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Manuel Loff. «Quanto menos esquerda houver mais o fascismo avança»

A conversa teve como ponto de partida as eleições italianas. Manuel Loff desmente a ideia que a extrema-direita sobe com os votos da esquerda e afirma que os novos fascismos foram relegitimados pela direita tradicional e pelo discurso ideológico do choque de civilizações.

O historiador afirma que é preciso combater a desmobilização no voto popular.  
CréditosDR / DR

No seu artigo no Público, faz um paralelo entre a ascensão ao poder de Mussolini e a previsível vitória de Giorgia Meloni, dos Irmãos de Itália, nas próximas eleições italianas. Não há uma diferença muito grande no processo que leva ao aparecimento desta extrema-direita e ao processo que leva ao aparecimento do fascismo? Alguns marxistas consideram que o fascismo e o nazismo na Alemanha surgiram também como forma de resposta ao ascenso da luta de classes e dos partidos comunistas, situação que está longe de se verificar hoje em Itália.

Estou de acordo consigo, mas o fascismo - enquanto movimento e enquanto extrema-direita muito mais radical que as outras direitas e, por comparação, às direitas anti-revolucionárias dos séculos XVIII e XIX que também nasceram como reacção às revoluções desse período - é uma direita adequada à sociedade de massas. É verdade que o fascismo nasce coincidindo com o avanço, no pós-revolução soviética, da classe operária e a intensificação da luta de classes, mas não é aí que assume o poder. Toma o poder em Itália em 1922 e 1933 na Alemanha. Em ambos os casos surge em coligação com a direita tradicional e sendo uma componente minoritária, no caso italiano, do resto da direita. O fascismo italiano nasce em 1919, mas não toma o poder aí, nem em 20, nem em 21, vai ter de esperar pela derrota do biennio rosso [foi um período de dois anos de intenso conflito social na Itália que se seguiu após a Primeira Guerra Mundial. O período revolucionário foi seguido por uma violenta reação dos camisas negras fascistas e pela Marcha sobre Roma liderada por Benito Mussolini em 1922.] e pelo refluxo do movimento operário para ganhar impulso para se lançar ao poder. O que confirma uma das teses que coloquei no artigo do Público, que é quanto menos esquerda a sério houver, não confundir com a social-democracia, mais a extrema-direita vai avançar. Quanto menos esquerda operária e de frente popular existir, com um conteúdo de classe e marcadamente à esquerda, mais o fascismo avança. Esse é o caso quer de 22 em Itália, quer de 33 na Alemanha.

Enquanto o fascismo não punha em causa o capitalismo, houve mais confusão na relação entre a extrema-direita hoje e o neoliberalismo. Aparecendo muitas vezes a contestar aspectos da globalização económica e financeira. Fazendo até uma certa defesa das condições laborais mínimas e de um maior poder do Estado.

Não estou de acordo. No caso italiano, teria de ver com mais pormenor, o programa dos Irmãos de Itália não era a defesa dos postos de trabalho. Deve recordar-se que nas eleições de 2018, nas quais a Liga é o segundo partido mais votado, a seguir ao Movimento Cinco Estrelas, a proposta de Salvini era a Flat Tax [taxa única de impostos independentemente do volume dos rendimentos]. E no caso da Frente Nacional, em França, depois transformada em União Nacional, o que se tem é uma mudança de linha. Essa alteração não se dá com a chegada de Marine Le Pen ao poder, mas no momento em que ela e os seus conselheiros, nomeadamente Florian Philippot, se vêem que com a crise muito evidente da social-democracia francesa - com os cinco anos da presidência absolutamente catastróficos de François Hollande, com ministros tão «socialistas» como Macron, ainda por cima numa pasta como a Economia -, a extrema-direita apercebe-se do valor estratégico de ir apropriar-se, de uma forma pouco séria, de determinadas bandeiras que a esquerda sempre teve, em relação, por exemplo, à política neoliberal da União Europeia.

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(Neo)fascismo, antifascismo e transição autoritária

Só saindo deste ciclo politicamente neurótico e retomando em força, e com urgência, as batalhas democráticas que continuam por fazer, é que conseguiremos apreender o neofascismo em toda a sua natureza.

Manifestação antifascista e antirracista em Lisboa, a 6 de junho de 2020 (foto de arquivo)
CréditosManuel de Almeida / LUSA

O fascismo nasceu como um novo produto ideológico das direitas do século XX, com uma origem e uma génese específicas na Itália do pós-I Guerra Mundial. Conquistou, contudo, o seu lugar na História justamente porque ganhou dimensão internacional, fascizando o corpus doutrinal de outras direitas em muitos contextos nacionais diferentes.1 Produtos de um processo degenerativo do sistema liberal, em cuja história se inscreve, o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, considerados justamente prototípicos do fenómeno à escala internacional, ascendem ao poder cumprindo as normas legais de um liberalismo autoritário2 no âmbito de uma transição autoritária (do sistema liberal para a ditadura fascista).

«Produtos de um processo degenerativo do sistema liberal, em cuja história se inscreve, o fascismo italiano e o nacional-socialismo alemão, considerados justamente prototípicos do fenómeno à escala internacional, ascendem ao poder cumprindo as normas legais de um liberalismo autoritário no âmbito de uma transição autoritária (do sistema liberal para a ditadura fascista)»

Nos estudos do fascismo desenvolveram-se, entre muitos, dois debates clássicos que permanecem muito úteis para discutimos a extrema-direita que dele é herdeira. Em primeiro lugar, a distinção entre fascismo-movimento e fascismo-regime, isto é, entre os períodos e os contextos em que ele (ainda) não se constituiu como regime e ideologia de Estado e os que, sobretudo depois da nazificação da Alemanha a partir de 1933, tal acontece um pouco por toda a Europa; nos nossos dias, isto significa estudar a diferença entre as direitas radicais na oposição e no poder. Em segundo lugar, a aplicabilidade do conceito a uma grande variedade de casos nacionais – fascista foi apenas o partido e o regime de Mussolini?, ou devem também ser considerados como tal o nazismo, o franquismo, o salazarismo, o regime ustasha na Croácia, entre muitos outros? –, e contextos históricos – o fascismo teve a sua época, como lhe chamou Thomas Mann, e esta terminou definitivamente com a derrota militar nazi de 1945?, ou, sob muito variadas formas, foram e são neofascistas ou pós-fascistas movimentos, partidos e formas de governo que se desenvolveram/impuseram uma vez passada a época do fascismo, desde as extremas-direitas europeias mais clássicas (francesa, italiana, alemã), às formas ideológicas e orgânicas presentes em ditaduras reacionárias dos últimos 75 anos (sobretudo as latinoamericanas e as duas ibéricas nas suas versões adaptadas a um mundo de que havia desaparecido já qualquer esperança de uma Nova Ordem fascista), até às direitas radicais (demasiado) frequentemente descritas como populistas do século XXI?

Continuidades ou diferença?

Diferenças de contexto, comunidade ideológica e perceção de continuidades são questões essenciais tanto para analisar as experiências políticas da época do fascismo (1922-45), como para discutir as direitas extremas dos nossos dias. A posição maioritária, e que vem ganhando contornos hegemónicos, é a de sublinhar a diferença entre as novas extremas-direitas, que julgamos conhecer melhor porque com elas vivemos, e aquelas que há cem anos cunharam o nome de fascismo. Antes de mais, esta parece-me a atitude intelectual mais fácil de assumir: em contextos inegavelmente diferentes, os objetos que neles encontramos parecem-nos também eles diferentes, pelo que a perspetiva com que, à partida, os abordamos é a da verificação da diferença face a outros objetos que já conhecemos, antes de mais por não termos sido contemporâneos dos objetos do passado, que nos são inevitavelmente mais estrangeiros (como lhes chama David Lowenthal) que os do presente. Dizia Eric Hobsbawm que «a maioria dos seres humanos opera como os historiadores: só retrospetivamente conseguem reconhecer a natureza da sua experiência.»3 É evidentemente difícil conseguir dar um nome adequado ao que vivemos enquanto o vivemos. Por outro lado, muita da discussão que hoje fazemos sobre a natureza da extrema-direita é a mesma que se vem fazendo há décadas sobre a natureza dos regimes autoritários da época do fascismo, e resulta, afinal, de saber-se que grau de flexibilidade é admissível no uso das categorias políticas. Por norma, aqueles que negam que ditaduras de direita do período de entre guerras, como a salazarista, tenham sido versões nacionais de um fascismo como fenómeno internacional, não se perguntam se são hoje igualmente democráticos regimes tão diferentes como o indiano ou o francês, e se já o era o sistema político norteamericano em 1776 ou em 1865. A pergunta nada tem de retórico uma vez que a Ciência Política mainstream tende a dar-lhe uma resposta positiva em todos os casos, ao mesmo tempo que entende que eram tão comunistas e totalitários (para usar um vocabulário hegemónico que não é o meu) o regime soviético em qualquer dos seus ciclos históricos, o dos Khmeres Vermelhos ou a Revolução Cubana, entre muitos outros exemplos. Porque se aplica, então, um grau tão amplo de flexibilidade para falar de democracia ou de comunismo e uma perspetiva tão restritiva para falar de fascismo? A resposta é simples: porque se aceita quase sempre trabalhar com conceitos genéricos de democracia e de comunismo e, pelo contrário, se recusa fazer o mesmo com o fascismo.

