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A crise e a segurança social

A segurança social não deve ser concebida como um mero instrumento de política económica, mas antes como um direito fundamental dos trabalhadores e dos cidadãos.

Centro de atendimento da Segurança Social. Foto de arquivo CréditosMário Cruz / Agência Lusa

Vai ficar tudo de pernas para o ar
Albert Camus, A Peste

A segurança social teve nos últimos anos uma clara melhoria da sua situação financeira. Destacam-se elevados excedentes e um forte aumento das contribuições, as quais cresceram 7%, em média, no período 2016-2019. O Relatório do Orçamento de Estado para 2020, prevê um crescimento das contribuições de 6,3%; esta variação foi excedida nos dois primeiros meses (7,4% em média) e o saldo global acumulado foi de 914 milhões de euros (M€) nestes meses.

Mas a crise vai ter um tremendo impacto decorrente da paralisação de uma parte substancial da actividade económica – que será mais ou menos profunda dependendo da duração da crise provocada pela Covid-19 – sendo já visíveis os sinais que apontam para uma recessão económica.

Projecções económicas recentes, divulgadas pelo Banco de Portugal, perspectivam uma forte recessão com quebra de rendimentos, diminuição do emprego e uma taxa de desemprego que poderá chegar aos 11,7%, no pior cenário.

Haverá impactos na despesa, como o aumento da despesa com a protecção social de desemprego. O que é natural, pois a segurança social previdencial visa a substituição dos rendimentos do trabalho perdidos, nomeadamente por motivos de doença e de desemprego.

A quebra nas contribuições pode ser brutal. A segurança social previdencial tem um cordão umbilical com a situação no mercado de trabalho: se o emprego cair, o desemprego aumentar, ou se houver corte de salários, as receitas de contribuições serão fortemente afectadas.

Começamos pouco a pouco a perceber as consequências da crise nos seus múltiplos domínios, sendo de lamentar que não tenhamos já mais informação, particularmente estatística.

O regime de lay-off simplificado

O impacto nas receitas será amplificado por medidas de política como o diferimento no pagamento das contribuições, nos meses de Março a Maio, e o regime chamado de lay-off  simplificado, o qual possibilita que, por motivos de crise empresarial e durante um período temporário determinado, se suspendam os contratos de trabalho ou se reduzam os períodos normais de trabalho.

Este regime vai ter um grande impacto no mercado de trabalho e na segurança social.

Primeiro, porque representa um corte de 1/3 nos salários. Um trabalhador com uma retribuição mensal normal de 1000 euros recebe 666,7 euros, dos quais 200 são pagos pela entidade patronal, sendo o restante pago pela segurança social.

Segundo, porque irá abranger um muito elevado número de trabalhadores. O Governo admitiu um milhão e, a 6 de Abril, já tinham recorrido à medida 33,4 mil empresas com um emprego de 566,7 mil trabalhadores.1 O lay-off não é novo, mas o regime simplificado é diferente do previsto no Código de Trabalho, por exemplo nas mais abrangentes condições de acesso. O seu impacto não tem paralelo com o lay-off normal. A utilização pelas empresas foi até agora reduzida. Basta pensar que em 2009, um ano de crise económica internacional, não se atingiram 20 mil trabalhadores. Em Fevereiro deste ano, recorreram à medida 55 estabelecimentos empregando 1629 trabalhadores, a larga maioria dos quais na modalidade da redução do horário de trabalho.


Terceiro, porque a segurança social é penalizada. Embora a parte paga ao trabalhador pela segurança social seja financiada pelo Orçamento de Estado (OE), as entidades patronais ficam isentas do pagamento das contribuições a seu cargo. Esta isenção deve também, a nosso ver, ser compensada pelo OE e o diploma devia estabelecer isso mesmo.

O Governo não tinha de ir por esta solução. Podia criar um regime extraordinário e temporário que, sem passar pela segurança social, garantisse os salários dos trabalhadores. Seria uma medida de excepção num tempo de excepção.

O desemprego, o corte salarial e a isenção de contribuições sociais patronais resultantes do lay-off simplificado, aliados ao diferimento no pagamento das contribuições nos meses de Março a Maio por uma parte muito elevada de empresas (desde logo, todas as que empregam menos de 50 trabalhadores), vão ter custos muito pesados para a segurança social.

Não está em causa a necessidade de apoiar empresas nem que se priorizem as de pequena dimensão. Mas os apoios não deveriam vir da segurança social, mesmo que financiados por uma transferência do OE.

As contribuições sociais não são uma mera receita do Estado. As contribuições sociais destinam-se a substituir rendimentos perdidos pela emergência de riscos ligados à idade, à invalidez, à doença, ao desemprego e às doenças profissionais, entre outras eventualidades. Constituem um património dos trabalhadores e não uma receita do Estado que o Governo pode usar a bel-prazer.

Em suma, a segurança social não deve ser concebida como um mero instrumento de política económica, mas antes como um direito fundamental dos trabalhadores e dos cidadãos.

  • 1. Dados divulgados pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.

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