, que terão de transformar o ambiente físico nos próximos anos para sobreviver à investida das alterações climáticas, este acordo é um passo extremamente crítico que – por muito fraco que seja – não nos podemos dar ao luxo de perder», disse o representante das Ilhas Marshall na cimeira, citado pelo site espanhol El Salto.
O que aconteceu de facto
O texto da declaração final divulgada sexta-feira insta os países a «reverem e reforçarem» as suas metas de redução de emissões para 2030 até ao final de 2022. A declaração proposta reconhece que os planos nacionais de redução de emissões não são suficientes para cumprir o Acordo de Paris, que visa manter o aumento médio da temperatura entre 1,5 e 2 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais. Para ter uma hipótese de o conseguir, a ciência diz que até 2030 as emissões de dióxido de carbono, o principal gás com efeito de estufa, têm de ter diminuído 45% em relação aos níveis de 2010, como admite o projecto de declaração final da cimeira. Mas a soma dos programas de corte que os países têm em cima da mesa neste momento não é suficiente. De acordo com o projecto, as contribuições apresentadas levariam mesmo a que as emissões em 2030 fossem 13,7% mais elevadas do que em 2010.
Outro dos aspectos da declaração que saiu de Glasgow diz respeito à ajuda que os países desenvolvidos devem dar às nações mais pobres. Baseia-se na premissa de que foram os estados mais ricos que desencadearam o problema das alterações climáticas após décadas de basear o seu crescimento económico nos combustíveis fósseis e, portanto, de ter emitido a maior parte dos gases com efeito de estufa que permanecerão na atmosfera durante séculos, sobreaquecendo o planeta. Na declaração de Glasgow, os países ricos comprometem-se a duplicar os fundos que afectam à adaptação até 2025, o que significaria atingir um montante próximo dos 40 mil milhões de dólares (quase 35 mil milhões de euros). Além disso, para além deste fundo, a COP26 também produziu o princípio para o futuro estabelecimento de um mecanismo de perdas e danos: basicamente, um instrumento de ajuda internacional para países com menos recursos que são atingidos, por exemplo, por fenómenos extremos ligados à crise climática.
No entanto, essas boas intenções tropeçam em alguns factos e problemas: até agora os países desenvolvidos não têm pago aos países em vias de desenvolvimento aquilo que se comprometeram e em relação ao mecanismo de compensação nada está definido como funciona e quem realmente paga.
«A formulação do texto é uma espécie de ‘devo, não nego, pago quando puder’ por parte dos países ricos», criticou a advogada brasileira Suely Araújo, do Observatório do Clima, à revista Piauí.
Os países desenvolvidos têm-se oposto a reconhecer a sua responsabilidade acrescida na crise climática, por temor de que a ajuda seja vista como um reconhecimento de culpa pelo aquecimento global, com possíveis desdobramentos legais. O Pacto de Glasgow reconhece a importância de que esses países tenham recursos para lidar com suas perdas e danos, mas não dão, por isso, detalhes sobre o montante ou a origem dos fundos.
Mas o maior problema com o citado documento de Glasgow é que se chegou a um conjunto de acordos parcelares, sem se especificar como se vai atingir os pontos acordados. Vamos ver por pontos:
– Os países concordam em reduzir as emissões de CO2 em 45% até 2030.
– Os países terão de rever os seus compromissos de redução em 2022.
– Os países ricos devem duplicar as suas contribuições para ajudar os pobres depois de 2025.
– Há um pacto para reduzir as emissões de metano em 30%.
– Foi assinado um acordo climático EUA-China.
– Há um pacto entre alguns países e fabricantes para acabar com o carro de combustão até 2035.
– E supostamente foram regulados os mercados de carbono, em que os países ricos compram.
O acordo final alcançado em Glasgow, tal como está, não vincula juridicamente nenhum país específico. Apenas lhes pede que «revejam e reforcem as metas de 2030». O departamento de alterações climáticas da ONU fará um relatório anual de acompanhamento destes planos e do nível de aquecimento a que eles irão conduzir.