«se a chegada da extrema-direita ao poder significa «mudar o sistema a partir de dentro», deve presumir-se que a mudança deixa mais ou menos intacta a natureza democrática do poder? Deixou Orbán intacta a democracia? E Bolsonaro, ou Duterte? Se não se trata de «mudar tudo», como designar, então, as alterações que todos eles, chegados ao poder por via constitucional exatamente como Hitler e Mussolini, vão introduzindo?»

Para o que aqui nos ocupa, a questão é saber se, e quais, direitas extremas dos nossos dias são neofascistas, isto é, se são a versão do fascismo adaptada às condições específicas (mas muito diferentes entre si) de sociedades do século XXI marcadas pelo agravamento generalizado da desigualdade social e da perda de representatividade dos sistemas políticos. Nesta nova fase da globalização capitalista que coincide com o triunfo do neoliberalismo desde os anos 1980, são a retórica ocidentalista e o racismo culturalista dos nossos dias, empapados do Choque de Civilizações de Huntington, herdeiros do discurso da decadência do Ocidente de Spengler4 dos anos 20 que enformou a mundivisão fascista? A normalização do discurso xenófobo e racista, agravada com a chamada crise dos refugiados da última década (especialmente dos anos 2015-16), partilha a mesma mundivisão do fascismo na sua época? Há ou não continuidade entre o racismo politicamente organizado da primeira metade do século passado e o dos nossos dias, que alimenta movimentos políticos que, nos países mais ricos do Ocidente, se estruturam especificamente em torno do discurso xenófobo (contra o imigrante ou o refugiado, contra as minorias muçulmanas e ciganas), disfarçado de culturalismo determinista (hoje a «inassimilabilidade» do muçulmano ou do cigano, antes a do judeu)?

Para que serve dar um nome ao que vivemos?

Não pretendo fazer aqui uma discussão detalhada em torno da terminologia mais adequada para categorizar a extrema-direita que vem avançando por todo o Ocidente, não desde o Brexit ou a eleição de Trump, em 2016, mas desde pelo menos há 25 anos, desde que a direita radical começou o assalto ao poder nos países pós-comunistas, na Europa ocidental, a começar pela Itália, com a chegada de Berlusconi ao poder (1994) aliado (como por toda a parte acontece com a direita clássica) com a extrema-direita, ou nos EUA, quando a radicalização à direita do Partido Republicano levou ao poder George W. Bush (2000). Limito-me a contestar a validade do uso (em geral, puramente confrontacional) da categoria de populismo, mesmo que adjetivado como sendo de extrema-direita, expressão que, mimetizando o uso vulgar do totalitarismo, presume que existem tantos populismos quantos discursos antissistémicos se fizerem à esquerda e à direita; bem como a aplicabilidade do conceito de pós-fascismo para sob a sua capa se reunirem movimentos que «já não são fascistas [porque] surgiram depois da consumação da sequência histórica dos fascismos clássicos», dos quais «se emanciparam, ainda que na maioria dos casos o conservem como matriz». Impressiona-me que um historiador como Enzo Traverso, apesar de reconhecer que «Mussolini e Hitler chegaram ao poder por via legal», aceite que «a vontade [deles] de derrubar o Estado de Direito e apagar a democracia estava fora de discussão» permite marcar uma diferença essencial com a atitude da extrema-direita dos nossos dias, que, segundo Traverso, «quer transformar o sistema a partir de dentro, enquanto o fascismo clássico queria mudar tudo»5. Neste âmbito, se a chegada da extrema-direita ao poder significa «mudar o sistema a partir de dentro», deve presumir-se que a mudança deixa mais ou menos intacta a natureza democrática do poder? Deixou Orbán intacta a democracia? E Bolsonaro, ou Duterte? Se não se trata de «mudar tudo», como designar, então, as alterações que todos eles, chegados ao poder por via constitucional exatamente como Hitler e Mussolini, vão introduzindo? Mesmo não afirmando querer pôr em causa a natureza liberaldemocrática dos regimes, a extrema-direita no poder (e fora dele) ataca liberdades e direitos individuais e coletivos, coloniza o poder judicial, as forças de segurança e militares, propõe a ilegalização de forças políticas, a perseguição de organizações/movimentos associados a minorias étnicas, e assume práticas ultrassecuritárias contra inimigos internos (as minorias, os migrantes) e externos. Chamar, como está em voga, iliberal (como Fareed Zakaria) a este processo político parece-me muito menos adequado que nele reconhecer o liberalismo autoritário típico dos estados em transição para o autoritarismo. Um regime em transição muda inevitavelmente de natureza ao fim de algumas etapas; uma democracia em transição autoritária deixará sempre de ser democrática a menos que o processo seja revertido. Não creio ser razoável definir o ritmo da transição como indicador da natureza diferente do horizonte final da transição; a democratização social, como processo transicional que também é, produziu resultados muito diferentes e muito incompletos em países aos quais, em geral, vejo pouca gente recusar chamar democracias. Da mesma forma, a tese que deduz que as diferenças estruturais dos contextos históricos do fascismo na sua época (1922-45) e aquele em que hoje se expande a extrema-direita são obstáculo suficiente para não a podermos considerar neofascista, deveria para ser aceitável obrigar quem a sustenta a recusar falar hoje de democracia em contextos tão radicalmente diferentes do da Atenas do século V a.C.; ou, por comparação com o contexto bolchevique de 1917-18, chamar comunista aos partidos que, em estados liberaldemocráticos, disputam eleições e chegam a partilhar o poder sem propriamente subverter «por dentro»...

Antifascismo sem (neo)fascismo?

E chegamos ao antifascismo. Sem se assumir haver uma continuidade entre as direitas extremas de há cem anos (fascistas) e as de hoje (neofascistas), não será viável estratégia alguma de reativação do antifascismo como cultura política e frente social de resistência ao ataque às três grandes conquistas de 1945: a construção da democracia social e a gradual (ainda que, uma vez mais, sempre incompleta) emancipação das classes trabalhadoras; a fundação da democracia sobre a rejeição radical das mundivisões racistas que conduziram a Auschwitz, da dominação colonial e da opressão de todas as minorias étnicas; a emancipação das mulheres de todas as culturas e de todos os continentes, de metade da Humanidade, motor das batalhas por outras emancipações, bem mais tardias, das subjetividades oprimidas definidas em torno da identidade sexual. Sem constituir em si mesmo um movimento político e social próprio, o antifascismo foi uma plataforma de resistência à expansão do fascismo e à subsequente dominação por ele imposta. O que, contudo, marcou a sua identidade na história foi a tomada de consciência de que, quer na Guerra de Espanha (1936-39), quer quando se começou a percecionar coletivamente a possibilidade efetiva de derrotar a Nova Ordem fascista, a luta antifascista era irreversivelmente uma luta pela reconstrução da democracia muito para lá dos estritos objetivos de liberais imperialistas como Churchill, De Gaulle ou Roosevelt, que lutaram contra o expansionismo de Hitler, Mussolini e Tojo mas que não pretendiam nem descolonizar, nem democratizar mais do que a reposição reformada dos termos estruturais do liberalismo oligárquico de 1939.6

«Fornecendo uma explicação convincente para a ascensão e a derrota do nazifascismo, hegemónica entre 1945 e os anos 70, o antifascismo e a memória coletiva por ele embebida sofreram um ataque generalizado com o avanço do neoliberalismo e a implosão do mundo soviético, justamente porque podiam reivindicar ter conseguido derrotar o fascismo como experiência histórica limite na história da violência como prática política, responsável pelo conflito mais mortífero e o modelo de genocídio mais eficaz e industrializado da história.»

Fornecendo uma explicação convincente para a ascensão e a derrota do nazifascismo, hegemónica entre 1945 e os anos 70, o antifascismo e a memória coletiva por ele embebida sofreram um ataque generalizado com o avanço do neoliberalismo e a implosão do mundo soviético, justamente porque podiam reivindicar ter conseguido derrotar o fascismo como experiência histórica limite na história da violência como prática política, responsável pelo conflito mais mortífero e o modelo de genocídio mais eficaz e industrializado da história. Como aliança historicamente contingente entre as duas grande famílias ideológicas que, por motivos diferentes, se reviam na Revolução Francesa (o liberalismo e o socialismo), e de uma terceira que o fazia relativamente à Revolução Russa (o comunismo), a aliança antifascista das Nações Unidas (a designação que os aliados de 1941 se deram a si próprios) dividiu-se mal a ameaça fascista foi militarmente eliminada, em 1945, e em torno das mesmas questões que tinha dividido as suas componentes no passado (a dominação burguesa, a natureza intrínseca da desigualdade capitalista, a resistência liberal à democratização social, o imperialismo). É ainda nesse ciclo que nos encontramos: forças políticas muito diferentes podem partilhar (ou melhor, ter partilhado) uma mesma cultura antifascista, mas legitimamente não partilham os mesmos modelos de sociedade.

