|Jorge C.

Índios e cowboys

É preciso acreditar que nada disto se faz sozinho, que nenhuma luta é um processo atomizado e individual, que é na unidade que está a força e que, mesmo com algum sacrifício, damos o que temos. Dar a coragem de não desistir da Paz é, talvez, o mais brilhante de nós.

CréditosHaitham Imad / EPA

A invisibilidade mediática de manifestações e demonstrações democráticas é uma prática provocada ao longo de décadas, que tem como objetivo mostrar que não adianta lutar pela realização dos direitos. Olhos que não veem, coração que não sente, dir-se-ia. Se não está na televisão, não aconteceu. Ouvimos dizer, com frequência, que no setor privado não há greves ou que fazer greve não leva a nada, mas temos tantos e tantos exemplos de que não há coisa mais falsa. São muitos os momentos de grandes lutas e conquistas que nunca chegam às nossas casas e em contrapartida somos invadidos por horas de comentário ao serviço daqueles que nos querem calados.

Para os órgãos de comunicação social é mais fácil noticiar o que acontece a milhares de quilómetros da nossa porta do que uma ação de luta de trabalhadores em Portugal. E mesmo a milhares de quilómetros depende dos acontecimentos. A ameaça do exemplo – daquilo que demonstra que há uma alternativa – faz com que as escolhas editoriais rejeitem incluir na sua agenda a realização democrática dos direitos fundamentais. Não é de admirar que a Constituição material seja, cada vez mais, um lugar estranho para muita gente e que enfrentemos, hoje, um maior número de retrocessos e o recrudescimento de discursos reacionários.

Essa invisibilidade, porém, não tem uma dimensão exclusivamente nacional. Ela é provocada também nos contextos internacionais onde há uma forte resistência ao imperialismo. O ângulo escolhido – e não há outra maneira de colocar isto – é sempre o dos aliados dos EUA e da UE, lembrando os jornalistas dos velhos westerns (estou a pensar, por exemplo, em O Homem Que Matou Liberty Valance, de John Ford), muito corajosos para denunciar as verdades, a moral e a justiça entre os cowboys, mas ignorando magistralmente a existência dos índios. Tudo a preto e branco. É um ângulo em que tudo se relativiza, em que tudo confirma sempre uma ideia de justiça e moral onde cabe a subjugação dos outros. Conta-se, apenas, um lado da história e fabricam-se guiões que, sem alternativa, são repetidos com uma convicção profunda de que nos representam. Esta subversão do sentido de justiça ganha especial destaque na arrumação do mapa geopolítico e na correlação de forças entre imperialistas e os territórios que rejeitam a sua interferência – os cowboys e os índios.

«É um ângulo em que tudo se relativiza, em que tudo confirma sempre uma ideia de justiça e moral onde cabe a subjugação dos outros. Conta-se, apenas, um lado da história e fabricam-se guiões que, sem alternativa, são repetidos com uma convicção profunda de que nos representam.»

Não deixa de ser fascinante a forma como tudo isto é feito: depois de se ignorar por completo uma qualquer violação do direito internacional, espera-se pela reação de quem viu os seus direitos violados e só então se dá a notícia, a partir de uma perspetiva perversa, em que as vítimas passam a culpados, em que os explorados e oprimidos que resistem, que reagem e que se revoltam passam a provocadores da desordem ou em que uns tenham direito ao estatuto de rebelde libertador e outros estejam sujeitos à acusação de terroristas. Quem decide esta distinção? Como se pode ser justo com povos sobre os quais recaem camadas e camadas de preconceitos difundidos como crónicas de costumes observados por satélite? Acolhemos informação que nos chega altamente contaminada, de aparência fidedigna, certos do nosso sentido de justiça. A partir daí, decidimos de que lado estamos e decidimos se é justo ou não haver quem morra numa guerra.

É difícil imaginar que conceções do mundo têm aqueles que olham com distância, indiferença e cinismo para a morte de seres humanos. É difícil aceitar que para muita gente seja mais fácil acolher o relativismo moral que todos os dias é difundido sem decoro pelas televisões e por exércitos de contas de redes sociais, que repetem à náusea narrativas perversas sobre as motivações do terror. Pessoas que estimamos entram em conflito connosco, porque a contaminação é tal que nem se apercebem que estão a sugerir que outros seres humanos morram para que se derrote um inimigo fundado, descrito e qualificado pelos mesmos canais onde opinião e informação se confundem e onde a agenda coincide sempre com os interesses dos instigadores da guerra.

