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Racismo, a estratégia de um troll

Este conceito é bastante utilizado politicamente, ajudando a eleger governos um pouco por todo o mundo. Com o recurso a estas técnicas, candidatos apagados ou de baixo relevo conseguem ganhar notoriedade.

Créditos / DriverMax

Em meados do século XIX, tornou-se comum um método de pesca denominado de trolling, que consistia na utilização de um conjunto de iscos (similares a pequenos peixes em cardume) com vista a atrair peixes de maior dimensão.

Nos nossos dias, o conceito alargou-se ao universo cibernauta, mais concretamente no que diz respeito às redes sociais. De base, o conceito mantém a sua significância, contudo o contexto é agora completamente diferente.

Um troll é um indivíduo com pouco relevo social que passa o dia na internet e noutros meios audiovisuais, manifestando toda a classe de barbaridades com o objectivo de fisgar peixes maiores e utilizando para o efeito «iscos sangrentos», tais como ofensa directa, notícias falsas ou discurso de ódio, entre outros.

Assim, quando o «peixe grande» responde ao «peixe pequeno», este é fisgado, o que leva muita gente a simpatizar com o «peixe pequeno», situação que se reflecte na dita opinião pública.

Este conceito é bastante utilizado politicamente, ajudando a eleger governos um pouco por todo o mundo. Com o recurso a estas técnicas, candidatos apagados ou de baixo relevo conseguem ganhar notoriedade.

Na Rússia, por exemplo, a existência de troll farms (quintas de trolls) tornou-se amplamente conhecida em 2017 quando vários órgãos de imprensa noticiaram que estas empresas, assim chamadas, estavam a utilizar sistemas de inteligência artificial (bot’s) para auxiliar a promoção de várias candidaturas um pouco por todo o mundo, tal como a de Donald Trump nos EUA.

Em Portugal, podemos dizer com relativa certeza, que este nível de «profissionalização» ainda é uma miragem, contudo basta fazer um rápido exercício de memória para encontrar personagens de vários quadrantes políticos que recorrem a este «método de pesca».

No campo da política, as mensagens podem ter inclusive um teor bem mais profundo e uma utilidade maior do que ganhar notoriedade, podendo também ajudar a passar mensagens de uma forma quase encriptada para subgrupos alvo que sejam capazes de as entender. A este conceito chama-se vulgarmente dog whistle (assobio de cão).

Dando um exemplo concreto, em Setembro de 2019 foi organizado o Budapest Demographic Summit III, com o objectivo de promover os valores da família tradicional caucasiana europeia judaico-cristã tendo em conta o seu decréscimo populacional na Europa, por comparação às famílias de outras etnias. É natural que delegações de países com governos de extrema-direita como Hungria, Polónia, EUA e Brasil tenham comparecido com elementos de peso de cada um dos seus governos.

É precisamente o tema do racismo, subentendido nesta cimeira, que está de novo na ordem do dia tendo em conta os mais recentes acontecimentos nos EUA, com a divulgação das imagens de abuso policial.

A radicalização da discussão criou um aproveitamento político desmedido, ainda para mais se tivermos em conta que, nos últimos três meses, para além da pandemia de Covid-19, não existia espaço para mais nenhum conteúdo.

O espectro da discussão no nosso país, que é obviamente sempre de salutar, tornou-se tão difuso que, ao dia de hoje, parece que se centra numa premissa única e exclusiva: perceber se Portugal é ou não é racista.

Este debate parece misturar de uma forma quase ardilosa os valores e convicções pessoais de cada um de nós com o estado social vigente, talvez com o objectivo de obter a seguinte conclusão: «se eu não sou racista, então não há racismo em Portugal».

Para contrastar, números do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), revelados em 2017, alertam para o aumento de queixas apresentadas à Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR). Estes números salientam que em 2018 entravam neste organismo, em média, 26 queixas por mês contra 15 queixas no ano anterior, sendo que 80% destas incidências são recebidas pelo lesado via digital (correio electrónico e formulário electrónico), com maior número de ocorrências nos grandes centros urbanos.

«Este debate parece misturar de uma forma quase ardilosa os valores e convicções pessoais de cada um de nós com o estado social vigente, talvez com o objectivo de obter a seguinte conclusão: "se eu não sou racista, então não há racismo em Portugal".»

Para além dos dados desta organização, muitas outras manifestações de racismo podem ser encontradas fazendo um rápido levantamento na imprensa nacional ao longo dos anos.

Tendo em conta estas e outras evidências, então por que motivo a discussão do racismo acontece nestes moldes em Portugal? Qual é então a razão para que se esteja a pautar pelos nossas atitudes e comportamentos pessoais?

Em 1986, os investigadores Samuel L. Gaertne e John F. Dovidio apresentaram-nos o seguinte conceito: racismo aversivo. Segundo eles, este tipo de racismo pode ser caracterizado pelo facto de os sujeitos que o partilham terem uma matriz de valores igualitária, serem normalmente favoráveis a políticas sociais de inclusão mas que, apesar disso, têm sentimentos ou preconceitos negativos sobre os negros.

Basicamente, o que estes autores defendem é que em circunstâncias normais de segregação, em que a etnia é o elemento desestabilizador, estes grupos apresentam comportamentos socialmente aceitáveis, com um conjunto de atitudes de carácter igualitário e inclusivo. Contudo, quando o contexto que lhes é apresentado não está directamente ligado a aspectos raciais, optam por comportamentos racistas com justificações de carácter não racial.

Concretizando, e a título de exemplo, poderíamos estar a falar de um autarca que opta por separar em duas escolas alunos brancos e alunos negros invocando para o efeito razões sócio-culturais.

Assim, percebemos melhor o debate que está a ter lugar. Não se trata de um grupo que esteja a negar as evidências mas sim de um grupo que não se vê a si próprio como racista, mas que o é de forma aversiva, e que fica indignado quando a sua construção pessoal se vê abalada pelos factos.

Quando este tema apareceu na agenda do dia de forma mais incisiva, vários «peixes pequenos» tinham conhecimento desta realidade e sabiam que, lançando esta «isca sangrenta», vários elementos do campo progressista a iriam morder com raiva. Perdendo assim a objectividade discursiva e argumentativa que pede um assunto desta natureza. Dando apenas aso à sua frustração através, por exemplo, de actos de vandalismo.

Os «peixes pequenos» sabiam que este tipo de comportamento levaria muitos a simpatizar com eles, quer o sub-grupo da população que não se julga racista apesar de o ser, quer o sub-grupo  que é verdadeiramente racista e que tem o ouvido treinado para este «assobio» específico.

Concluímos, facilmente, que não existe objectividade política nas acções dos «peixes pequenos». Estas não estão em nada relacionadas com o combate ao racismo, mas sim com a capacidade de alargar a sua base de apoio e levar cada vez mais pessoas a partilhar das suas ideias.

Estou certo que mesmo no tempo da escravatura existia gente solidária e bem intencionada, que condenava a sorte do povo escravizado enquanto comprava um deles. Mas para combater o racismo não basta ter boas intenções para com os outros ou lamentar os seus infortúnios, é preciso ser capaz de o identificar nas coisas mais elementares e lutar diariamente para que este seja um dia um problema do passado e deixe de ser definitivamente uma arma de aproveitamento político.


António Ribeiro é gestor de logística

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