Instrumento central para a defesa de um conjunto articulado de pressupostos democráticos sem os quais se vive automaticamente em ditadura socialmente reacionária, o antifascismo-movimento só se reativará quando os democratas percecionarem coletivamente o perigo, a ameaça (neo)fascista. Se continuarem convencidos que Le Pen, Salvini, Abascal e Ventura, como antes Trump ou Bolsonaro, não passam de figuras efémeras de um ressentimento punitivo e irracional com os quais se pode coexistir porque não querem, ou não conseguem, destruir os regimes liberaldemocráticos dentro dos quais operam, a luta política continuará a ser feita sem recurso ao frentismo antifascista – o mesmo que demorou a mobilizar, uma quinzena de anos passados sobre a ascensão de Mussolini ao poder. O novo ciclo histórico em que entrámos, de neuropolítica7, ansiedade coletiva, recessão económica sem precedentes e securitização global que a gestão política da pandemia tem vindo a acentuar, parece, aliás, ter tudo para facilitar transições autoritárias e dificultar a mobilização antifascista. Só saindo deste ciclo politicamente neurótico e retomando em força, e com urgência, as batalhas democráticas que continuam por fazer, é que conseguiremos apreender o neofascismo em toda a sua natureza.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90)

  • 1. Manuel Loff, "O nosso século é fascista!" O mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945), Porto: Campo das Letras, 2008.
  • 2. Daniel Woodley, Fascism and Political Theory. Critical Perspectives on Fascist Ideology, Londres/NY: Routledge, 2010.
  • 3. Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos. História breve do século XX, 1914-1991, Lisboa: Presença, 1996.
  • 4. Der Untergang des Abendlandes: Umrisse einer Morphologie der Weltgeschichte, 2 vols., Viena: Braumüller, 1918, e Munique: C. H. Beck, 1922. Edição em português: A decadência do Ocidente: esboço de uma morfologia da História Universal, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
  • 5. Enzo Traverso, Las nuevas caras de la derecha, trad. esp., Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2018, pp. 12, 18 [a edição original, contudo, intitula-se Les nouveux visages du fascisme, Paris: Textuel, 2017].
  • 6. O conceito de «antifascismo contrarrevolucionário» que Michael Seidman aplica àquelas três personagens e ao conjunto dos setores sociais que, nos EUA e nos Impérios britânico e francês, se empenharam na derrota dos nazis mas que, ao modo de Fukuyama, só teriam «[obtido] uma vitória completa quando o comunismo soviético se derrubou em 1989»(Antifascismos, 1936-1945. La lucha contra el fascismo a ambos lados del Atlántico, trad. esp., Madrid: Alianza, 2017, p. 27), parece-me essencialmente ahistórico por omitir a natureza de disputa imperial presente na guerra de Hitler contra as potências ocidentais.
  • 7. Engin F. Isin (2004), «The neurotic citizen», Citizenship Studies, 8:3, pp. 217-235.
Tipo de Artigo: 
Opinião
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Com a republicação deste artigo de Manuel Loff assinalamos, neste dia 9 de Maio, os 79 anos da derrota do nazi-fascismo, na qual o Exército Vermelho e a União Soviética tiveram um papel determinante.
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Subscrevo a tese que esta extrema-direita é neofascista. Isto é importante para dizer que se queremos comparar com há 100 anos, como faço, temos de ter pelo menos duas versões do fascismo. Ao longo da história temos de ter variadíssimas versões, adequadas ao ciclo histórico em cada momento, das ideologias e das organizações que se reconhecem exclusivamente nessa fisiologia, a começar pelos comunistas. Sem esquecer que ser-se comunista em 1917 é bastante diferente que ser-se comunista em 2022, por exemplo. Tem a ver com os ciclos históricos e com a forma como se fazem propostas, de natureza política, e como se age. Da mesma forma que a social-democracia de antes 1914, e da votação dos créditos de guerra, é diferente da de 1918 e daquela dos nossos dias.

Para fechar a discussão, parece-me que são neofascistas. Por serem neofascistas têm, forçosamente, uma herança histórica do fascismo de há cem anos, mas é evidente que se comportam no contexto social em que vivem de formas diferenciadas. Nenhuma ideologia, com o mínimo de capacidade de enraizamento social, sobrevive sem se adaptar.

Há uma coisa que aparece como evidente, o crescimento da extrema-direita, na sua versão actual, faz-se como reacção às políticas neoliberais e a uma certa crise de representatividade política.

A segunda sim, mas a primeira não estou nada convencido disso. Eu não acho que com a ultradireita, racista, a caminho da via de neofascização na Europa e na América, se verifique isso. A ultradireita que mais sucesso tinha nos anos 70, que nos tendemos a esquecer, era a escandinava. Os partidos desse tipo na Noruega e na Dinamarca tiveram um grande sucesso a partir de quê? Na luta contra o Estado de bem-estar social; em propostas como as das Flat Tax, para acabar com a progressividade dos impostos; no combate àquilo que eles entendem ser uma política propiciadora do parasitismo. Essa extrema-direita defendia nos anos 70, depois da primeira crise petrolífera de 1973, que os desempregados viviam à custa do Estado. A extrema-direita criou-se, numa primeira fase, a partir do combate ao Estado Social, atacando os sectores populares que dele beneficiavam e, numa segunda fase, a partir dos anos 80/90, a ser contra a propagada vaga de imigrantes.

Por que se mantem essa extrema-direita hoje, se Macron e os liberais de serviço já fazem esse papel?

A extrema-direita dos libertários norte-americanos, que ama Hayek e a Escola de Chicago, surge numa fase em que ainda há um amplo consenso, que liberais e conservadores não se tinham atrevido a romper, em relação à função pacificadora do capitalismo que o Estado Social tinha. Com a queda da União Soviética e do campo socialista, esta função pacificadora, que se baseava em parte no medo do comunismo, passa a ser posta em causa por vários sectores políticos.

Mas não há uma alteração nos tempos de hoje? Quando se vê o debate ente Macron e Le Pen,  o único que fala de dignidade do trabalho, de baixos salários, de uberização e precarização do trabalho é...

…  a Le Pen. Quando a extrema-direita atinge um mínimo de representatividade em França, a partir de 1984, já estamos em plena fase de Jacques Delors nas instituições europeias. O Acto Único é de 1986, as primeiras eleições em que a Frente Nacional chega aos 10% são as Europeias de 1984.

Em 1965, o candidato de extrema-direita [advogado do escritor colaboracionista Céline] teve 5,2% e representava muito menos [apesar de ser da extremamente anticomunista, apoiou Miterrand na segunda volta, o que fez com que Jean-Marie Le Pen, de quem foi padrinho de uma das filhas, abandonasse a sua campanha]. Em 1984, a batalha da Frente Nacional não é contra actos únicos nem coisa nenhuma. A extrema-direita chegou à crítica ao neoliberalismo, via crítica à globalização (mundialização, como a chamam os franceses) fomentada por organizações supranacionais. As objecções da ultradireita, ainda nos debates de hoje, em França, Itália, países escandinavos e na Europa Oriental, não são sobre o conteúdo, mas apenas sobre a natureza do processo de decisão política que congela na superestrutura europeia a capacidade de decidir, que estes partidos entendem dever ser tomadas à escala nacional. A extrema-direita está a liderar governos há bastantes anos na Polónia e na Hungria. Onde é que estão os pedidos de saída da União Europeia? E  na Croácia e na Eslovénia, onde a extrema-direita entra no poder, onde é que estão as críticas à união monetária e ao euro? As suas críticas centram-se quase exclusivamente na política de refugiados e imigração, em que a União Europeia não tem competências como tal. E repetem toda uma retórica, muito semelhante à dos nazis na República de Weimar, em que os nazis viam marxismo por todo o lado. Quando nem o SPD governou mais de um terço desses anos, os nazis descreviam como marxismo tudo quando era Weimar. A extrema-direita de todos esses países descreve como marxismo cultural e ideologia de género e multiculturalidade de muitas das políticas europeias. É sobretudo nesse campo que são feitas as críticas à UE.

Recordo o caso italiano. Quem é que ameaçou sair do euro nas eleições de 2018 em Itália? Foi o Movimento Cinco Estrelas, não foi Salvini. Este,  como agora Meloni, vai governar com um dos maiores ultraliberais da política italiana das últimas décadas, chamado Sílvio Berlusconi. Não há incompatibilidade entre neoliberalismo e extrema-direita. Há um erro histórico de análise ao se vir dizer que o fascismo é uma ideologia estatizante do ponto de vista económico, cuja crítica ao liberalismo tem uma forte componente económica. O corporativismo é uma crítica ao capitalismo liberal, mas não é uma crítica ao capitalismo. Os únicos bem que são nacionalizados, no período do nazismo, são bens das minorias étnicas, sobretudo dos judeus.

