Adrian Anagnost, professor de História de Arte na universidade de Tulane, assinou um artigo intitulado «When modernism met the mob in Brazilia» («Quando o modernismo encontrou a multidão em Brasília»), surpreendendo «os cenários urbanos dramaticamente diferentes» dos acontecimentos de Brasília e Washington ou as duas invasões dos espaços de poder.
O Palácio do Planalto, desenhado pelo arquiteto Oscar Niemeyer e finalizado em abril de 1960, foi um dos primeiros edifícios concluídos na cidade que foi imaginada e construída para ser a nova capital do Brasil, substituindo o Rio de Janeiro. A capital passava a estar no interior do país. Brasília significava, ao tempo, algo novo. Era o Brasil que se queria desenvolvido, que se projetava no e para o futuro. Pode uma cidade desenhada ser também uma força de transformações sociais e políticas?
Sede do executivo federal, a fachada do Palácio do Planalto é marcada pela rampa que permite o acesso ao salão nobre. À frente e à direita, um espelho de água. Foi por esta rampa que o novo Presidente do Brasil, Lula da Silva, subiu. Os seus apoiantes, uma maré de gente num dia quente, estavam em festa. A multidão que acompanhava o acontecimento. Mais do que isso: que é parte dele.
Talvez a imagem que queira guardar, difundida em vários meios de comunicação e que circulou pelas redes sociais, seja, precisamente, a de Lula da Silva, acompanhado por aquelas e aqueles que lhe iriam entregar a faixa presidencial, pela sua mulher Janja Lula da Silva e, ainda, pela cadela Resistência. Em fundo nas imagens, todas e todos os que vieram participar naquele momento. Em fundo nas imagens, mas nem por isso devem ser vistos como secundários ou insignificantes.
Lula da Silva não recebeu a faixa das mãos do Presidente cessante, que não estava sequer no país. É a primeira vez, desde o final da ditadura, que tal acontece. São outras as mãos que entregam a faixa a Lula da Silva. E estas mãos têm poder, significado e importância. Ali estavam: Aline Sousa, Francisco, o cacique Raoni Metuktire, Wesley Rodrigues Rocha, Murilo de Jesus, Jucimara Fausto dos Santos, Ivan e Flávio Pereira. Têm nome, têm a sua história de vida. São luta, são trabalho, são militância, são ativismo. São futuro. São eles. E são mais do que eles.
«São outras as mãos que entregam a faixa a Lula da Silva. E estas mãos têm poder, significado e importância.»
Subir. Lula ao lado do cacique Raoni Metuktire. Francisco, dez anos, ao lado de Lula. Mãos dadas. E por momentos, recordamos: ninguém larga a mão de ninguém. Subir. Sorrir. Há esperança. O local: Palácio do Planalto, Praça dos Três Poderes, Brasília. Neste início de ano, em 2023.
Domingo, dia 8 de janeiro. A multidão chegou à Praça dos Três Poderes – um local simbólico, representando o sistema de governo brasileiro. As instituições do Estado Democrático de Direito. Jair Bolsonaro não estava no país. Abandonara o Brasil no final de 2023, com destino à Flórida, nos Estados Unidos.
Talvez sejam as imagens que não quero guardar. Mas de alguma forma, não podem ser obliteradas ou esquecidas. Porque têm significado. Porque são também um aviso, uma advertência.
Os partidários de Bolsonaro sobem a mesma rampa. A icónica rampa. E não deixam de a marcar, de a vandalizar. Sete dias depois de Lula. Descrentes do resultado das eleições – a teoria da conspiração que se difundiu. Talvez nos recordemos de cenas de um outro janeiro, o norte-americano, com a invasão do Capitólio, em 2021. Não são uma mera repetição, é certo. Mas associam-se facilmente nos fios que tecem a nossa memória. Podem ser semelhantes, mas não nos habituamos a elas. Não queremos habituar-nos a elas.
Invadem o Palácio do Planalto – bem como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso. Destruição.
No Congresso, desdobraram uma faixa onde se lê: «Intervenção». Há uma percentagem não despicienda de brasileiros que diz querer uma intervenção militar.
Eleições ganhas. Resultados contestados – sem qualquer base factual. A tomada de posse em festa. A invasão dos locais de poder.
«Os partidários de Bolsonaro sobem a mesma rampa. A icónica rampa. E não deixam de a marcar, de a vandalizar. Sete dias depois de Lula. Descrentes do resultado das eleições – a teoria da conspiração que se difundiu.»
No Brasil – e por outros países, como Portugal – foi afirmada e reafirmada a condenação aos atos desse domingo, de vandalismo e destruição. No Brasil – e por outros países, como Portugal – assistimos ainda a atos em defesa da democracia. Afinal, que democracia queremos ter?
No Brasil, em alguns casos, fala-se do início de uma mobilização permanente. De uma mobilização popular que corre a par com a ação das instituições.
Olhar para o mesmo espaço, enquanto local simbólico de poder e do poder, voltar à sucessão de imagens dos diferentes acontecimentos, traz-nos um sentimento de inquietação – mas talvez seja necessário sacudir e afastar o que tiver de entorpecedor. Não são, definitivamente, tempos de inércia – em rigor, nunca o são.
Mãos dadas. Não largar a mão de ninguém.
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