O facto de Portugal ter sido um Império Colonial, por quase cinco séculos (nas suas diferentes fases), parece-nos incontestável a importância particular desse fenómeno na formação social lusitana, sendo este uma sapata fundante no processo histórico em que se estruturaram os pilares constitutivos da sociedade portuguesa na longa duração. Num sentido global, entendemos que a expansão comercial burguesa/circunavegação e a colonização das Américas alteraram sobejamente o paradigma da História da humanidade, pois, a partir desse período a humanidade toda estaria «em contacto», mesmo que por meio da espoliação, violência, do genocídio dos povos ameríndios e afins.
A imbricação do capitalismo mercantil e o projeto colonial, num primeiro momento impõe o seu domínio pela via da força armada e económica, contudo, a fim de «fazer durar» a colonização recorreu a um processo de desumanização do Outro (não-europeu/não-branco/«não-civilizado»). É nesse esteio que o racismo emerge como ideologia/tecnologia justificadora e legitimadora das inúmeras práticas discriminatórias, enquanto «gestão da diferença», procurando identificar e negar a humanidade dos ameríndios e das pessoas negras vendidas como mercadorias no comércio esclavagista, portanto, tratadas como sub-humanas e coisificadas.
A ideologia racista teve na Igreja Católica a sua primeira fonte de formulação, entre os portadores de alma e os desalmados, a instituição legitima a escravidão das pessoas negras, lembrando que ela também foi proprietária de pessoas escravizadas. Dadas as transformações históricas: na Europa, do mal chamado «iluminismo», a Revolução Francesa e o desenvolvimento do capitalismo industrial na Inglaterra; no continente Americano, a Revolução Haitiana e as lutas de independência, fizeram surgir novos ideologemas racistas para justificar a nova quadra histórica. O denominado racismo científico procurou sustentar-se nas ciências biológicas (que hoje categorizamos de pseudociência), de que existira uma desigualdade «entre raças». Esse falso consenso «científico» eurocêntrico só deixou de ter força pós-1945, com a derrota do nazifascismo e o encetar as lutas anticoloniais e de libertação nacional. É nesse contexto que os impérios coloniais deixaram de «ser bem vistos» naquela dinâmica do capital –imperialismo do pós-guerras, portanto, os países ainda coloniais trataram de «atualizar» do ponto de vista jurídico e ideológico a questão colonial, dentro de suas particularidades. O caso português é «exemplar» em relação a esse processo, como a Revisão Constitucional (1951) e a consolidação da ideologia luso-tropicalista.
«A imbricação do capitalismo mercantil e o projeto colonial, num primeiro momento impõe o seu domínio pela via da força armada e económica, contudo, a fim de «fazer durar» a colonização recorreu a um processo de desumanização do Outro (não-europeu/não-branco/«não-civilizado»).»
O cerne dessa ideologia colonial (do Terceiro Império) ancorou-se numa suposta excecionalidade lusitana: um colonizador que se «misturava» (mestiçagem) com os/as colonizados/as (velando que tal «mistura» ocorrera maioritariamente por violações sexuais); uma colonização com uma vocação universalista, leia-se cristianizadora, portanto, um suposto «humanismo colonial» e não-violento; de uma coexistência cultural mútua, a «interpenetração cultural», entretanto, desde que os colonizados não colocassem em causa o domínio da cultura da metrópole, o que categorizamos hoje como um processo de guetização.
A ideologia luso-tropicalista amoldou um alargado (da esquerda à direita) e complexo imaginário social de que os portugueses e a sociedade lusitana possuem uma excecional imunidade ao racismo. Perpetua-se fortemente até hoje, a ser reforçado pela comunicação social, o sistema educativo, etc., e sobretudo por um segmento reacionário e racista da sociedade, que identifica no Chega a vocalização desse projeto societário. Ideologia não é um conjunto de ideias a pairar por «aí», são práticas sociais e económicas concretas e objetivas, pois quando analisamos as consequências das diferentes facetas da ideologia racista, identificamos um processo contínuo de longa duração histórica de negação da humanidade dos Outros, de exploração e desigualdades sociais e económicas, de violência e morte. O racismo enquanto ideologia é uma forma de gestão dos excluídos e identificados historicamente como seres humanos de segunda categoria ou qualidade.
