|Jorge C.

Trancas à porta

Com a falta de tempo e de direito ao lazer, há menos tempo para o convívio em família e em comunidade, deixando toda a construção de valores e formação do indivíduo entregue à internet e aos próprios adolescentes, ao seu convívio exclusivo.

Série «Adolescence» Créditos / Russh

Tem sido frequente ouvirmos dizer que vivemos no tempo das perceções, tal como nos idos da década passada vivíamos no tempo da pós-verdade e na década anterior num outro tempo qualquer. Fica-se com a sensação de que precisamos desesperadamente de caracterizar o tempo em que vivemos para lhe dar algum sentido. Por outro lado, quando se diz que vivemos no tempo das perceções tenta-se validar uma tendência para analisar a realidade do ponto de vista da perceção. 

Com a ampliação de determinadas narrativas a partir da tendência das perceções, a especulação sobre a realidade, que nasce muitas vezes da repetição persistente de uma ideia através de veículos como as redes sociais, apresenta-se como facto ou senso comum. A aparência forma a perceção e propaga-se dogmaticamente, penetrando no discurso, assumindo preponderância na nossa relação com os outros. 

O entretenimento tem dado um contributo fundamental para esta dinâmica. Para além das redes sociais, absorvidos pelas plataformas de streaming e as suas horas intermináveis de séries e filmes, ficamos permeáveis às sensações provocadas por produtos concebidos para nos envolver, para mexer com as nossas emoções. É quase inevitável que tenham influência na forma como chegamos a certas conclusões. 

Um desses produtos tem gerado sérias preocupações sobre a forma como crianças e jovens se relacionam virtualmente e os efeitos que essa relação tem na realidade material. Adolescence é uma série inglesa que explora as relações online e o choque que a revelação das dinâmicas criadas pelos mais novos provoca nos adultos. Após a sua estreia, por todo o mundo netflixizado surgiram peças jornalísticas, artigos de opinião e entrevistas aos autores da série e a vários especialistas na área das ciências sociais e da psicologia. Soou, então, o alarme social: as crianças estão perdidas, afogadas em equívocos e em conceções abjetas, desestruturadas e a culpa é, abstratamente, das redes sociais. Após um rápido diagnóstico, a solução avançada por uma ampla maioria é a restrição do acesso às redes, a monitorização e a vigilância. A facilidade com que estas conclusões são assumidas é quase tão espantosa como a facilidade com que o diagnóstico começa bem a jusante das primeiras formas de sociabilização das crianças. Até porque a série nos apresenta uma família da classe trabalhadora onde existe afeto e harmonia, dentro das atribulações normais do quotidiano. 

Somos, assim, confrontados com um contexto de normatividade familiar e conduzidos a concentrar a nossa interpretação daquela realidade nesse buraco negro que é a internet. Desde a atribuição de responsabilidades à ignorância tecnológica das famílias, passando pelo alcance dos tentáculos da extrema-direita e das suas narrativas reacionárias, encontramos várias explicações dadas, muitas vezes por aqueles que se consideram atentos aos fenómenos obscuros do mundo virtual. Com tudo isto gera-se um discurso catastrófico e de inevitabilidades que só pode merecer medidas urgentes e eficazes, diz-se. Por outro lado, ao objeto deste diagnóstico – a crianças e jovens – também são atribuídas responsabilidades por não nascerem equipados com as ferramentas sociais indicadas. Vivemos neste tempo onde, como noutros tempos, se alimentam ruturas geracionais que, mais uma vez, não têm outra origem que não as relações de poder estabelecidas e a dificuldade em olhar para além da aparência. Aqueles, que noutro tempo foram acusados de ser a geração rasca, olham para estes fenómenos com os mesmos equívocos que a geração dos seus pais olhou para o seu comportamento. 

«Desde a atribuição de responsabilidades à ignorância tecnológica das famílias, passando pelo alcance dos tentáculos da extrema-direita e das suas narrativas reacionárias, encontramos várias explicações dadas, muitas vezes por aqueles que se consideram atentos aos fenómenos obscuros do mundo virtual.»

Ainda que o paternalismo seja uma tendência histórica, como forma de disfarçar a falta de melhores soluções para aproximar gerações, nem ele é inevitável. Atacar este problema tem de passar por ver para além da sua especificidade, para fora da internet e muito para além dos clichés de psicologia destacados nas publicações dos jornais online. As famílias não têm como ser mais vigilantes sem com isso ferir o direito à privacidade e à intimidade de crianças e jovens. A comunidade escolar não transforma realidades com programas que querem explicar aos miúdos aquilo que os próprios professores não compreendem e que insistem em lecionar de cátedra. Com belíssimos resultados, como sabemos! Nada como uma boa lição para a canalhada aprender, não é verdade? 

Não existe transformação da sociedade sem uma rutura com todos os modelos que, de certo modo, foram aqui criticados. Não é possível uma família ou toda a comunidade escolar vigiar um problema que já vai em roda livre. Mas é possível devolver às famílias e à comunidade escolar o tempo e os meios para garantir às crianças a demonstração do afeto, o convívio com outras famílias e outras comunidades, o estímulo da vida coletiva que nos obriga a criar novos mecanismos de convivência, solidariedade e sensibilidade para diferentes realidades. Exige-se aos que ainda se lembram da forma como a sua geração foi encarada que abandonem modelos de paternalismo e de restrição e que concentrem as suas energias em lutar por melhores horários de trabalho, por melhores salários, pelo investimento nos serviços públicos, em espaços de sociedade e no apoio ao comércio e às coletividades. 

«Atacar este problema tem de passar por ver para além da sua especificidade, para fora da internet e muito para além dos clichés de psicologia destacados nas publicações dos jornais online.»

Com a falta de tempo e de direito ao lazer, há menos tempo para o convívio em família e em comunidade, deixando toda a construção de valores e formação do indivíduo entregue à internet e aos próprios adolescentes, ao seu convívio exclusivo.

A adolescência e as suas dores de crescimento não estão desligadas do tipo de sociedade e de comunidades que temos à nossa volta. Ela é, de facto, uma decorrência da forma como nos organizamos e como apostamos nas nossas relações coletivas, como estabelecemos o exemplo a seguir e a alegria que essas relações nos trazem, por oposição ao rancor, ao ressentimento, ao ódio e ao sofrimento. Sem horizontes, sem perspetivas, sem apoio nas decisões ou respeito pelas mesmas, a adolescência, como fase em desenvolvimento do poder de fazer escolhas, fica à mercê de outras ameaças que se infiltram por brechas que resolvemos, essas sim, ignorar. São brechas abertas pelo modo de exploração capitalista, onde a nossa vida coletiva é sacrificada. Com a falta de tempo e de direito ao lazer, há menos tempo para o convívio em família e em comunidade, deixando toda a construção de valores e formação do indivíduo entregue à internet e aos próprios adolescentes, ao seu convívio exclusivo. Não vale a pena meter trancas à porta da casa roubada, vale a pena construir a sociedade sem assaltos.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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