Há também uma retórica tipicamente neoliberal que tem procurado regressar nos últimos vinte anos, por via da Europa Oriental, ao conceito de totalitarismo e agora no Ocidente ao conceito de populismo, tentando amalgamar do mesmo lado contra o capitalismo: a extrema-direita e aquilo que esse sector chama a extrema-esquerda.

É a retórica da autocracia contra democracia.

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«O novo normal» que não é tão novo assim

AbrilAbril conversou com Filipe Guerra, Manuel Loff e Tiago Vieira, os autores da obra recentemente publicada, um instrumento para a reflexão sobre a pandemia e seus impactos na democracia, trabalho e União Europeia.

Sessão de lançamento do livro, apresentado por Ana Sá Lopes, na Biblioteca Camões, em Lisboa, a 26 de Fevereiro de 2022
Créditos

Publicado em Dezembro de 2021 pela Página a Página,  O Novo Normal, Securitização, Precariedade e (des)Integração Europeia em tempos de pandemia  é um exercício de sistematização e análise dos últimos dois anos, que pretende convocar o debate público sobre as implicações das medidas adoptadas na gestão da pandemia.

Quando é que decidiram começar a escrever e depois publicar, sem esperar por um eventual desfecho da pandemia?

Manuel Loff: Tomei a iniciativa de fazer este livro, desafiei o Tiago Vieira e, ainda no Verão de 2020, juntou-se o Filipe Guerra. Era forçoso que, do ponto de vista das Ciências Sociais, se reunisse documentação e informação sobre a qual pudéssemos reflectir e que nos permitisse dar nome aos fenómenos que estávamos a viver. Eric Hobsbawm dizia que raramente se consegue dar nome àquilo que se vive enquanto se vive, que é difícil reflectir sobre as coisas enquanto elas estão a decorrer. No entanto, apesar de ter alguns elementos novos, parecia-nos que aquilo que estava a decorrer era uma acentuação muito acelerada de tendências que vinham de trás, o que acaba por ser uma das teses centrais do nosso livro. Afirmamos que, não havendo nada de estritamente novo na gestão da pandemia, a diferença está na dimensão das coisas e na rapidez com que processos que já estavam em curso se estão a acentuar. Assim, em primeiro lugar parecia-nos urgente reflectir e, em segundo lugar, tentar dar nome a esses processos. 

«Afirmamos que, não havendo nada de estritamente novo na gestão da pandemia, a diferença está na dimensão das coisas e na rapidez com que processos que já estavam em curso se estão a acentuar»

Manuel Loff

Alguns dos conceitos que vão surgindo ao longo do livro são reflexo de preocupações específicas que cada um de nós tinha, tendo em conta o contexto: o medo político e a política do medo, as questões da securitização ou a uberização das relações de trabalho, são metáforas muito evidentes do capitalismo do século XXI. Era preciso testar se conceitos que já tínhamos se aplicavam agora, e se achávamos que deveriam surgir outros. Por outro lado, ao longo deste ano e meio – começámos no Verão de 2020 e acabámos em Outubro de 2021 – várias vezes pensámos que a pandemia tinha acabado e que iríamos escrever uma coisa histórica, referente estritamente ao passado, e que não iríamos publicar reflexões com a pandemia a decorrer, sem nunca tomar uma decisão sobre se deveríamos ou não esperar pelo seu fim.

Insisto na ideia de a gestão da pandemia ter sido pautada por continuidades. Defendem que os maiores problemas que enfrentámos neste período também têm a ver com uma retirada de direitos que já estava em curso, como a precariedade nas relações laborais, a falta de investimento público na saúde e a desigualdade na distribuição dos rendimentos?

Tiago Vieira: Sim, mas creio que o grande desafio foi emprestar densidade analítica a um alvo em movimento. Nós não queríamos fazer um resumo do que se passou, pelo que o livro não é uma cronologia da pandemia. Tínhamos que reportar os factos, é certo, mas tentando introduzir uma dimensão analítica àquilo que estava a acontecer. Começamos a pandemia com apelos de diversas entidades a dizer «vai ficar tudo bem» e nós começámos a escrever o livro justamente para desmontar essa ideia. Haverá hoje muito pouca gente a pensar que ficou tudo bem ou que vai ficar. O agravamento das injustiças sociais e das desigualdades são exemplos muito prementes. Só o futuro nos trará um retrato completo, mas o que conseguimos antever a partir do presente e que vertemos no livro é que, por exemplo, no quadro das relações laborais há, mais do que uma alteração de forma, uma alteração de conteúdo nas relações de poder dentro dos locais de trabalho.

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A pandemia é colocada ao serviço de um agravamento da securitização [das relações laborais]. Hoje, as relações de força em muitas realidades que gravitam na esfera laboral são mais desfavoráveis aos trabalhadores, que estão sujeitos a mais constrangimentos, quer pela precarização formal das relações laborais – toda esta gente que foi despedida e que agora é recontratada mas em condições piores –, quer por se continuar a cavalgar neste fetiche das plataformas, quer pela realidade do teletrabalho. Continua talvez por discutir e por apurar quais são as implicações do ponto de vista da organização dos trabalhadores, seja da sua organização de vida individual, mas sobretudo da organização colectiva, em momentos de embate com entidades patronais ou em momentos de embate com políticas laborais ainda piores. A desarticulação do movimento dos trabalhadores é um risco iminente, embora talvez ainda não evidente, da forma como a gestão da pandemia afectou as relações de trabalho.

Outra das vossas teses é que as medidas de «excepção» poderiam ser utilizadas a favor dos trabalhadores – impostos sobre o capital, maiores investimentos, contratações, políticas públicas, mas que a correlação de forças determinou o contrário. Os trabalhadores têm à partida razão para desconfiar quando se fala de aplicar medidas de excepção?

Manuel Loff: Sim, e notamos que o contexto político-ideológico tem criado o paradigma de que toda a vida colectiva está baseada, acima de tudo, na prioridade da segurança. E isto tem sido imposto – do ponto de vista do ciclo histórico, porque não começa aí – sobretudo desde o 11 de Setembro de 2001, com o agravamento brutal das medidas de segurança, assumidas quer por Estados, quer por empresas. Este paradigma da segurança pode ter várias dimensões. Habitualmente associamo-lo às questões ligadas à chamada prevenção anti-terrorista ou luta anti-terrorista, mas isso é apenas uma das dimensões que ela tem tido.

«Quando chegámos à pandemia de Covid-19, mais do que se tomar os agentes patogénicos como inimigo, as políticas implementadas tomam as pessoas e as sociedades como inimigo.»

manuel Loff

Chamamos à atenção no livro para um exemplo que tem sido dado à escala internacional: a França é um dos casos mais acabados de uma chamada democracia consolidada na Europa, onde a adopção de medidas securitárias desde 1995, pelo menos, atravessando governos do centro-esquerda às várias direitas francesas, tem servido para a repressão de movimentos sociais, nomeadamente toda a contestação da reforma laboral iniciada em 2015, ainda por cima durante um governo socialista, e se prolonga com a repressão a outros movimentos sociais como por exemplo os Gillets Jeunes [coletes amarelos]. O caso francês é paradigmático porque raramente se foca este país para demonstrar este tipo de coisas, e focamo-nos – e bem – nos casos polaco, húngaro, filipino, russo, etc. Sabemos quais são em geral os objectos de análise que os média e os produtores de ideologia disfarçada de ciência social à escala internacional usam, tendendo a esconder aquilo que acontece consolidadamente e de forma irrevertida nestes casos, pelo menos há 20 anos.

Quando chegámos à pandemia de Covid-19, mais do que se tomar os agentes patogénicos como inimigo, as políticas implementadas tomam as pessoas e as sociedades como inimigo. É dos aspectos que mais sublinhamos, de que a maioria da sociedade aceitou a ideia de que quem é responsável pelo número de vítimas e pelas pessoas que estão doentes são… as próprias pessoas. Como acontece com toda a ideologia conservadora e liberal, a responsabilidade nunca está no contexto, num Serviço Nacional de Saúde sem recursos, não está na forma como nos organizamos para o confinamento, e na realidade social da habitação, por exemplo.

Portugal teve 15 estados de emergência. E quando terminámos os três primeiros, que tiveram a preciosidade anti-democrática de suspender o direito de greve, quase se jurou que não voltaria a ser proclamado o estado de emergencia, que não seria necessário, que os portugueses teriam aprendido a lição. Por outras palavras, tinham interiorizado a forma como se deviam comportar, nomeadamente as medidas de segurança a cumprir. E de repente, a partir de Novembro, instauraram-se os estados de emergência sistematicamente, que se revelaram contraproducentes ou pelo menos irrelevantes. Não esqueçamos que é durante a segunda fornada – os segundos 12 estados de emergência – que decorre o pior momento da pandemia, fim de Janeiro/início de Fevereiro 2021, mas já havia estado de emergência há vários meses. Nesse momento explicou-se – quer o Governo [PS], quer o Bloco de Esquerda, que votou favoravelmente à renovação dos estados de emergência – que eram medidas de excepção a favor das pessoas, para garantir os recursos do SNS, para garantir a manutenção dos postos de trabalho e os rendimentos dos trabalhadores. Mas o Governo nunca requisitou serviços à saúde privada e não conseguiu sequer impor normas que impedissem os hospitais privados de bloquear o acesso aos seus equipamentos por pacientes com suspeitas de Covid. Depois diziam-nos que a Lei de Bases da Saúde não permitia a mobilização e a requisição civil que o Estado pudesse vir a fazer da saúde privada, mas tal requisição nunca foi feita com a declaração dos estados de emergência. E a saúde privada não perdeu um cêntimo, pelo contrário, ganhou milhões à custa do Estado.

