Há muitos anos, uma amiga, chegada de uma viagem a Paris, dizia-me, desiludida: as cidades europeias estão a ficar todas iguais. A uniformização do urbanismo por toda a Europa começava, à época, a transformar as cidades, ainda longe da nossa realidade. As praças redesenhadas, as requalificações de edifícios, as quotas dos passeios, o mobiliário urbano, incluindo barreiras de metal para impedir estacionamento, a renovação do pavimento, as cores, as sombras, tudo começava a caminhar para uma homogeneidade que parecia acompanhar um certo projeto de unidade geopolítica, uma ideia de Europa, como já havia lido em George Steiner. Nada como a ideia de um intelectual para validar a subversão ideológica.
Os anos passaram e a uniformização urbanística foi acompanhada por dinâmicas e regras comuns em cidades que passaram pelas mesmas crises económicas, sociais e culturais, sendo difícil até saber o que nasceu primeiro, se a galinha uniformizadora, se os ovos uniformizados. Um poder hegemónico de pensamento único – a União Europeia – validou tudo o resto e com a ilusão da mobilidade, do low-cost e dos programas de intercâmbio de jovens precários e explorados generalizou-se a ideia de que chegávamos, então, ao pináculo das democracias ocidentais e a Europa era toda uma grande família.
O movimento social dos filhos da classe trabalhadora, novos proletários mais bem remunerados, deu-lhes a ilusão de que o mundo agora era deles, que estava ali acessível a um clique de distância, como dizem agora os missionários das «novas tecnologias» (como se a tecnologia fosse só agora uma novidade), e que o cosmopolitismo europeu era a sua verdadeira identidade. Aquela sensação constante de sofisticação e contemporaneidade, coincidente com a sua própria evolução, definidora da sua verdadeira classe – a dos escolarizados multiculturalistas – era o sintoma da urgência de viajar, numa disputa com a ansiedade de perder alguma coisa – o fear of missing out (FOMO).
Nas últimas décadas, o grande empreendimento turístico resultou de uma cooperação inequívoca entre o poder político e o poder económico e tornou-se numa das maiores conquistas do neoliberalismo. As opções políticas que apontaram o turismo como a salvação da economia, sobretudo após a crise de 2008, foram apoiadas não só pela mesma narrativa de inexistência de alternativas, mas ainda mais pela ilusão da integração europeia, com toda a pressão que isso provocou no trabalho e na habitação. A satisfação do consumo não poderia acontecer sem que alguém tivesse de prestar os serviços necessários, independentemente das condições em que o fizesse. Com o turismo chegou uma nova demografia e novos sem-abrigo. Até nisso as cidades ficaram parecidas, assim como o cinismo que acompanha o consumidor quando, passando ao lado da pobreza, enquanto aprecia a arquitetura e a rede de transportes, afirma sem hesitação «nós, realmente, estamos muito atrasados». Há, de facto, cidades que estão muito à frente no campeonato de atirar pessoas para a rua. Dublin e Barcelona são dois belíssimos exemplos.
Não escolho mencionar estas duas cidades ao acaso. São ambas cidades com um património avassalador, com uma história que lhes deu uma cultura distinta e cativante. Da sua arquitetura aos fenómenos artísticos e literários, passando pelas dinâmicas de sociedade e pela iniciativa coletiva na defesa da sua soberania, chegaram até aos dias de hoje com esse património carregado de paixão e sofrimento, de dignidade, de memória e de verticalidade.
«Há, de facto, cidades que estão muito à frente no campeonato de atirar pessoas para a rua. Dublin e Barcelona são dois belíssimos exemplos.»
A sua língua, a literatura, a relação com os outros, a construção da cidade foram sempre sintomas de uma ligação profunda do seu povo a essa história. Mas algo parece estar a mudar, uma mudança que contaminou até as próprias instituições de caráter científico.
Nas últimas duas décadas, a imposição do «marketing do território» na agenda da decisão política quis satisfazer interesses nem sempre coincidentes com as dinâmicas de sociedade, privilegiando setores de negócio privado com o argumento de que o turismo era o futuro das periferias. Depois de esventrados na indústria produtiva e na agricultura, era necessário continuar a sugar recursos dos territórios. Então, alguém lembrou-se: que ricas cidades aqui temos para transformar em parques de diversões! Vender a ideia do turismo a partir da pseudociência económica e de uma ferramenta ideológica chamada «marketing do território» passou a ser o instrumento para cooptar até instituições públicas que sempre aplicaram critérios científicos nas suas decisões.
Um bom exemplo desta contaminação é o Museu de História de Barcelona, onde, logo à entrada, somos confrontados com um vídeo que nos conta a história do território a partir dos vários nomes pelos quais este já foi conhecido: Barcino, Barchinona, Barcelona. Representando épocas diferentes, desde o Império Romano até à Revolução Industrial, a designação de Barcelona não surgiu apenas por decreto. A dimensão linguística e cultural teve um papel central até no nome da cidade. Mas, por algum motivo que nos escapa, o Museu de Barcelona decidiu acrescentar uma nova designação, mais contemporânea e que certamente encaixa melhor na designação atribuída automaticamente pelos softwares de impressão de bilhetes de avião: BCN. À medida que o vídeo vai avançando e se vai aproximando do nosso tempo, não conseguimos imaginar o que vem dali. Quando, depois de um banho de história e cultura, das elites e do povo, chegamos a uma conclusão absolutamente despropositada, podemos ver bem o nível de contaminação a que até a história está exposta. Barcino, Barchinona, Barcelona, BCN. Hélas!
É na rua destas cidades que vamos confirmar que o seu interesse histórico, cultural e social foi atropelado pela voracidade do consumo e do entretenimento. A cidade que se manifesta nos seus cafés, na gastronomia, nas livrarias, nos museus é agora um mapa de pontos a assinalar para garantir que usufruímos de tudo o que pagámos, como quem lambe as bordas do prato para não deixar nem uma migalhinha.
«Vender a ideia do turismo a partir da pseudociência económica e de uma ferramenta ideológica chamada "marketing do território" passou a ser o instrumento para cooptar até instituições públicas que sempre aplicaram critérios científicos nas suas decisões.»
No meio dessa sofreguidão, aos encontrões, alheados da vida que nessas cidades ainda existe, somos a espécie invasora da história, o hóspede extraterrestre que contribui para a colonização da terra dos outros, como na ficção científica. E tal como nessas distopias ficcionais, só contribuímos para a sua destruição, porque no capitalismo nada se cria, tudo se consome.
Leio, por estes dias, a autobiografia de Antoni Tàpies onde o pintor barcelonês, em pleno franquismo, vai descrevendo a sua Barcelona, as mudanças da Barcelona dos seus avós e pais, o sonho e as espirações da República, o horror da Guerra Civil e o progresso social e cultural da cidade. Já no fim da sua vida, Tàpies mostrou-se desiludido e triste com o decurso do fim da União Soviética, com o regresso da guerra à Europa (os Balcãs) e a própria dinâmica política da União Europeia. Associo este relato a outros que fui lendo de Villa-Matas, de Bolaño (que ali viveu muitos anos) ou de Miró e compreendo que uma forma de sermos solidários com as cidades e o seu povo é ir ao encontro da história do seu tempo e fazermos, também, o mesmo exercício de memória, de salvaguarda dessa memória, de rejeição da subversão da memória e a intransigência em não permitirmos que os nossos mecanismos de salvaguarda do património sejam mercadorizados e subvertidos para defender interesses que não são os nossos e que nos vão transformando, a todos, em figurantes da diversão alheia.
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