Um segredo imerso no gelo profundo
«Durante a noite polar, a temperatura atingiu um valor recorde de -89,2°C em Julho de 1983 nas alturas da Antárctida. Dentro do frágil quartel da base da Vostok, as pessoas cantam Georges Brassens ou Vladimir Vissotsky. As raras notícias não são boas. O Presidente dos EUA Ronald Reagan acaba de lançar a sua Iniciativa de Defesa Estratégica para derrubar a União Soviética emersa numa estagnação económica e no pântano da guerra do Afeganistão. Mas a Guerra Fria está a ser combatida longe destas latitudes. Fornecidos por aviões americanos, os cientistas franceses e russos enfrentaram os elementos para desvendar juntos os segredos do clima. O seu objectivo: recuar no tempo descendo cada vez mais fundo nas entranhas do glaciar de 3700 metros de espessura que se encontra debaixo dos seus pés». É com esta história que começa um texto de análise de Philippe Descamps no Le Monde Diplomatique.
Em Fevereiro de 1985, a equipa terminou a extracção dos núcleos de gelo que tinham preservado informações cruciais sobre a composição do ar e as temperaturas dos últimos 160.000 anos. Estas descobertas, publicadas em 1987, mostram que o globo era por vezes mais quente do que é hoje, e muitas vezes mais frio, mas que estas variações seguiram fielmente as da concentração de dióxido de carbono (CO2). Desde a Revolução Industrial, o teor de CO2 na atmosfera tem vindo a aumentar constantemente e já ultrapassou qualquer coisa que a Terra tenha experimentado durante pelo menos dois milhões de anos.
Em 1988, as Nações Unidas criaram o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) para acompanhar estes fenómenos. No seu sexto relatório, concluído em Julho de 2021, os especialistas fazem uma observação ainda mais alarmante do que antes: «Cada uma das últimas quatro décadas tem sido sucessivamente mais quente do que qualquer outra década anterior desde 1850. A temperatura média global da superfície durante a última década (2011-2020) foi 1,09°C mais elevada do que no período 1850-1900,.»
O resumo para os decisores políticos não deixa margem para dúvidas sobre as causas deste fenómeno: «É inequívoco que a influência humana aqueceu a atmosfera, o oceano e a terra». O derretimento dos glaciares e do bloco de gelo árctico, a diminuição da cobertura de neve e o aumento do nível do mar são «muito provavelmente» causados pelo aumento da concentração de dióxido de carbono e outros gases (metano, óxido nitroso, etc.) que amplificam o efeito natural de estufa necessário para a vida na Terra. A inércia do fenómeno levará a um aumento da temperatura média de 1,5 a 2°C com o seu corolário, já parcialmente irreversível: um regresso cada vez mais frequente das ondas de calor, seca, precipitação excessiva e mesmo ciclones tropicais.
Com base na modelização, o IPCC apresenta projecções para as próximas décadas de acordo com vários cenários de emissão de gases com efeito de estufa (GEE). Apenas a hipótese de uma redução imediata para atingir a neutralidade de carbono por volta do ano 2050 permitiria limitar o aquecimento global médio a menos de 2°C e o aumento do nível do mar a entre 28 e 55 centímetros. Nem mesmo os cenários medianos podem garantir a estabilização. Além disso, um aumento dos GEE de acordo com as últimas décadas levaria a um retorno quase durante todo o ano do que outrora foram ondas de calor semestrais. Já não podemos descartar uma mudança na circulação oceânica profunda e uma rápida desglaciação da Gronelândia, o que levaria a uma subida do nível do mar até dois metros em 2100 e cinco metros em 2150. Um desastre para a vida humana na Terra de proporções incalculáveis.
Optimismos oficiais e verdades reais
O enviado especial dos Estados Unidos para o Ambiente, John Kerry, afirmou que o acordo alcançado na COP26 em Glasgow aproxima o mundo «mais do que nunca» de «evitar o caos climático».
Numa conferência de imprensa no final da conferência das Nações Unidas sobre alterações climáticas, Kerry afirmou que essa conclusão «não é um exagero», pois acredita que o pacto alcançado hoje à última hora, após tensas negociações e apesar de divergências entre os 197 países presentes, aprofunda os compromissos firmados no Acordo de Paris de 2015.
«Eu realmente acredito que, como resultado desta decisão e como resultado dos anúncios que foram feitos ao longo das últimas duas semanas, estamos na verdade mais perto do que nunca de evitar o caos climático e garantir um ar mais limpo, água mais segura e um planeta mais saudável», afirmou.
Numa referência à controversa alteração de um parágrafo onde é proposta de fim faseado do uso do carvão como fonte de energia e dos subsídios a combustíveis fósseis, Kerry salientou que essa questão é inédita neste tipo de declarações.