Assim, a emergência foi-nos apresentada como a melhor forma de preservar a saúde e os direitos dos trabalhadores, mas não só não preservou, porque o pico da pandemia foi atingido apesar dos estados de emergência, como não serviu para nenhumas medidas excepcionais a favor daqueles que pudessem precisar de medidas verdadeiramente excepcionais.

Agentes da Guarda Nacional Republicana (GNR) controlam as entradas da cidade de Ovar, no distrito de Aveiro, a 18 de Março de 2020, após as autoridades portuguesas terem declarado o «estado de calamidade pública» devido ao elevado número de infectados pelo coronavírus COVID-19 na área. CréditosEstela Silva / LUSA

O medo e incerteza que floresceram durante este período deveriam ser mitigados através do reforço da democracia e não da sua suspensão?

Manuel Loff: Sim, mas o que é preocupante é que, com muito sucesso, conseguiu-se que uma grande parte da sociedade estivesse de acordo com isto, de que de facto a normalidade democrática seria incompatível com situações de emergência. O que afirmamos neste livro é que agora, a todo momento, os agentes securitários e sobretudo aqueles que podem impor medidas de segurança em cada sociedade, podem invocar ameaças à segurança, seja relativamente a doenças, ou a acções terroristas, para aplicar medidas que levam ao silenciamento da oposição e da resistência. Dessa forma é muito mais fácil impor determinadas medidas, se formos permanentemente governados a partir do medo. E a bandeira que levantamos é que o medo não é admissível como forma de governo. Sim, toda a vida social inclui determinados aspectos de insegurança, como na vida quotidiana. Mas não vamos desmontar o que foram centenas de anos de construção de direitos democráticos, nomeadamente direitos de resistência e de alternativas às formas de dominação, porque atravessamos uma pandemia, que exigiria, pelo contrário, maior debate democrático em torno das soluções e caminhos a seguir.

Muitos estimaram que o impacto da Covid-19 seria inferior a outras pandemias, a começar pelo HIV, evidentemente. A grande diferença é que a Covid-19 ameaçava afectar, como se verificou, os países mais ricos do mundo do hemisfério norte. Portanto, se morrerem por ano uns milhões de africanos, asiáticos, e latino-americanos, mas particularmente africanos, de HIV, isso é secundário. Porque não nos esqueçamos: a morte tem cor, tem perfil étnico, tem perfil de género, tem uma série de coisas, como tem o trabalho, como tem a desigualdade, como tem a distribuição da riqueza. É mais do que evidente e creio que este é um aspecto importante.

«A pandemia e o clima de medo e de ansiedade levaram à condenação da participação dos cidadãos, à condenação da actividade política nos vários sentidos que referimos no livro, desde logo no famoso 1.º de Maio de 2020 »

Filipe guerra

Filipe Guerra: Sim, e nesse sentido a pandemia de Covid-19 é um pouco como uma tempestade perfeita, na medida em que reparamos que o ataque à democracia, até no sentido da participação cívica na vida político-partidária, foi um aspecto flagrante desde o início. A pandemia e o clima de medo e de ansiedade levaram à condenação da participação dos cidadãos, à condenação da actividade política nos vários sentidos que referimos no livro, desde logo no famoso 1.º de Maio de 2020. De facto, verificou-se que a pandemia apanhou o país e a sociedade já com a «terra lavrada» para a aplicação destas medidas.

Ou seja, já havia anos de políticas que tornaram a sociedade permeável a isto. É muito curioso, e chamava a atenção para um aspecto porque já ocorreu depois da publicação do livro, mas que encaixa perfeitamente nesta ideia. Durante a campanha eleitoral para as eleições legislativas, que se realizaram no passado dia 30 de Janeiro, verificou-se um período com taxas de infecção altas. E houve quem afirmasse que um dos elementos que estava a contribuir para o aumento do número de casos naquela altura era o decorrer das campanhas eleitorais, da existência de comícios e de manifestações de rua. Ou seja, esta ideia da suspensão da democracia tinha terra lavrada e impôs-se, e só não se impôs totalmente porque houve quem resistisse, aliás com grande coragem moral e quase que física. Mas continua a ter sequelas e pequenos episódios que se adivinha que poderão perdurar dependendo naturalmente do que for o curso, do ponto de vista sanitário, da pandemia.

Tiago Vieira: Eu acho que nós temos de reflectir sobre as implicações que as coisas têm para lá do tempo em que acontecem. Refiro outro exemplo que me parece ilustrativo: há umas semanas, o entretanto promovido a perito sobre tudo e mais umas botas, Filipe Froes, dizia, sendo citado na capa do Diário de Notícias, que os portugueses conquistaram o direito ao alívio de medidas. E isto é uma coisa que, parecendo absolutamente corriqueira, não é, porque, na verdade, se nós reflectirmos cinco segundos sobre o que isto significa, percebemos que, segundo ele, as liberdades, direitos e garantias fundamentais estão dependentes do juízo moral sobre se os portugueses merecem ou não o alívio dessas medidas. No livro usamos a expressão de um certo paternalismo, e afirmamos que é de uma enorme gravidade normalizarmos a ideia de que há aqui uma validação moral do acesso aos direitos. O alívio de medidas, ainda incompleto, na verdade já aconteceu e está a acontecer em vários outros sítios dentro da Europa, dentro da União Europeia, e não tem uma ligação directa à taxa de vacinação, nem a determinados indicadores que agora podem vir a ser justificados racionalmente. Mas o que importa é este pendor moralista sobre os direitos fundamentais que é obviamente não só inaceitável como perigosíssimo.

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Um grande desafio que resulta claro da leitura do vosso livro é que a um cada vez maior controlo sobre os trabalhadores, através de meios tecnológicos instituídos em nome da produtividade, parece corresponder uma cada vez maior individualização do processo produtivo, dificultando a organização dos trabalhadores. Como superar isto?

Tiago Vieira: Esta pergunta suscitava múltiplas considerações. Mas vou ficar-me só por uma. Nós estamos num quadro em que não é líquido que as alterações tecnológicas vertiginosas a que assistimos venham a garantir maiores índices de produtividade, tendo em conta os impactos que elas têm sobre os seres humanos, sobre os trabalhadores. Há até sinais muito contraditórios. Nós procuramos dizer ao longo do livro que uma parte decisiva deste fascínio pelo teletrabalho decorre de dois tipos de factores: por um lado, do aproveitamento da realidade terrível que se vive em muitos locais de trabalho, que faz com que os trabalhadores tenham repulsa pelo seu local de trabalho. Por outro, do aproveitamento de problemas como as deslocações pendulares, que decorrem da gentrificação, e que leva a que os trabalhadores prefiram trabalhar a partir de casas onde não têm condições de trabalho, a ter que ir para os seus locais de trabalho. Portanto há aqui uma perversão terrível, que é a lógica do «mal menor» que não é tão menor assim. Mas em cada buraco que se abre poderemos encontrar também novas formas de resistência. E não há outro caminho que não seja a resistência e a luta dos trabalhadores. Eu creio que os tempos que vivemos serão particularmente desafiantes sobretudo para as estruturas do movimento sindical, que é algo que não pode ser ignorado. Não obstante, não há nenhuma razão para acharmos que o movimento sindical não encontrará também os caminhos para, neste quadro, organizar os trabalhadores, porque todas as formas, por mais opressivas e exploradoras que sejam dos trabalhadores, nunca deixaram de encontrar resistência por parte dos mesmos. Portanto, não há uma fórmula escrita, mas eu tenho confiança que os trabalhadores encontrarão naturalmente, ainda que arduamente, as formas de contrariar todos estes mecanismos que lhes estão a ser impostos.

«Não há uma fórmula escrita, mas eu tenho confiança que os trabalhadores encontrarão naturalmente, ainda que arduamente, as formas de contrariar todos estes mecanismos que lhes estão a ser impostos»

Tiago vieira 

Não obstante, não deveríamos desvalorizar que, no entretanto, nós vivamos num tempo profundamente contraditório: as possibilidades que as máquinas de hoje oferecem aos trabalhadores e trabalhadoras do ponto de vista da libertação da carga de trabalho, do ponto de vista da articulação da sua vida pessoal com a sua vida profissional, de maximização de aprendizagens e de contactos para lá das fronteiras físicas em que eles estão, são completamente desaproveitadas em nome de uma exploração atroz e profundamente insidiosa. Desde a monitorização das suas rotinas mais básicas, como seja ir à casa de banho ou qual é o grau de ansiedade que determinada tarefa de trabalho lhes provoca, para depois instrumentalizar essa informação para, por exemplo, concretizar um despedimento passado umas semanas ou uns meses.

