O Governo voltou a decretar a situação de calamidade (não é estado de calamidade, como impropriamente é classificada por muitos, até por governantes) em todo o território do Continente, desta vez no período entre o passado dia 1 de dezembro e as 23h59 do dia 20 de março de 2022.
«A evolução da situação epidemiológica em Portugal e, sobretudo, nos restantes Estados-Membros da União Europeia, tem evidenciado uma trajetória ascendente no que concerne ao número de novos casos diários da doença COVID-19, estando a verificar -se, de igual modo, um crescimento acentuado da taxa de incidência e do índice de transmissibilidade do vírus SARS-CoV-2. Apesar de, fruto da elevada taxa de vacinação atingida em Portugal, os indicadores de pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde e o impacto na mortalidade estarem abaixo dos níveis de referência propostos pelos peritos, a realidade referida exige a adoção imediata de medidas preventivas, de modo a tentar evitar o agravamento da situação epidemiológica». É assim que o Governo justifica a sua decisão, plasmada na Resolução do Conselho de Ministros n.º 157/2021, de 25 de novembro.
«Não é necessário ser jurista para concluir que os legisladores que construíram este diploma [Lei de Bases da Proteção Civil] não tiveram em conta a natureza muito particular de uma pandemia como aquela que Portugal (e o mundo) tem vivido desde março de 2020»
A situação de calamidade é aplicada quando, perante uma catástrofe ou acidente grave de previsível intensidade, o país se vê perante a necessidade de adotar medidas de carácter excecional destinadas a prevenir, reagir ou repor a normalidade das condições de vida (artigo 9.º da Lei de Bases da Proteção Civil).
Sem pôr em causa a necessidade de se adotarem medidas consentâneas com a natureza do princípio da precaução, igualmente consagrado no diploma anteriormente referido, uma vez mais é ele que está verdadeiramente em causa, dado que a sua formulação sistémica e doutrinária, tanto na sua versão inicial (de 1991) como na versão vigente (de 2015), não se enquadra com a especificidade de risco de uma crise pandémica.
A Proteção Civil, por definição, tem por finalidade «prevenir riscos colectivos inerentes a situações de acidente grave e catástrofe, de atenuar os seus efeitos e proteger e socorrer as pessoas e bens em perigo quando aquelas situações ocorrem».
A Lei de Bases define acidente grave como «um acontecimento inusitado com efeitos relativamente limitados no tempo e no espaço, suscetível de atingir as pessoas e outros seres vivos, os bens ou o ambiente» e catástrofe como «o acidente grave ou a série de acidentes graves suscetíveis de provocarem elevados prejuízos materiais e, eventualmente, vítimas, afetando intensamente as condições de vida e o tecido socioeconómico em áreas ou na totalidade do território nacional».
«Este é o tempo certo para se defender a necessidade de o Parlamento elaborar e aprovar uma nova Lei de Bases da Proteção Civil, ajustada à tipologia de risco identificada pela comunidade científica, dotada dos mecanismos de agilização e resposta às crises de qualquer natureza»
Não é necessário ser jurista para concluir que os legisladores que construíram este diploma não tiveram em conta a natureza muito particular de uma pandemia como aquela que Portugal (e o mundo) tem vivido desde março de 2020. Uma pandemia como a Covid-19 não é um acidente grave nem uma catástrofe. É isto e muito mais, pelo que importa dar a esta tipologia de risco um enquadramento legal adequado.
Esta circunstância tem sido bastante reclamada, embora sem qualquer efeito prático. Assim o Governo continua a decidir tendo por suporte um desadequado enquadramento legal, com a devida validação do Parlamento e do Presidente da República.
Este é o tempo certo para se defender a necessidade de o Parlamento elaborar e aprovar uma nova Lei de Bases da Proteção Civil, ajustada à tipologia de risco identificada pela comunidade científica, dotada dos mecanismos de agilização e resposta às crises de qualquer natureza, causadas por eventos naturais, biológicos ou tecnológicos que possam provocar graves disrupções sociais e elevado número de vítimas. Uma Lei que assuma o carácter instrumental de ação política informada, planeada e eficaz a todos os níveis da administração do Estado de Direito. Ou seja, que dê consequência a uma das lições que importa aprender com a pandemia.
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