O antigo secretário de Estado norte-americano admitiu que o texto não é perfeito e que não gostou da forma como a emenda foi alterada, mas que teve de fazer uma escolha entre aceitar, ou pôr em risco o resto do acordo, que tem outras conquistas.
«A verdade é que o que aconteceu aqui é muito significativo», disse.
Diferente opinião têm os colectivos ecologistas. Sobre a inclusão da expressão «combustíveis fósseis» na declaração final de Glasgow, que está ausente até do Acordo de Paris, o colectivo português Climáximo que integra o movimento internacional pela justiça climática referiu que a celebração desse feito «durou pouco», uma vez que a formulação «evitou pôr em causa a continuação plena da indústria do carvão, petróleo e gás».
«Há uma alusão suave a um desmantelamento programado do carvão, o elo mais fraco, mas nada de concreto, e na mesma frase um apelo ao fim dos subsídios aos combustíveis fósseis», apontou o Climáximo.
Concluindo que a cimeira do clima em Glasgow «é a COP dos anúncios vazios», o colectivo ambientalista criticou o compromisso de travar a desflorestação até 2030, porque repete «uma promessa de 2014 que não só não travou a desflorestação como nem sequer impediu o seu aumento» e mantém a meta num futuro distante.
«Regressam as promessas de neutralidade carbónica em 2050, baseadas em offsets de carbono que se têm revelado enormes fraudes e colocadas num futuro tão distante quanto inútil», contestaram os ecologistas.
Da análise da COP26, o Climáximo alertou que o objectivo da neutralidade de carbono transformou-se num debate sobre «como começar uma nova ronda de colonialismo e extractivismo, onde ir buscar os novos minerais, onde ocupar terras para simular ação climática plantando monoculturas agrícolas e florestais para produção de biomassa e biocombustíveis».
«Ficámos a saber que há pelo menos 800 novos poços petrolíferos planeados até ao final de 2022, que a União Europeia quer financiar 30 novos projectos de gás com 13 mil milhões de euros de dinheiro público, além de projectos em outros locais do mundo. A expansão da produção de fósseis é um dos planos e a COP tornou-se o local de organização dos vários projetos futuros do capitalismo global», indicou o grupo ambientalista.
Neste âmbito, o colectivo afirmou que a maior delegação presente na COP26 «não era de qualquer país, mas sim da indústria fóssil, com mais de 500 lobistas presentes», criticando a recusa reiterada em confirmar um apoio há muito prometido aos países mais pobres, quer para mitigação de emissões, quer para adaptação aos efeitos das alterações climáticas, o que considera que «retira ainda mais legitimidade de um processo unilateral da liderança do capitalismo global».
A resposta está na luta de classes
O 1% mais rico da população emite mais gases com efeito de estufa do que os 50% mais pobres. Esta é uma das conclusões do último relatório da Oxfam, que denuncia as desigualdades nas emissões de CO2 e aponta directamente para o consumo dos mais ricos como um dos principais problemas na luta contra as alterações climáticas.
A actividade humana é a causa da aceleração das alterações climáticas, algo que foi cientificamente comprovado, mas em nenhum caso a responsabilidade é partilhada equitativamente e, por conseguinte, as responsabilidades também não devem ser igualmente as mesmas. Para fazer mudanças que contribuam verdadeiramente para abrandar o aquecimento global, será necessário lutar pela justiça climática que actue sobretudo sobre aqueles que mais contribuem para o aquecimento global, ou seja, aqueles que mais possuem e mais consomem.
Os meios de comunicação social costumam abordar os níveis de poluição por país sem ter em conta o número de habitantes de cada um e o seu historial acumulado de poluição desde o início da Revolução Industrial.
«O funcionamento do sistema capitalista baseia-se na procura contínua de crescimento através do aumento da produção, uma vez que gera mais-valia e desigualdades sociais, um modelo produtivo que não se constrói em torno de uma produção centrada na satisfação das necessidades das sociedades na medida certa e em conformidade com a sustentabilidade, os objectivos de redução do consumo de energia e as consequentes reduções das emissões de gases com efeito de estufa. Lucros elevados a baixo custo é a máxima de um modelo que, sem controlo ou organização planeada da produção, tende naturalmente para uma desproporção produtiva e um consumo frenético em quadros baseados unicamente na multiplicação e acumulação de riqueza por uma minoria. Sem dúvida, o futuro da luta permanente contra as alterações climáticas está intimamente ligado aos resultados e ao destino da luta de classes permanente.», conclui o ecologista espanhol Eros Labara no site El Salto.
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