Para chegarmos aqui, um longo caminho foi feito. Há muito que se criou a convicção de que o Ocidente, depois da II Guerra Mundial, era o garante da Humanidade. Mas como isto à época poderia não ter aceitação, optou-se por adaptar uma palavra que sugerisse um sentimento partilhado por todos – democracia. A democracia foi o conceito apropriado pelo imperialismo, como um sentimento, para designar a ilusão da paz e da justiça e a sensação de normalidade, escondendo o seu itinerário. Quando se diz, por exemplo, que Israel é «a única democracia do Médio-Oriente», ignora-se o regime político de Israel e, sobretudo, ignora-se o significado de colonialismo e de ocupação. Uma ilusão muito semelhante àquela que muitos ainda hoje alimentam relativamente ao fascista Marcello Caetano e à sua prometida primavera, durante a qual se continuou a prender e a torturar seres humanos, tanto cá como na guerra que nos obrigou a morrer e a matar.

«Pessoas que estimamos entram em conflito connosco, porque a contaminação é tal que nem se apercebem que estão a sugerir que outros seres humanos morram para que se derrote um inimigo fundado, descrito e qualificado pelos mesmos canais onde opinião e informação se confundem e onde a agenda coincide sempre com os interesses dos instigadores da guerra.»

Há, aliás, um lugar amplamente comum que nunca merece a reflexão necessária: a frase atribuída a Churchill de que de todos os sistemas políticos a democracia é o menos mau dos que encontrámos até hoje. Não havendo dúvidas sobre a grande conquista que é a democracia, mas conhecendo o que Churchill, por exemplo, entendia por democracia, suspeito que ela é aqui usada para significar outra coisa – o capitalismo. Esta campanha de confundir democracia com capitalismo tem já uma provecta idade e de tanta força que foi ganhando assume-se como um dogma. É nesta dogmática, que tem nas ferramentas mediáticas e nas armas do quotidiano o seu grande promotor (as notícias, os filmes, o entretenimento, as horas intermináveis de comentário indigente – o que se apaga e o que se esconde da história, da memória e da atualidade), que reside a grande convicção de que a nossa opinião é baseada na evidência, mesmo que não o seja. É esta a grande vitória do dogma – uma maioria que já nem consegue questionar o percurso das suas próprias convicções, que escolhe palavras para não dizer outras ou para esquecer que as palavras existem por algum motivo. As palavras são importantes, dizia o Nanni Moretti em Palombella Rossa, um filme que nos dá a sensação da insuficiência da memória perante a força do poder e da opinião dominante, uma sensação de derrota quase inevitável e que leva tantos à desistência. Desiste-se porque os outros não nos entendem e assume-se que o problema é nosso (mais um lugar-comum).

Mas será justo desistir das centenas de milhares de mortos e estropiados, de crianças inocentes, porque ninguém nos ouve, porque ninguém se esforça? Será justo com os outros povos que aceitemos com a nossa desistência o investimento de milhões na guerra e na morte? É, de facto, difícil imaginar como é que, aqui, no nosso contexto, alguém pode aceitar desistir da verdade num país que lutou contra o fascismo durante 48 anos, num país que viu de perto a força que tem a coragem e a resistência, num país que se viu calado e oprimido por defender a Paz e em que muitos pagaram com a vida a coragem que demonstraram com ações simples, nunca conformados com o silêncio da sua consciência.

«Esta campanha de confundir democracia com capitalismo tem já uma provecta idade e de tanta força que foi ganhando assume-se como um dogma.»

Talvez ninguém se queira confrontar com a sua própria cobardia e isso compreende-se. Quem, entre nós, enfrenta e assume as suas insuficiências? Não é fácil. Mas nada disto, na verdade, é sobre nós, sobre as nossas intenções, o nosso orgulho e a nossa honra. Para percebê-lo é preciso, então, acreditar que nada disto se faz sozinho, que nenhuma luta é um processo atomizado e individual, que é na unidade que está a força e que, mesmo com algum sacrifício, damos o que temos. Dar a coragem de não desistir da Paz é, talvez, o mais brilhante de nós.

Fechámos um ano com sinais de grande preocupação, que não nos podem ser indiferentes. Se o forem, seremos mais facilmente surpreendidos por aquilo que achámos que nunca se repetiria. É por isso que atentos, solidários e resistentes, sobretudo unidos, teremos mais força para confiar que é possível um mundo bem diferente – um mundo de Paz e Cooperação. Em 2025 é urgente a coragem da Humanidade. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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