E quanto ao processo de integração europeia, que abordam no terceiro capítulo. Está ameaçado por conta das contradições que foram expostas no decorrer da pandemia?

Filipe Guerra: Eu creio que é precipitado procurar fazer alguma espécie de previsão em relação àquilo que possa ser o futuro da União Europeia, de mais integração ou mais desintegração. Aquilo que nós verificámos foram tendências. E, se por um lado, se verifica uma acumulação de processos e de momentos de crise política desde a crise económica de 2008, à questão dos refugiados, ou ao próprio Brexit, por outro, também verificamos que frequentemente o aprofundamento do processo de integração europeia tem sido a saída política para a resolução das crises, ou seja, o processo não é repensado mas acelerado.

Em relação àquilo que foram as políticas da União Europeia durante a crise sanitária, ao longo dos últimos dois anos, no essencial creio que é muito claro que evidenciaram de uma forma muito bruta, muito cruel, aquilo que são as suas contradições essenciais. Acima de tudo, aquilo que é uma não correspondência entre o seu discurso e a sua acção e também uma cruel exposição, muito notória, daquilo que, de facto, são as suas ambições e os interesses que no essencial esta instituição defende. Verifica-se uma não correspondência muito grande entre aquilo que são as práticas e o que são as declarações pomposas que em larga medida foram sustentando o processo ideológico que vai impondo o processo de integração europeia, nomeadamente a solidariedade, os grandes valores humanos. Verificamos que esses valores não tiveram qualquer tradução real, logo no primeiro trimestre de 2020, por ausência de solidariedade entre os países. Por exemplo, na partilha de material sanitário, isto foi muito claro, e na forma como os países, no essencial, mandaram às urtigas aquilo que eram os compromissos europeus. Veja-se a forma como, unilateralmente, se faz o encerramento de fronteiras ou a forma como, por exemplo, se boicota a exportação e importação de produtos sanitários e outros, o que revelou uma enorme divergência de interesses, e uma tendência para romper com aquilo que são as ideias da União Europeia e os seus programas e até aquilo que está assinado em vários tratados e acordos.

«Verificamos que frequentemente o aprofundamento do processo de integração europeia tem sido a saída política para a resolução das crises, ou seja, o processo não é repensado mas acelerado »

filipe guerra

Repare-se na construção do Plano de Recuperação e Resiliência e em todas as suas contradições que expomos neste livro. Também quanto ao processo de vacinação, é revelador o facto de a União Europeia ter tido um papel de agente privatizador. Porque abdicou completamente do caminho da aquisição e distribuição de vacinas com base naquilo que foi a investigação pública, e entregou esse processo aos grandes grupos económicos da indústria farmacêutica que são grupos económicos, com um poder económico e de lobby muito forte. É de facto uma indústria cujo grande interesse não é a saúde e a promoção da saúde, mas o seu lucro, numa lógica perfeitamente capitalista, à qual a União Europeia se entregou de forma incondicional. Para além do mais, tratou-se de um processo de reserva total em relação à contratualização com as denominadas Big Pharma. Portanto, a União Europeia fez um processo de absoluta opacidade, resistindo tanto quanto pôde a critérios de transparência, e dando-se ao absurdo de publicar documentos com partes rasuradas.

Outro exemplo foi a forma como a União Europeia anunciou ao mundo, logo em Junho, que iria fazer enormes doações de centenas de milhões de vacinas no âmbito da Covax, quando na realidade ficou muito longe de fazer as entregas com que se tinha comprometido. Aliás, a União Europeia é acusada de, objectivamente, ser um agente que dificulta o acesso às vacinas a outros povos do mundo.

Por último, este processo revelou também que a União Europeia se entregou incondicionalmente aos grandes interesses dos grupos económicos, não priorizou o interesse da saúde pública e falhou do ponto de vista político e até moral para com os povos do mundo, naquilo que devia ser uma prioridade absoluta que era resolver a pandemia e partilhar as soluções que pudessem existir.

Um trabalhador da saúde prepara uma seringa com uma dose da vacina da Pfizer-BioNTech contra a Covid-19, no Hospital do Santo Espírito, em Roma, Itália, a 2 de Janeiro de 2021 CréditosFabio Frustaci / EPA

Podemos dizer que as democracias lançaram as bases do securitarismo, que facilmente podem ser usadas para o estabelecimento de regimes autoritários? Mas como desmontar o facto de, em alguns países, serem as forças mais reaccionárias a utilizar uma narrativa contra as medidas securitárias?

Manuel Loff: Sim, há uma evidente hipocrisia e dualidade de critérios moral, ética e política de sectores como a extrema-direita portuguesa, em que os ultra-securitários de sempre, que entendem que nunca há medidas suficientes de segurança e que, quando os Estados as tomam – nos casos em que a extrema-direita ainda não está no poder –, o fazem de forma incompleta, mas que agora se opuseram às medidas mais restritivas relacionadas com a pandemia. Esses, em determinado momento, podem assumir uma retórica desta natureza. Por outro lado, apontavam o dedo quando havia outros que não cumpriam as regras. Mesmo que depois, eles próprios, apareçam em iniciativas políticas públicas não usando máscara, não cumprindo o distanciamento... mas exigindo que os outros, os pobres, os subordinados, os subalternos, o devem fazer. Mas isso é a história da dominação. As classes dominantes nunca cumprem a mesma moral social que fixam legalmente para as classes dominadas.

Essa hipocrisia existiu sempre, não é nenhuma novidade. Agora nós sublinhamos no livro que devemos ter sempre muito cuidado em não descrever toda a extrema-direita à escala internacional como contrária a medidas de emergência. A extrema-direita mobilizou-se contra, em alguns países, aproveitando um mal-estar muito generalizado e crescente nas várias sociedades relativamente às evidentes limitações de liberdades cívicas, colectivas e individuais. Mas, onde a extrema-direita está no poder, as medidas securitárias foram impostas de forma exemplar, como nas Filipinas, quando o Presidente Duterte ameaçou, literalmente, que se as pessoas saíssem de casa teriam o Exército à porta com ordens para disparar. A Polónia e a Hungria, com governos de ultra-direita dentro da União Europeia, foram campeãs das medidas securitárias na primeira fase. Não hesitaram em introduzir essas medidas. A extrema-direita à escala internacional, quando não está no poder, aproveitou sistematicamente a possibilidade de mobilizar o mal-estar para desestabilizar governos, de cor contrária. Mas quando está no poder, evidentemente, assumiu atitudes securitárias e ultra-securitárias, que foram denunciadas por organizações não-governamentais à escala internacional, do ponto de vista da interferência na liberdade de expressão e do controlo quer dos cidadãos à escala individual, quer dos movimentos sociais.

Torna-se um exercício crítico muito complexo, por vezes, distinguir como, à esquerda e à direita, se interpretam as evidências científicas e a relação que estas assumem com as políticas implementadas...

Manuel Loff: É verdade que a extrema-direita e os sectores ultra-reaccionários costumam fazer leituras da realidade social contrárias à ciência, de natureza apocalíptica, atribuindo as doenças ou as catástrofes naturais à imoralidade social. É uma coisa antiga, basta referir exemplos como o da direita religiosa norte-americana na sequência do 11 de Setembro de 2001, por ser Nova Iorque a capital do pecado, ou os sectores ultra-reaccionários dos ortodoxos judeus sobre o Holocausto, como um castigo pela laicização e pela presença do marxismo dentro das comunidades judaicas europeias. Não há nenhuma novidade nisto.

Mas atenção, eu não tenho nenhuma religião da ciência. E recordo que a corporação profissional com mais militantes em proporção no Partido Nazi na Alemanha era a dos médicos. E recordo o peso que médicos e biólogos tiveram na produção do discurso racial eugenista e genocida naquele período. A pandemia não nos pode obrigar a esquecer que a análise da ciência e da sua produção deve ser contextualizada do ponto de vista de classe e do ponto de vista social. Com isto não estamos de forma alguma a produzir um discurso relativista sobre a ciência. Mas é preocupante e perturbante que se tenha adoptado, a propósito da gestão da pandemia, o discurso de que as autoridades políticas não deveriam ouvir diferentes opiniões da comunidade científica. Que o Governo não deveria ter autoridade para confrontar um suposto unanimismo científico.

A epidemiologia não é uma ciência exacta. Basta comparar com o papel que podem desempenhar outros cientistas, noutras situações. Como o da crise económica, em que seriam os «técnicos» a resolver a crise, como se os economistas não tivessem ideologia. Ou na discussão em torno da natureza do regime do Estado Novo. Eu teria que chegar a acordo com o Rui Ramos sobre se a ditadura em Portugal foi fascismo ou não, para depois um de nós se calar perante uma suposta unanimidade do veredicto científico? Não. É importante percebermos que a ciência é feita de revisibilidade, de pluralidade. É totalmente natural que haja diferentes opiniões nestas questões.

