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Feriado Romano

Transformar a inquietação num manifesto artístico contemporâneo não é um fenómeno assim tão frequente, até pela apropriação liberal do campo de batalha e pela institucionalização e relativização das lutas sociais.

Eça de Queiroz dizia que viajar para ver as vistas era inconsequente e que a «verdadeira» viagem precisava de tempo e de atenção à essência das cidades, às suas idiossincrasias, às suas singularidades sociais e culturais. Disse-o num tempo em que a esmagadora maioria da população portuguesa não conhecia, sequer, a capital do país ou até do seu distrito.  E essa tradição sobranceira queirosiana, essa snobeira da «verdadeira» viagem, da essência das coisas, da genuinidade, transitou para lá da burguesia. O acesso às viagens para fora do país massificou-se e o turismo transformou-se numa das maiores indústrias do mundo, com consequências profundas nas cidades. A política das cidades passou a ter no turismo um elemento determinante. 

Para satisfazer a sofreguidão do turista contemporâneo, que leva no sonho cenários das plataformas de streaming, mais ou menos comerciais, o modelo económico que gere as cidades reestruturou, nas últimas décadas, a estética urbana, a oferta comercial, a tabela de preços dos mais variados bens e a política de habitação. Tudo se uniformizou, sobretudo no contexto urbano da União Europeia. Talvez seja a isto que se chama projeto comum – a uniformização. 

Para as populações locais, começa a ser difícil manter um estilo de vida correspondente às suas capacidades ou até aceitar certas corruptelas da sua cultura, seja na gastronomia, seja na arquitetura. É como viver numa caricatura de nós próprios, o que eventualmente conduzirá a uma certa hostilidade com o turista e a um abandono do centro das cidades. Este fenómeno acontece um pouco por toda a parte e tem sido debatido e até combatido, numa disputa de interesses que nos dividem. Sentimo-lo nas duas dinâmicas deste nosso movimento  – a de residente e a de turista – e isso cria em nós um conjunto de contradições e fetiches (o da genuinidade, da pureza ou do hiper-realismo). 

Talvez, aliás, tenha sido isso que me levou a Dublin duas vezes para ver Fontaines DC – esse jogo de contradições e fetiches, disputado até pela sua própria população, na velha problemática ultra-identitária e nacionalista que percorre toda a cultura irlandesa, da literatura à música, passando pelas artes plásticas, pelo cinema e pela fotografia. O peso de um património intenso, germinado na convulsão da história do colonialismo britânico, não se dilui, expande-se e cria novas hipóteses de realidade, como aquela que a banda dublinense carrega ao longo dos seus três jovens discos, desde 2019. 

Se no seu primeiro disco, Dogrel, os Fontaines DC são um grupo de miúdos que vive orgulhosamente a sua cidade e a sua cultura contemporânea, misturada com o património cultural (Dogrel é o jargão dublinense), no segundo e terceiro discos, a banda evolui para uma nova consciência, pós-identitária, em que a realidade material se revela em coisas tão íntimas como o amor e a cidade parece agora um mundo invertido, em que as referências literárias surgem como guia, não no escuro ou na neblina, mas no encadeamento dos néons. 

«Talvez, aliás, tenha sido isso que me levou a Dublin duas vezes para ver Fontaines DC – esse jogo de contradições e fetiches, disputado até pela sua própria população, na velha problemática ultra-identitária e nacionalista que percorre toda a cultura irlandesa, da literatura à música, passando pelas artes plásticas, pelo cinema e pela fotografia.»

Há mais Beckett do que Joyce num disco como Skinty Fia (2022) e essa inquietação beckettiana tão agressiva, tão intensa, tão visceral esteve sempre presente em palco, no Vicar St. Sem trocarem uma palavra com o público, os Fontaines DC são o reflexo daquelas centenas de mulheres e homens, que ali à sua frente são projetadas para o seu mais obscuro e brilhante íntimo e voltam a trazer as duas dimensões que a Irlanda sempre se orgulhou de massificar: a da cultura literária e a da cultura popular. A poesia, a música e o grão da pele misturam-se e reproduzem não apenas um objeto de fruição (ainda que artístico), mas uma relação, entre nós e a cidade, entre nós e os outros, connosco próprios (uma exposição da intimidade). A música serve aqui como vertigem da consciência entre as palavras e o seu resultado – um precipício para um vazio trágico de uma identidade individual e coletiva.

Este conjunto de concertos dos Fontaines DC na sua terra natal vem numa altura em que a cidade volta a ter uma vaga de turismo, pós-pandemia, que monopoliza as ruas, os pubs, o comércio e o património material. Ao mesmo tempo, uma juventude frenética e sôfrega de vida, alheia às baixas temperaturas e ao cheiro da fast food contrasta com uma cidade de edifícios históricos, com uma população sem-abrigo significativa e com uma classe trabalhadora substancialmente imigrante, sem o charme dos nómadas digitais. Todas estas contradições são uma possibilidade nos interstícios das canções da banda, da poética de Grian Chatten, em quem dificilmente conseguimos perceber onde começa a arrogância e acaba a insegurança. Chatten é o espelho de tantos e tantos rapazes de peito feito, cuja bebedeira é uma crise existencial.

Também não deixa de ser interessante fazer uma leitura sobre a ausência de uma manifestação política óbvia, como acontece no caso de bandas dentro do mesmo espectro de rock como os Idles ou os Yard Act. Essa mesma leitura tentou ser feita sobre Samuel Beckett, num livro de ensaios de 2021 chamado Beckett and Politics. Nesta obra defende-se, tal como no Maio de 68, que a ausência de política é, em si, política. Mas a política aqui tem de ser entendida no seu sentido etimológico, para que se perceba que, na verdade, não há ausência de política na música dos Fontaines DC, bem pelo contrário. É igualmente curioso como naquela obra, a procura mais frequente entre ensaístas é de pistas para elementos políticos contemporâneos como o racismo, a luta lgbtqia + e o ambiente. Ora, esta manifestação de política, que está bastante presente nas ruas, vai encontrar na banda uma prevalência de assuntos mais amplos e mais esclarecedores sobre a sua realidade. 

Não obstante, o problema sério de violência (até organizada) que Dublin enfrenta, que se reflete certamente em matérias sérias como as referidas, as questões que surgem a montante têm um peso determinante que toda a música dos Fontaines DC vai privilegiar. A grande agressão a todos, dos mais pobres à pequena-burguesia, independentemente da sua identidade, está presente no quotidiano de forma bastante ostensiva, no acesso aos bens essenciais e no direito à cidade. Mas, nas ruas de Dublin, iremos encontrar mais manifestações de apoio à Ucrânia ou bandeiras arco-íris pintadas nas passadeiras do que propaganda de luta de classes, que parece quase invisível (ou invisibilizada), apesar das manifestações de trabalhadores das últimas semanas.

«A grande agressão a todos, dos mais pobres à pequena-burguesia, independentemente da sua identidade, está presente no quotidiano de forma bastante ostensiva, no acesso aos bens essenciais e no direito à cidade.»

É por isso que os Fontaines DC representam muito bem a essência do materialismo dialético, sem proselitismo, e o contraste com certas movimentações meramente performativas a quem basta a publicidade, mas que não refletem os elementos que desagregam na prática quotidiana, na vivência do espaço público e das relações interpessoais.  

Transformar a inquietação num manifesto artístico contemporâneo não é um fenómeno assim tão frequente, até pela apropriação liberal do campo de batalha e pela institucionalização e relativização das lutas sociais. É esta a grande marca que os Fontaines DC deixam na contemporaneidade.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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