O ponto central que procuramos sinalizar nesta ultrasintética exposição, é a indissociabilidade entre o colonialismo (escravidão e racismo) e a sociedade capitalista enquanto modo de relação e produção social vigente. O processo da acumulação de capital pela classe revolucionária da época – a burguesia, teve no sistema colonial a sua fonte determinante para o desenvolvimento do capitalismo industrial (transformado em modo de produção/reprodução social). Por outras palavras, o racismo é estruturante no capitalismo, visto ser um modo de organização social e económico que germina das entranhas da escravidão moderna e do mercado colonial (transferência de mercadorias e riqueza das colónias para metrópoles). Portanto, as desigualdades étnico-racial e de classe fazem parte das estruturas da sociedade capitalista. Nesse sentido, não há contradição entre capitalismo e racismo, basta vermos que a discriminação/segregação jurídica-racial (Jim Crow), na propalada «maior democracia» do mundo só acabou em 1964. Um detalhe peculiar, o Estado Novo salazarista tinha «abolido» quase dois anos antes o Estatuto do Indigenato (a discriminação racial positivada juridicamente), mesmo que na prática o trabalho forçado continuasse a existir, via coerção económica, militar, etc.
«Ideologia não é um conjunto de ideias a pairar por «aí», são práticas sociais e económicas concretas e objetivas, pois quando analisamos as consequências das diferentes facetas da ideologia racista, identificamos um processo contínuo de longa duração histórica de negação da humanidade dos Outros, de exploração e desigualdades sociais e económicas, de violência e morte.»
O ponto decisivo que procuramos destacar é que os marcados de identificação das populações racializadas, positivados (escritos) na forma da lei, nos dias de hoje, não «são bem vistos», como alertou Fanon, «neste estágio [do capitalismo], o racismo já não ousa mostrar-se sem disfarces». Portanto, a sociedade capitalista na sua fase neoliberal encontra outras formas de sistemática discriminar as pessoas racializadas. A força e o poder económico, político, dos aparelhos de repressão (polícia) do Estado, a seletividade jurídica e da ideologia continuam firmes e fortes, só que com outras facetas.
Por que é que um país, que foi um império colonial e hoje é uma sociedade capitalista* (semiperiférica), seria «imune» ao racismo? Apesar de todos os problemas, o recente «Inquérito às condições de vida, origens e trajetórias da população residente» (2023), realizado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), demonstra a ponta do iceberg do racismo estrutural (e institucional) em Portugal. O racismo, enquanto uma relação de poder (económico e político) e uma tecnologia de dominação e controlo, inventou a raça como um marcador social a fim de discriminar de forma sistemática os considerados sub-humanos. Desse modo conseguem justificar, legitimar, naturalizar todos os processos de exclusão social, como o facto de a maioria substantiva da população trabalhadora e racializada residir nas periferias, em bairros segregados; os trabalhos dados como «normais» para elas serem os serviços mais precários e mal remunerados de Portugal.
O racismo é mais do que uma herança colonial, é também um pilar do capitalismo, só que com outros «disfarces» e continuidades. As diversas operações policiais em zonas com populações imigrantes, com o lema «Portugal sempre seguro», reforçando uma perceção reacionariamente construída entre imigração e insegurança; o assassinato do Odair Moniz; a terrível imagem de dezenas de pessoas encostadas na parede no Martim Moniz; as dezenas de despejos; a aprovação de uma lei que nega saúde pública para imigrantes indocumentado; a islamofobia e o orientalismo cada vez mais evidente; isso é o resultado de um processo de fascistização da sociedade portuguesa, em que o racismo nas suas três dimensões: individual, institucional e estrutural tende a se intensificar e alargar. Quanto mais a crise capitalista se agudiza, mais esses movimentos e partidos neofascistas ganham força e são normalizados.
Reforçamos, seguir a «debater» o que foi a trágica morte de Odair Moniz, a violência policial e a situação dos bairros sem apontar para a questão central, a relação inseparável entre colonialismo, racismo e capitalismo, é continuar a ocultar a verdadeira «natureza histórica» do problema.
* Existem segmentos liberais em Portugal que vociferam que vivemos num país socialista, o que não passa de terraplanismo e despolitização reacionária e neofascista.
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