E, nesse sentido, é potencialmente embaraçoso para muitos daqueles que mantivemos uma atitude crítica sobre as medidas de emergência sanitária e denunciámos a sua natureza securitária, o facto de vermos na rua e nas redes sociais uma infinidade de pessoas que negam as evidências científicas. Mas atenção, só os que negam as evidências científicas é que são negacionistas. Nem toda a gente que saiu à rua em muitos lugares do mundo contra a paranóia do uso dos certificados Covid era do campo do negacionismo.

«As medidas de segurança são como drogas aditivas. Começa-se, e não se deixa mais.»

manuel loff

Tive essa polémica entre amigos que começaram a suspeitar que eu estava a entrar no campo do negacionismo por alertar para a securitização da sociedade...  E haverá muita gente à nossa volta, e seguramente muito leitor do  AbrilAbril , que pergunta: não era necessário impor medidas de emergência? Ao que eu responderia: é necessário impor medidas de excepção todas as vezes que há um atentado terrorista? É necessário que todas as estações de metro de Paris tenham soldados com metralhadoras? É necessário que todos os aeroportos estejam securitizados da forma como estão? É absolutamente imprescindível? Eu acho que não, é tão simples quanto isso. E aquilo que quero é que discutam connosco, nomeadamente à esquerda, a quem serve a securitização da sociedade. Porque é importante que percebam que as medidas de segurança são como drogas aditivas. Começa-se, e não se deixa mais. E o que nos preocupa é que um grande número de pessoas tendam a entender, por se tratar do campo da segurança sanitária, que isto é diferente. É uma tese que nós ouvimos muito. De que seria sempre intolerável que nos impusessem medidas de emergência a propósito de questões de segurança, como ameaças terroristas, mas que eram inevitáveis em relação à pandemia. Essa dualidade é equívoca e acho que tem que ser denunciada.

Tiago Vieira: Correndo o risco de repetir o que o Manuel disse por outras palavras: este é um momento interessantíssimo desse ponto de vista. Qual é a avaliação ou a valoração que se faz da ciência? Eu considero que quem sacraliza uma conclusão científica está a negar o que é a ciência enquanto processo constitutivo e de permanente revisão. Desde logo porque a boa ciência tem que ser escrutinada pelos pares à luz do conhecimento existente. Portanto, aquilo que nós temos é uma tentativa de instrumentalização de determinadas conclusões políticas que vão radicar em determinadas conclusões científicas. Aí deixamos de estar a discutir o valor da ciência para estarmos a discutir qual é a tradução política que a ciência tem e este pode ser um debate quase meta-filosófico, ultra-abstracto. Corremos esse risco, mas não consigo deixar de sublinhar esta questão.

«O pior que nós podemos fazer é deixarmo-nos acantonar nesta ideia de que há uma dicotomia entre o questionamento e a liberdade, porque nada é mais livre do que o questionamento»

Tiago vieira

Como dizia Marx, e como citamos na conclusão do nosso livro, «as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade, é ao mesmo tempo, o seu poder espiritural dominante». E sim, há uma instrumentalização fortíssima da ideia de liberdade pela direita. Mas o pior que nós podemos fazer – nós gente de esquerda – é deixarmo-nos acantonar nesta ideia de que há uma dicotomia entre o questionamento e a liberdade, porque nada é mais livre do que o questionamento. E esta pode ser a grande perversão do nosso tempo, que é termos de facto um conjunto de sectores que se deixe esmagar pela ideia de que não há uma tradução política da ciência. Como o exemplo já referido do 1.º de Maio de 2020. O posicionamento de diferentes forças políticas e sociais relativamente a este acontecimento é um exemplo paradigmático de como é tão fácil, de repente, o rolo compressor da ciência nos fazer perder de vista que há uma leitura política para lá da leitura científica. E depois cada um tem que escolher o seu caminho.

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Exactamente, o que está agora na moda com a guerra da Ucrânia. O que está a acontecer à escala de todo o Ocidente, e nomeadamente na Europa Ocidental - onde ainda havia um conjunto de categorias para descrever as realidades existentes, nas quais o conceito de fascismo e antifascismo continuavam  vigentes -,  é que estamos a importar dos nacionalismos neoliberais e neoconservadores da Europa Oriental e dos países pós-comunistas a linguagem que eles usam.

Voltando atrás, é bom recordar que toda a discussão que Le Pen fez sobre o aumento do custo de vida e as questões sociais é feita na segunda volta com Macron. É preciso fazer a separação entre a campanha que faz na primeira volta e na segunda volta. Na primeira volta, o campeão desse discurso não foi a senhora Le Pen, foram evidentemente Mélenchon e vários outros candidatos à esquerda, incluindo o comunista. É óbvio que na segunda volta ela levanta estas questões para tentar captar parte do eleitorado que votou Mélenchon. Última nota, quando se entra na discussão das medidas contra o aumento do custo de vida, na Assembleia Nacional, já depois do governo Macron ter perdido a maioria absoluta, a extrema-direita obviamente que não votou com a esquerda. A extrema-direita não subscreve as críticas da esquerda às políticas sociais do macronismo.        

Em processos como o Brexit e até em votações em antigas zonas industriais nos EUA na eleição de Trump não existem por base outras questões? Há um historiador norte-americano, que tem dois livros com título provocatório, que pergunta as razões por que os ricos votam na esquerda e os pobres na direita. Não existem neste processo de globalização perdedores que podem ser instrumentalizados pela direita, e classes médias, com dinheiro e estudos que podem votar no centro-esquerda? Não existe um sector de perdedores da globalização, que com a inexistência de uma esquerda popular, deslocam o seu voto de protesto para a extrema-direita?

Há sectores que estão ressentidamente a votar na extrema-direita. Mas é preciso ver que apesar da desaparição da esquerda, em países como a Itália, ser em grande medida proporcional ao crescimento da extrema-direita, não há uma correlação directa entre a perda dos votos da esquerda e o crescimento da extrema-direita. Não existe uma transferência directa de um sector para outro, como tantas vezes se procura fazer crer erradamente: há um crescimento da abstenção nos sectores populares.

Aquilo que existe em todos os países são classes populares, e as organizações que as representam, a levar no lombo permanentemente nos últimos quinze anos com esta economia política da crise permanente. O neoconservadorismo tem uma política da guerra permanente e o neoliberalismo tem a política da crise permanente. E é verdade que há problema de mobilização desses sectores populares, que no passado conseguiram inúmeras conquistas sociais, como nos chamados 35 anos gloriosos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, num país, como a Itália, que teve um fortíssimo partido comunista que não era apenas uma organização do partido, mas conjugava-se com a existência de sindicatos poderosos e organizações com milhões de pessoas, como a ARCI [Associação Recreativa e Cultural Italiana que envolvia milhões de pessoas e milhares de associações]. O desmantelamento de tudo isso tem uma história própria ligada à liquidação desse partido. O que sobrou de todos esses sectores, depois da dissolução do PCI em 1989, que confluíram na Refundação Comunista, manteve-se activo e com peso político durante uma quinzena de anos, tendem a ir progressivamente perdendo força nos seguintes ciclos eleitorais. Mas é preciso dizer que se a esquerda italiana se desmantelou, a francesa não se desmantelou, a espanhola também não e reconfigurou-se, podemos não gostar mas é assim, a partir do Podemos. A portuguesa não se desmantelou. O que havia de esquerda britânica no seio do Partido Trabalhista reorganizou-se e agora provavelmente está a ser desmantelada. Era necessário analisar situação a situação em cada um desses casos. Em Itália há um fenómeno especial que é o sistema eleitoral. Esse sistema dificulta o acesso ao parlamento e à representação de forças políticas abaixo de uma determinada percentagem (4%). O que que ajudou a desfazer as possibilidades eleitorais, primeiro da Refundação Comunista Italiana e depois do Partido Comunista Francês foram os processos de convergência eleitoral com a social-democracia, com o Partido Democrático, em Itália, e com o Partido Socialista, em França, em momentos de guinada neoliberal desses dois partidos maioritários nas esquerdas eleitorais. Esses processos não só deram origem a cisões nesses partidos comunistas como deram cabo da sua credibilidade eleitoral. Isto abriu o caminho a um reforço da ultradireita? Em ambos os casos, já existia historicamente uma extrema-direita. Em Itália, existe representação política da extrema-direita desde 1946. Em França, apenas desde 1986.

Mas a França também tem uma tradição de extrema-direita forte, mesmo depois da Segunda Guerra Mundial. Há o poujadismo que elege um grande número de deputados [52], entre eles Jean-Marie Le Pen. Não nasceu com a Frente Nacional.

