|Miguel Tiago

Quando a Autoridade faz parte do cartel

Ao mesmo tempo que os trabalhadores portugueses passavam por um dos piores períodos políticos e sociais (especialmente após 2009), a banca combinava preços nas barbas da Autoridade da Concorrência, do Banco de Portugal e do Ministério das Finanças. 

CréditosManuel de Almeida / Agência Lusa

A reprivatização da banca, realizada pelas mãos de Soares e Cavaco e aplaudida por todos os sectores pró-União Europeia, mostrada como um factor de modernização da economia e de alinhamento político com os países desenvolvidos foi, afinal de contas, a principal alavanca para a recomposição dos grupos monopolistas e para a entrega dos destinos do país a interesses que são alheios aos dos trabalhadores e do país. 

Ao longo da sua história recente e pós-privatização, a banca acumulou lucros colossais, resultados de práticas de condicionamento do acesso ao crédito, de distribuição de créditos em substituição de dividendos, de utilização de complexos esquemas de engenharia fiscal com recurso a offshores, de risco subavaliado e sub-provisionado, entre outras formas de desvio activo da riqueza produzida em Portugal para as contas dos grandes accionistas da banca. Ao longo desses mais de 30 anos de banca privatizada, a banca sorveu milhares de milhões de euros, subtraídos à economia nacional, desviados em grande parte para fora do país. Só em dividendos, a banca aproxima-se actualmente de uma distribuição cumulativa na ordem dos 30 mil milhões, excluindo o banco público, nos últimos 30 anos, o que representa uma extracção de cerca de mil milhões por ano, em média, só em distribuição de dividendos e excluindo as outras práticas de distribuição de resultados (como a concessão de crédito a partes relacionadas, a aceitação de títulos mobiliários como colateral, o abatimento de créditos ao activo, entre outras). Esse valor corresponde a um total de cerca de 90 a 100 mil milhões de euros em lucros para o mesmo período. 

Além disso, nos momentos em que a banca sofreu as consequências dos seus próprios métodos, o Estado foi chamado a intervir e a compensar as discrepâncias nos balanços das instituições financeiras, num total que já ascende a mais de 21 mil milhões de euros, com elevado potencial para o crescimento do valor em função do desfecho do caso Novo Banco e das perdas que ainda pesam nos recursos públicos relacionadas com o BPN. 

Para termos uma referência actual, o conjunto dos bancos que actuam em Portugal apresentou em 2023 um resultado operacional de 7,3 mil milhões de euros antes de impostos, dos quais 3,4 mil milhões resultaram da cobrança de taxas e comissões bancárias. Desse valor, cerca de 2,4 mil milhões foram distribuídos em dividendos, sendo 1,6 mil milhões distribuídos a accionistas quase integralmente estrangeiros, nomeadamente espanhóis. 

«Só em dividendos, a banca aproxima-se actualmente de uma distribuição cumulativa na ordem dos 30 mil milhões, excluindo o banco público, nos últimos 30 anos, o que representa uma extracção de cerca de mil milhões por ano, em média, só em distribuição de dividendos e excluindo as outras práticas de distribuição de resultados»

Apesar do fardo gigantesco que este sector representa para empresas e famílias e da quantidade de recursos que subtrai à economia nacional, entre 2002 e 2013, foi comprovada pela Autoridade da Concorrência a cartelização e combinação de preços e práticas no crédito à habitação, crédito às empresas, spreads e outros produtos bancários. Utilizando os dados disponíveis na base de dados da Associação Portuguesa de Bancos, podemos estimar os lucros da banca durante esse período na ordem dos 15 mil milhões de euros. A Autoridade da Concorrência demorou seis anos até deliberar sobre a matéria, aplicando uma coima de 225 milhões ao conjunto dos bancos envolvidos na combinação de preços. Além de aplicar uma coima que corresponde a 1,5% dos lucros obtidos pela banca no mesmo período de tempo, fá-lo com um atraso significativo em relação à data em que tais actos supostamente se iniciaram (2002), permitindo a interpretação do Tribunal da Relação sobre a aplicação do prazo de prescrição. 

A decisão do Tribunal da Relação sobre a prescrição dos actos não dispensa aprofundamento do caso, nomeadamente quanto à fase temporal em que ocorreram actos não prescritos, mas o que mais provoca revolta é a discrepância de meios entre a Autoridade da Concorrência e a banca, bem como a discrepância no tratamento da banca e do cidadão. Ao mesmo tempo que milhares de cidadãos são perseguidos por coimas de centenas de euros por passar numa ex-SCUT e se terem esquecido de pagar 0,30€, a banca consegue levar a cabo combinação de preços sem que lhe seja aplicada coima alguma. Ao mesmo tempo que os trabalhadores portugueses passavam por um dos piores períodos políticos e sociais (especialmente após 2009), a banca combinava preços nas barbas da Autoridade da Concorrência (AdC), do Banco de Portugal (BdP) e do Ministério das Finanças. 

Não bastava ter recebido cerca de 12 mil milhões de euros, apenas entre 2011 e 2013, que os portugueses pagam ainda hoje com o seu trabalho, por força do pacto de submissão assinado entre PS/PSD/CDS e FMI/CE/BCE e que destinava, só para bancos, esse valor, a banca foi ainda a protagonista de um assalto combinado aos portugueses por via da combinação e cartelização. 

O início de 2025 deu-nos estas notícias sobre a prescrição de uma coima de valor absolutamente risível, tendo em conta a ordem de grandeza dos valores obtidos em lucros pelo sector, ao mesmo tempo que nos deu a conhecer que a banca se prepara para apresentar resultados de 2024 que se aproximam de valores historicamente elevados, muito provavelmente superiores aos de 2023 e que antecipa uma distribuição de dividendos de 2,9 mil milhões de euros respeitantes a esse exercício. 

«Muitas vezes, ir a bancos distintos com a esperança de diferentes ofertas para a concessão de um crédito, por exemplo, é como ir na auto-estrada e esperar que os painéis informem preços diferentes dos combustíveis nas próximas três estações de serviço.»

Podemos daqui concluir com facilidade que a Autoridade da Concorrência está capturada por quem supostamente regula, quer seja pela sua natureza enquanto entidade dita «independente», quer seja pela discrepância absurda de meios perante os que fiscaliza. Podemos igualmente concluir que, se a banca praticou durante todo aquele período combinação de preços num vasto conjunto de produtos e conseguiu ser apanhada apenas após cerca de 15 anos, então tudo aponta para que continue a levar a cabo exactamente as mesmas práticas, exactamente nas barbas dos mesmos de sempre, AdC, BdP e Governo. 

Aliás, muitas vezes, ir a bancos distintos com a esperança de diferentes ofertas para a concessão de um crédito, por exemplo, é como ir na auto-estrada e esperar que os painéis informem preços diferentes dos combustíveis nas próximas três estações de serviço. 

Mas, mais do que essas conclusões, o que este processo – um mais na história de uma banca parasitária e aventureira – permite é reforçar a reivindicação do controlo público e democrático da banca, chamando ao Estado a direcção do sector financeiro, construindo um forte pólo público bancário e resgatando o controlo do crédito das mãos dos piratas de fato e gravata que assaltam a economia nacional diariamente. Uma banca pública controlada democraticamente, que entregue ao País a capacidade de colocar a banca ao seu serviço e que reverta o rumo actual de colocação do banco público ao serviço da banca privada. Sim, porque a CGD estava incluída no cartel porque o Estado coloca o seu banco como uma bitola dos interesses privados na banca, ao invés de colocar o banco público como bitola do interesse nacional junto da banca. 

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