Não nasceu, mas o sistema eleitoral francês, salvo na IV República em que era mais proporcional, dificultava a existência de uma extrema-direita francesa autónoma e não dissolvida, como era o caso português, em que estava disseminada nos partidos da direita clássica. A extrema-direita francesa teve muita dificuldade em obter representação de 1945 até 1986. Teve apenas o fenómeno do poujadismo entre 1956 e 1958. Depois pode ter havido um ou outro deputado individualmente eleito por via maioritária, sob o guarda-chuva do gaulismo, mas muito pouca gente. Já no caso italiano, o Movimento Social Italiano (MSI) - em que o social vinha da República Social Italiana da última fase mais radicalmente fascista do regime de Mussolini, de 1943 a 1945 - manteve representação parlamentar desde que foi legalizado em 1948. Mas já nas eleições em 1946, Fronte dell'Uomo Qualunque [Frente do Homem Comum, movimento anticomunista que se dizia também opor ao fascismo e que concorre em 1948 inserido no Bloco Nacional, posteriormente parte dos seus eleitos e quadros aderem ao MSI que então foi legalizado] concentrou o voto útil neofascista e obteve representação parlamentar. E quando se chega ao momento do desmantelamento do Partido Comunista Italiano e do sistema político italiano, por via da chamada tangentopolis [A Operação Mãos Limpas, inicialmente chamada Caso Tangentopoli (em português, “cidade do suborno”, termo cunhado por Piero Colaprico, cronista do jornal la Repubblica, referindo-se à cidade de Milão), foi uma investigação judicial de grande envergadura realizada em Itália. A operação teve início em Milão e visava esclarecer casos de corrupção durante a década de 1990 (no período de 1992 a 1996) na sequência do escândalo do Banco Ambrosiano, revelado em 1982, que implicava a Máfia, o Banco do Vaticano e a loja maçónica P2] e os julgamentos que vão comprometer grande parte do sistema político, nomeadamente a Democracia Cristã e o Partido Socialista, a extrema-direita altera-se, por um lado o Movimento Social Italiano passa a Aliança Nacional e finalmente deriva para Irmãos de Itália, actualmente. Por outro lado, constitui-se também a partir de um polo regionalista, xenófobo e separatista no norte de Itália, a Liga Norte, que com a chegada de Salvini à liderança do partido se espalha pelo o país e se torna a Liga. A Liga Norte estrutura-se via racismo e via uma linguagem ultraliberal, típica da extrema-direita escandinava, contra o Estado de bem estar social, contra os «malandros» dos imigrantes e os italianos do Sul e vai-se transformando na Liga, um partido que aproveitando a degenerescência total do berlusconismo e da Força Itália transforma-se num partido com 30% das intenções de votos, hoje reduzido a menos de metade. As sondagens dão-lhe 13 a 14% dos votos.

Em resumo quanto à extrema-direita europeia, há uma coincidência no tempo entre a crise da esquerda radical, da esquerda a sério, como chamei no artigo do Público, e o aumento da representação eleitoral da extrema-direita, não porque haja uma transferência directa de votos, mas porque há uma desmobilização fortíssima, verificável em todas as democracias ocidentais, do eleitorado popular. Tenho repetido isto muitas vezes: se formos a ver a mobilização dos eleitores entre as freguesias mais pobres e mais ricas da cidade do Porto, a diferença é de mais de 15 a 20 pontos percentuais. Por que é que isso cria uma ilusão e permite dizer a alguns que o voto de esquerda alimentou a extrema-direita? Porque em alguns casos no Reino Unido, em regiões desindustrializadas, em algumas regiões desse tipo nos Estados Unidos, em alguns sítios da França e da Itália, isso pode ser verdade: encontramos a extrema-direita em percentagem elevada em regiões pós-industriais, na qual já não existe uma classe operária quanto tal, mas existem operários reformados, em que os filhos e netos já não são trabalhadores do sector produtivo, mas muitas vezes são apenas mão-de-obra precarizada do sector terciário. Isto torna-os muito diferentes. É muito chato de dizer, mas é muito diferente mobilizar do ponto de vista social e político os trabalhadores camponeses e operários do que mobilizar os trabalhadores do terciário. A perda da taxa de sindicalização e da representatividade das organizações operárias tem tudo a ver com a terceirização. Esses fenómenos localizados muitas vezes não são estáveis: o voto das regiões operárias do sul de França e dos arredores de Marselha, que passou para a Frente Nacional, deixou de o fazer com a emergência do Mélenchon. E se formos ver, em Paris, onde a Frente Nacional nunca penetrou nos subúrbios operários, dá-se nas últimas eleições uma maior mobilização do voto popular e há a divisão que é habitual: a Paris do Norte e do Leste vota à esquerda, e a Paris do Sul e do Oeste à direita, que corresponde à divisão das zonas operárias, hoje com trabalhadores precários, terceirizados e de origem imigrante e a zonas mais burguesas.

Mas mesmo assim persiste uma divisão do voto popular em França. Há sectores mais jovens, de origem imigrante e precários, que votaram Mélenchon, e depois há sectores populares em zonas desindustrializadas e com gente mais velha e menos habilitações académicas que votaram na extrema-direita.

Fez bem esta diferenciação porque também tem que ver com a idade. Embora em Portugal, e um pouco por toda a Europa, no cenário pós-pandemia, os eleitores mais velhos tendem a votar no poder. Isso foi muito evidente em Portugal, todos os estudos dizem que a grande maioria dos mais velhos votou PS, e em França votaram sobretudo em Macron.

Em Portugal, deve ter ajudado o facto de Passos Coelho ter cortado as reformas durante a troika.

Evidente. Mas também é verdade que, no caso francês, votaram num homem que quer elevar a idade da reforma. Voltamos à questão que colocou várias vezes: há um segmento das classes populares que se auto-representam, com motivos materiais para pensarem-se assim, como os perdedores da globalização. Ora bom, registam-se três tipos de reacção: aqueles de que forma irregular, ao longo do tempo, continuam ou voltam a votar à esquerda; uma grande percentagem que se abstém, por exemplo na maioria dos países, salvo em França, os jovens estão a votar muito pouco. Os jovens são campeões da precariedade. Sabemos que as populações jovens de origem imigrante são quem mais precários têm. Em terceiro lugar, votam em alguns países, em menor número, na extrema-direita. Mas isso não acontece em muitos lugares. Em Espanha, por exemplo, o Vox não tem o eleitorado popular. Em várias regiões de Itália, sobretudo no norte, isso acontece. Eu não conheço com detalhe os dados de vários países escandinavos e da Áustria. Na Alemanha, a maior representatividade da extrema-direita encontra-se nos landers da antiga Alemanha Democrática, onde a taxa de desemprego é sempre duas a três vezes superior aos landers ocidentais, onde os salários continuam mais baixos, etc. Esta terceira opção de votar na ultradireita não é exercida porque esta faz supostamente uma crítica às democracias neoliberais. O que a ultradireita faz de uma forma atraente para uma parte do eleitorado popular é a receita de sempre, a mesma dos anos 30, é vir responsabilizar os imigrantes e as minorias étnicas. Para mim, uma das chaves do sucesso da extrema-direita é a relegitimação e a reentrada em força de todo o debate - nós dizemos, e bem que é do racismo e xenofobia - da «teoria do choque de civilizações» que unifica o conjunto de teses das direitas. E aí os neoliberais estão ao lado e a par da ultradireita. É a afirmação da tese que o Ocidente está permanentemente sob ameaça que dá força à extrema-direita, e essa afirmação, da tese do choque entre civilizações, é alimentada por todos os sectores de direita.

Antigamente quem sofria de problemas sociais, como a pobreza e a desigualdade, tendia a identificar estas questões como colectivas e devido ao funcionamento da sociedade; hoje, a comunicação social, grande parte dos partidos e até o centro-esquerda afirmam o discurso da meritocracia que transforma tudo em questões de sucesso ou insucesso individual. Esse discurso ideológico não tende a abafar a revolta social e dar espaço apenas à raiva e frustrações individuais?

É a velha lógica de todo o conservadorismo histórico, aquilo que os franceses chamavam reacção. A direita há 200 e tal anos que procura dar uma justificação moral para os problemas sociais. É por isso que tem tanto sucesso falar da corrupção e que, na Américas e em países da Europa do Sul, a corrupção é uma das bandeiras centrais da extrema-direita. Vemos que não há correspondência directa entre o que os dados dizem ser o nível de corrupção média nas administrações públicas em várias sociedades e a força que possa ter a ultradireita nesses países. Para além da questão da corrupção, entra a discussão daquilo que toda a direita e sectores da Igreja Católica chamam «a ideologia de género», acusando a esquerda de pretender atacar a família e aquilo que é natural, e dizendo que a esquerda pretende atacar Deus e a religião. A ultradireita, salvo no caso francês, tem uma forte componente religiosa aplicada às ideias do choque de civilizações. Há um discurso ocidentalista da parte de todas as ultradireitas que descreve o que considera o modo de vida europeu barra ocidental, que se opõe aos invasores imigrantes. Nessa descrição está sempre metida a matriz religiosa e cristã do Ocidente.

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